Sujeitas políticas: mulheres negras nos parlamentos brasileiros

por Taliria Petrone e Renata Souza, no Estadão

Quando você pensa em política, o que lhe vem à mente? Provavelmente uma cena com vários homens brancos, de terno, ricos, se reunindo, debatendo, discutindo. Infelizmente, essa ainda é a cara da política brasileira: o político. 

A política reúne dois aspectos que foram, historicamente, negados para as mulheres, especialmente às negras: a esfera do público e a do poder. E quando as mulheres resolvem subverter essa “ordem”, o que temos é a violência.

“Burra”, “menina”, “chata”, “feia”, “nariz em pé”, “marrenta” … “bruxa”. São alguns dos termos usados para nos desqualificar nas Casas legislativas em que atuamos. Sem falar ainda dos memes, comparações e xingamentos mais chulos. Essa é uma das faces da violência política que as mulheres sofrem cotidianamente por ocuparem um cargo de poder.

Criticam nosso cabelo, nossas roupas, nossa voz, e chegam ao cúmulo de comentar nossa vida íntima numa constante tentativa de silenciamento e intimidação. Tudo o que somos (e representamos) é uma afronta. Somos sempre questionadas direta ou indiretamente sobre “o que estamos fazendo ali”. “Volte para a senzala”, eles dizem.

Essa violência política não é gratuita, já que tem a intenção de nos impedir de estar ali, nesses espaços tão brancos, tão ricos e tão sem cara de povo. E se reagimos, somos consideradas  bravas demais ou sensíveis demais. Sempre demais, sempre fora do tom, porque, em verdade, o que gostariam de nos dizer é que estamos fora do nosso lugar, daquele outro lugar reservado para nós. 

Em um cenário tão duro e abertamente desrespeitoso e violento, tentam nos fazer crer que nossas denúncias são fruto de vitimismo, do popular “mimimi”.  Mas não recuamos, nossa memória é nossa aliada. Sabemos de onde viemos e onde queremos chegar. Lembramos das mulheres que, décadas atrás, conquistaram o direito ao voto. Das que batalharam por cotas de gênero nas eleições, que só se consolidaram 10 anos atrás. E de todas que superaram e superam ainda barreiras visíveis e invisíveis para se fazerem vozes ativas na institucionalidade.

Em um ranking de 192 países, o Brasil ocupa a posição 152 em representatividade feminina no Congresso Nacional. Precisamos mudar isso sob pena de negligenciarmos a vida das mulheres.

Não se pode naturlizar a brutalidade como método de exclusão da presença feminina nos espaços de decisão. 

Justamente por isso, uma análise da violência política cotidiana é fundamental, inclusive para a compreensão mais profunda do “feminicídio político” que vitimou a nossa companheira Marielle Franco. 

Ter mulheres negras, que ousam amar outras mulheres, que vêm da favela e da periferia para a luta contra as desigualdades sociais é ousadia demais para um parlamento forjado no patriarcado racista, violento, classista e excludente. Não à toa, em vida e em morte, Marielle desafia as estruturas de poder e põe em xeque a elite política e econômica expressa de maneira hipócrita na herança da família tradicional brasileira. 

Em verdade, mexer as estruturas políticas, econômicas e sociais é o maior significado da nossa ocupação do Parlamento. A escravidão deixou um lastro de desumanização dos corpos negros mercantilizados, que precisa ser reparado pelo Estado brasileiro. Há quilombolas, indígenas, caiçaras submetidos a situações humilhantes que não podemos aceitar. A luta pela igualdade de gênero é urgente para a vida das mulheres, da população LGBTQI + e está aliada intimamente à batalha por condições de igualdade material e salarial. Esse é o cenário de um dos países mais desiguais do mundo, no qual a renda dos mais pobres caiu em 3% e a dos mais ricos cresceu em 8%, em 2018. 

São essas as lutas que nos impõem uma necessidade histórica de estarmos nos espaços de poder, para subverter o poder e reintegrar a sua posse ao povo. E sermos taxadas como bruxas de “nariz em pé” significa que erguemos nossas vozes e cabeças diante das desigualdades, em especial das de gênero, raça e classe. E incomodamos por isso.  Somos sujeitas políticas,  e não mulheres sujeitadas à política.

Imagem: Taliria Petrone e Renata Souza – Divulgação

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