Povo Munduruku resgata 12 urnas funerárias de museu no Mato Grosso

Os artefatos de cerâmica foram retirados dos lugares sagrados da etnia durante a construção das barragens das hidrelétricas de São Manoel e Teles Pires

Por Juliana Arini, especial para a Amazônia Real

Cuiabá (MT) – Na madrugada do Natal (25) um grupo de 70 indígenas Munduruku resgatou doze urnas funerárias do Museu de História Natural do município de Alta Floresta, no Mato Grosso. Os artefatos de cerâmica, onde estão sepultados os restos mortais dos ancestrais desse povo, haviam sido retirados, à revelia dos Munduruku, dos lugares sagrados durante as obras da construção das barragens das hidrelétricas de São Manoel e Teles Pires, em 2010.

O resgate foi uma ação encabeçada pela Associação das Mulheres Munduruku e por pajés da etnia. O grupo visitou o Museu de História Natural, fez uma prática de ritual e resgatou as urnas funerárias. “Os pajés vão decidir o local final para os novos enterramentos”, afirmou Alessandra Munduruku, uma das lideranças envolvidas na ação, à Amazônia Real. 

Foi o primeiro resgate de material considerado artefatos arqueológicos protagonizado por indígenas no país, conforme destacou a arqueóloga Erika-Marion Robrhahn Gonzáles, professora da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à reportagem.

Nesta quinta-feira (26) os indígenas Munduruku chegaram à Aldeia Teles Pires, também localizada no Mato Grosso, onde iriam se reunir para finalizar os rituais, conforme apurou a reportagem. Até a publicação desta matéria, o grupo responsável pelo resgate das urnas não havia se manifestado sobre a destinação dos artefatos arqueológicos.

Os Munduruku reivindicavam a posse das urnas desde 2013, quando foram informados que, em 2010, ocorreram escavações às margens do rio Teles Pires, no Mato Grosso. A região hoje é ocupada pela casa de máquinas da quinta maior hidrelétrica do país, a Usina Teles Pires, com capacidade de geração de 1,8 GW/h – erguida sobre a submergida cachoeira das Sete Quedas – considerada sagrada para os povos indígenas, conhecida como a casa da mãe dos peixes ou Paribixexe.

Os responsáveis pela administração das usinas hidrelétricas São Manoel e Teles Pires, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Ministério Público Federal no Mato Grosso não se pronunciaram à reportagem sobre a ação dos indígenas Munduruku no Museu de História Natural de Alta Floresta.

Na quarta-feira (25), os Munduruku publicaram um manifesto na página do Movimento Ipereg Ayu na internet explicando a ação iniciada no dia anterior. “Queremos de volta as Itīn’a (urnas sagradas) que foram roubadas pelas usinas hidrelétricas construídas no rio Teles Pires. Somos 70 Munduruku das aldeias do alto, médio [rio] Tapajós e baixo [rio] Teles Pires. Viajamos mais de seis dias guiados por nossos espíritos e mais uma vez estamos discutimos sobre a destruição dos nossos Ipy Cekay`Piat, (lugares sagrados) cometida pelas usinas hidrelétricas de Teles Pires e São Manoel. Karobixexe e Dekoka’a são as casas dos nossos espíritos.”, afirmaram os indígenas em trechos do manifesto distribuído à imprensa.

A retomada das urnas funerárias pelos indígenas é mais um capítulo de uma longa história de violações de direitos na bacia do Alto Rio Tapajós. Os potes de cerâmica foram designados urnas funerárias porque em seu interior foram reconhecidos corpos ou vestígios humanos, como cabelos e dentes.

Os conflitos começaram antes mesmo das obras da hidrelétrica, a primeira de quatro grandes projetos de geração de energia erguidos em mil quilômetros de um mesmo rio, o Teles Pires, principal formador do Tapajós.

Após a finalização da UHE Teles Pires foram construídas as hidrelétricas de Colíder (342 MW/h), São Manoel (746 MW/h) e, por último, Sinop (462 MW/h); as quatro são designadas “Complexo do Teles Pires” pelos movimentos sociais e povos indígenas da região.

Ação legítima, diz arqueóloga

O conflito relacionado às urnas funerárias foi gerado pelas exigências da Lei Brasileira. Segundo os procedimentos de licenciamento ambiental, os empreendedores de grandes obras devem resgatar e salvaguardar todo o material arqueológico possivelmente impactado. Foi em uma dessas ações de “salvamento” que começou a saga das doze urnas funerárias, retiradas de um antigo cemitério indígena. Além das urnas, outras 270 mil peças arqueológicas foram encontradas e levadas das margens do rio Teles Pires.

“Deve haver muito mais enterramentos no local, mas optamos por preservar o Sítio Cadeado sem escavação porque percebemos que se tratava de um cemitério indígena”, explica arqueóloga Erika-Marion Robrhahn Gonzáles, professora da USP, e proprietária da empresa Documento, responsável pelo programa do Patrimônio Cultural que precedeu a construção da Usina Hidrelétrica Teles Pires por um Consórcio encabeçado pelo Grupo Neoenergia.

“O material que estava em Alta Floresta foi todo encontrado em um raio de dois metros quadrados. Por isso, antes mesmo dos indígenas se manifestarem, decidimos interromper as escavações e fechar o Sitio Cadeado ainda em 2012”, diz Erika-Marion. Hoje o sítio é considerado uma Reserva Arqueológica, mas permanece inacessível aos indígenas, cercado pelos muros da casa de máquinas da UHE Teles Pires.

“As urnas foram retiradas sem ser escavadas e nunca foram violadas. Foram deixadas dentro de uma capa de gesso. Esses doze recipientes saíram do local onde a Hidrelétrica abriria uma estrada”, conta a arqueóloga, que considera legítima a ação indígena. Segundo os estudos da Documento, quatro das urnas foram reconhecidas como sendo material contemporâneo, ou referente a enterramentos recentes.

“A reapropriação de artefatos arqueológicos é algo comum em outros países, principalmente na Austrália, Estados Unidos e Canadá. Desde 2015 estava previsto que os Munduruku ficariam da posse das urnas”, afirma Erika.

Segundo a arqueóloga, os questionamentos do povo Munduruku também trouxeram mudanças nas posturas dos arqueólogos brasileiros. “Antes, os sítios na Amazônia sempre foram tratados como ‘vestígios arqueológicos’, mas agora trabalhamos com arqueologia colaborativa, em uma integração com os indígenas, o que permite mudanças e faz com que a comunidade possa intervir. As urnas foram reconhecidas como pertencentes aos Munduruku, é valido que eles decidam o futuro delas”, explica Erika-Marion à Amazônia Real.

Segundo a arqueóloga, hoje não se escava mais cemitérios no país.  “Quando se reconhece que uma área de escavação vai muito além de um sítio arqueológico, quando se trata de um sítio-cemitério, se paralisa as atividades na hora, pois são áreas de significância forte”, afirma. “O passo seguinte é buscar entre os povos indígenas locais os que possam ter relações com esses vestígios”.

Destino das urnas

As mudanças no entendimento sobre o patrimônio arqueológico dos povos originários ocorreram após muitos embates. A retirada e violação do cemitério na região das Sete Quedas provocou a ira do povo Munduruku. Em outubro de 2017, os indígenas chegaram a invadir o canteiro de obras de São Manoel, uma das quatro hidrelétricas do Alto Tapajós, em protesto pela falta de definição do futuro das urnas funerárias retiradas do Sítio Cadeado.

Para minimizar os conflitos, o material foi enviado para a cidade de Alta Floresta, onde poderia ser visitado pelos indígenas até eles decidirem o destino final das urnas.

O geólogo Jesus da Silva Paixão é o diretor e o responsável pelo Museu em Mato Grosso de onde o material foi levado no último dia 25 pelos Munduruku.  Os restos mortais dos indígenas abrigados em potes de cerâmica permaneceram no local por quase três anos, fechadas em caixotes de madeira depositados no chão de uma sala de quatro metros quadrados.

“Os caciques vieram umas três vezes, inclusive com xamãs, para vistoriar as urnas. Fizeram alguns rituais no prédio. Mas dessa vez, além dos rituais, levaram o material. Para mim foi algo bom; eles tinham esse direito assegurado há quatro anos”, diz o geólogo.

Em 2015, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) delegou aos Munduruku a prioridade de identificação e posse das urnas. O documento foi emitido pela diretora do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan, Rosana Najjar. Mas inúmeras exigências impediam os indígenas de reaver as urnas. O Iphan solicitava inclusive que que uma consultoria fosse contratada.

“Um oficial de justiça está no local para avaliar o que foi levado. Ainda não se sabe se haverá alguma ação judicial sobre o ocorrido. Mas sabemos que retiraram apenas as urnas”, explica Jesus da Silva Paixão.

“Os representantes jurídicos da UHE Teles Pires afirmaram que farão a oficialização da reapropriação das peças aos indígenas e que nada haverá contra os Munduruku”, conclui o diretor do Museu.

Novos impasses

Antes mesmo da escavação do Sítio arqueológico Cadeado, os povos Apiaká, Munduruku e Kayabi questionavam a construção da hidrelétrica por conta da perda de regiões sagradas como Sete Quedas, dos cemitérios indígenas e falta de consultas obrigatórias, como as oitivas também previstas pela Constituição Federal.  

Em outro manifesto indígena, escrito em 2011, os povos indígenas previam que haveria danos à cultura e ao meio ambiente da região. “Tudo isso já está sendo destruído com as explosões de dinamite nas cachoeiras de Sete Quedas, com o início da construção dessa barragem de morte. O Ibama deu as licenças ambientais sem qualquer processo de consulta livre, prévia e informada junto às comunidades indígenas, desrespeitando nossos direitos assegurados pelo artigo 231 da Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT, além de outros acordos internacionais que o Brasil assinou. Agora, o governo nos convida para participar de reuniões sobre o PBA, mas como vamos discutir compensações de um projeto cujos impactos sobre nossas comunidades nem foram estudados e discutidos, e que foi licenciado ilegalmente? ”, questionavam os povos indígenas no documento.

Além das questões referentes ao licenciamento, 270 mil artefatos arqueológicos aguardam um destino final. Depositados em 5 mil caixas no Instituto do Homem Brasileiro em Cuiabá, capital do Mato Grosso, a lei prevê que as peças de maior relevância deveriam também ser entregues aos indígenas. Uma das condicionantes da Licença de Operação da UHE Teles Pires é a construção de uma Casa da Memória, em Jacareacanga, no Pará.

Porém, impasses entre as Prefeituras de Jacareacanga (PA) e Paranaíta (MT) e a Consórcio UHE Teles Pires prolongam o destino final desse material, resgatado há quase uma década das margens Alto Tapajós. (Colaborou Elaíze Farias)

(Foto das Urnas do Sitio Cadeado/CHTP)

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