Não dá para dormir

Quando 120 pajés, guerreiros, mulheres e jovens Yanomami e Ye”kwana se reúnem para resistir à invasão de 20 mil garimpeiros e aos planos de destruição de Bolsonaro, é melhor ficar acordado.

Por Bruno Weis, em Instituto Socioambiental

Ninguém dorme na comunidade Watorikɨ. Pelo menos, não durante o primeiro Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, realizado nesta maloca circular, o xapono, encravada no pé da “serra dos ventos”, ou watorikɨ, em yanomami. Naquela semana, no final de novembro, a aldeia no meio da floresta amazônica foi palco de um encontro histórico e inédito, que reuniu 120 lideranças de 53 comunidades, vindas de 26 regiões de um território de 9 milhões de hectares, a Terra Indígena Yanomami, entre Roraima e Amazonas.

A chegada dos parentes que moram longe é marcada pela pintura corporal, ornamentos, danças e cantos. A cerimônia de recepção dura uma tarde inteira. Velhos amigos se reencontram. Não economizam abraços nem sorrisos. Alguns visitantes chegam após dias de caminhada na floresta. Acampam no meio da mata, nas cercanias do xapono e, antes de entrarem na aldeia, cobrem a cabeça de branco, com penas de urubu-rei. Pintam os corpos de vermelho e preto, cada qual com seu grafismo. Caminham entre cantos e gritos pela vereda e são recebidos pela maloca circular em festa, em dança ritmada, com as mulheres mais jovens à frente.

O primeiro encontro de lideranças Yanomami e Ye’kwana se dá em um momento em que mais de 20 mil garimpeiros estão dentro da Terra Indígena Yanomami, na maior invasão desde a demarcação da área, em 1992. Lideranças, pajés, guerreiros, mulheres e jovens resolvem se encontrar para fortalecer a união e, assim, resistir às ambições do presidente Bolsonaro, que vem anunciando seus planos para liberar o garimpo e a mineração em terras indígenas. Bolsonaro cita, nominal e reiteradamente, a Terra Indígena Yanomami. Não dá para dormir.

Os anfitriões do Watorikɨ e seus hóspedes passam quatro dias em intercâmbio intenso e permanente. Em plenária durante dias, ouvem e falam de suas lembranças e memórias dos tempos passados, antes do contato com os não-indígenas, quando não havia um inimigo comum e as guerras e alianças aconteciam entre os diferentes grupos indígenas, com ciclos de luto, vingança e também de paz. Relatam a realidade vivida hoje nas comunidades, os rios sujos e sem peixe por conta do garimpo, a falta de caça e o pescado contaminado. Endereçam casos de câncer causados por contaminação pelo mercúrio usado na lavra do ouro, os jovens aliciados por garimpeiros, as mulheres violentadas.

Muitas lideranças descrevem também a piora no atendimento de saúde, a volta da malária em suas comunidades. Destacaram que, só em 2019, ao menos seis mortes ocorreram ao longo do rio Uraricoera, por conta da doença. As lideranças denunciam ainda a falta de medicamentos, equipamentos e equipe técnica nos postos de saúde da terra indígena.

A palavra também visita os projetos de geração de renda, como o Cogumelo Yanomami, o Yaripo — ecoturismo para o Pico da Neblina, o recém-lançado Chocolate Yanomami, apostas das comunidades para tirar seus jovens do caminho do garimpo. Sim, também entre os yanomami, os jovens estão no centro da preocupação de seus pais, tios e avós. É a primeira geração deste povo que foi alfabetizada em português e que, agora, chega à vida adulta e se vê, diferentemente dos antepassados, na encruzilhada entre sua cultura tradicional e a liberdade na floresta e “o mundo da cidade”, onde o dinheiro manda e “todos são escravos”. Qual caminho vão trilhar? “Aqui ninguém rouba, a gente cuida e preserva. Nossa palavra é uma só. Vamos viver, dormir, respirar e produzir, sem sair desse caminho”, aponta Davi Kopenawa , pajé e liderança histórica Yanomami, um dos anfitriões do encontro.

As dúvidas e sonhos sobre o presente e o futuro de suas comunidades e da floresta permeiam falas, olhares e silêncios dentro do xapono. Como enfrentar a grande ameaça que destrói por dentro suas comunidades e a urihi, a terra-floresta? Como resistir à invasão de milhares de garimpeiros que hoje estão devastando as matas, contaminando os rios, espalhando doenças e toda sorte de violência, semeando a discórdia entre os parentes?

É preciso estar presente, entre os espíritos da floresta e os cantos dos pajés, noite adentro. “Nossa casa é circular, como a vida, como tudo na floresta”, explica Kopenawa, apontando a arquitetura da maloca, uma grande casa coletiva construída com madeira e telhado de palha com 14 pequenas portas que levam para a clareira, no centro. “Não é como a vida na cidade, onde tudo é quadrado”.

Davi explica que, à noite, quando cada participante se acomoda em sua rede, perto do fogo, e as crianças dormem, começam os diálogos-cerimoniais, uma arte específica, quando anfitrião e visitante, em dupla, cantam seus laços de amizade e de boa vizinhança, suas “guerras”, situações de conflito superadas ou ainda sendo enfrentadas, “para deixar tudo limpo para os dias que virão”. Por tudo isso, dormir não é preciso.

Assista à vídeo-reportagem aqui:


As lideranças visitantes chegam à comunidade com suas pinturas e ornamentos, a cabeça coberta com penas de urubu-rei, e dançam na maloca com os anfitriões. Foto: Victor Moriyama/ISA
Vídeo: Cassandra Mello

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