Por: Ricardo Machado, em IHU On-Line
Oswald de Andrade em seu tom ácido provocador costumava dizer que o Brasil era o maior grilo da história. A tragédia da piada é que ela expressa profundamente a realidade histórica dos conflitos pelo território no país, que tem origem no período de invasão europeia no século XVI e se desdobra ao longo dos séculos sempre com o apoio institucional das instâncias de poder. “O conflito de terras ocorre porque, desde que temos vivido o processo de colonização, as populações negras e indígenas estão sendo espoliadas. Não por acaso maior incidência de conflito está concentrada nas regiões Nordeste e Norte do país, onde há um grande fluxo migratório incentivado pelo governo, que faz uma sobreposição de terras – concedendo terras a grandes empresas e grandes fazendeiros – e desconsidera a presença nesses locais de indígenas e camponeses, entre outros”, explica Edimilson Rodrigues de Souza, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
Não obstante a violência de tomada do território, não raro amparada por políticas públicas que defendem os interesses de fazendeiros e empresários, a condenação pelo mando de assassinato de lideranças políticas e religiosas que defendem o direito à terra é praticamente nula. Entre outras razões, porque há uma rede criminosa muito bem organizada, onde os pistoleiros são apenas a ponta do iceberg em que muitas vezes sequer sabem do verdadeiro mandante. “A grande complicação de se chegar aos mandantes dos crimes é que não se tem um único mandante, e sim um grupo de pessoas que encomendou os assassinatos. Existe um sindicato de pistolagem que é acionado por uma associação de fazendeiros. É esse sindicato que chama o pistoleiro que, por sua vez, não sabe quem o contratou, o que leva à impossibilidade de uma investigação mais profunda, pois a pessoa que executou o assassinato não conhece, de fato, o mandante”, descreve o entrevistado.
Em meio a esse contexto de violência explícita e contínua, as romarias cumprem um papel político profundo e complexo e passam a operar como uma espécie de mito fundador da luta pela terra. “Vejo a Romaria como um mito fundador, porque ela reúne, em torno da pessoa assassinada, todo o contexto que causou esse e outros assassinatos naquele local. Todos esses elementos vão compondo a narrativa do martírio, em três dimensões: o local do assassinato, a pessoa assassinada e a memória que se faz do assassinato”, esclarece o pesquisador. “Por isso não é qualquer pessoa que vira mártir, mas alguém morto em decorrência da extrema violência desse conflito de terra e da sua atuação nesse contexto. A narrativa recupera o período anterior e posterior ao assassinato, como estratégia de denúncia de até onde o conflito pode levar, ao limite da violência”, complementa.
Edimilson Rodrigues de Souza é antropólogo e professor universitário. Graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará – UFPA e Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes, doutor em Antropologia Social pela Unicamp, com passagem pelo Centre Maurice Halbwachs-França e pelo Afro-Latin American Research Institute at Harvard University-Estados Unidos. Realiza pesquisas etnográficas com camponeses e indígenas nos Estados do Pará, Mato Grosso, Tocantins e Pernambuco. Membro da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, da Associação de Brasilianistas na Europa – ABRE e do Centro de Estudos Rurais – CERES-Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O tema de sua tese é a sacralização de lideranças camponesas e indígenas em conflitos de terra no Brasil. Como descrever a situação atual do conflito de terras, especialmente no Meio-Norte e Nordeste do Brasil?
Edimilson Rodrigues de Souza – Para que possamos entender esses contextos de conflito de terra é preciso levar em conta nossa história de colonização. Os portugueses chegaram nos anos 1500 e desde então tem-se espoliado as populações indígenas de suas terras, pressionando uma migração do litoral para o interior do país. Com o avanço da exploração de terras no litoral, começou-se uma investida de exploração para o centro do país a partir das bandeiras paulistas. A Lei de Terras de 1850 faz concessões de terras a um grupo específico de pessoas e exclui indígenas, camponeses e populações negras de modo geral.
O conflito de terras ocorre porque, desde que temos vivido o processo de colonização, as populações negras e indígenas estão sendo espoliadas. Não por acaso maior incidência de conflito está concentrada nas regiões Nordeste e Norte do país, onde há um grande fluxo migratório incentivado pelo governo, que faz uma sobreposição de terras – concedendo terras a grandes empresas e grandes fazendeiros – e desconsidera a presença nesses locais de indígenas e camponeses, entre outros.
Todo esse movimento político leva aos conflitos que eclodem de maneira muito drástica no período militar, porque havia um plano de integralização do país em que o governo oferecia terras públicas a empresários e fazendeiros. A pesquisa aponta para o final da década de 1960 e início dos anos 1970, com o plano de integração nacional, concedendo terras públicas aos latifundiários e grileiros. Desde então os conflitos entre indígenas e esses “novos” personagens se agravaram, porque se trata de terras estatais e públicas ocupadas tradicionalmente pelas populações nativas.
Espoliação
O conflito se desdobra até os dias atuais, porque isso é muito presente – terras públicas ocupadas por povos tradicionais e a disputa com fazendeiros, incentivados e financiados por agentes do poder público, que fazem um movimento de espoliação. Se nas décadas de 1950, 1960 e 1970 temos a construção de estradas no interior da Amazônia, vamos ter também a construção de ferrovias para exportar o minério, e tudo isso produz uma atmosfera de conflito porque estas estradas e ferrovias passam por terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, quilombolas e camponeses. Embora estas populações não tenham documentos de propriedade do território, elas têm direito, porque estão ali desde períodos imemoráveis. O contexto do conflito de terra atual tem sempre uma relação com extrativistas – de minério ou madeira –, necessidade de escoamento do monocultivo de soja e milho em estados como Mato Grosso, Pará, Tocantins, abertura de estradas; tudo isso com financiamento público porque interessa ao governo. Isso não se restringe ao atual governo, mas abarca todos os governos do Brasil, desde os períodos mais remotos, em que o crescimento da economia tem como foco o monocultivo, a exploração de terras, e não uma economia baseada em produção familiar, por exemplo.
IHU On-Line – Como as romarias em defesa do direito dos territórios dos povos nativos dão vistas à violência que marca a sangrenta história brasileira da luta pela terra?
Edimilson Rodrigues de Souza – A romaria é um espaço de reunião. Participam movimentos pequenos, de pessoas lutando no seu cotidiano por melhores condições de vida e direitos fundamentais, pela água, pelo direito à floresta, à plantação, pelo direito à terra e à posse. As romarias são um movimento de aglutinação de forças, com pessoas que vêm de várias regiões próximas a onde a romaria acontece e pessoas de regiões distantes. Vai se criando uma rede de notícias de que a romaria vai acontecer. Se imediatamente a romaria tem um rosto de evento mais religioso, olhando com mais atenção, no caso das Romarias da Terra, da Água, dos Mártires da Floresta, ela é um acontecimento político, no sentido de que reúne lideranças locais importantes, lideranças políticas, ativistas de movimentos sociais. Nesta reunião há a possibilidade de diálogo, colocando-se em contraste contextos diversos de luta por terra e de entender que a luta da terra daquele lugar não é uma excepcionalidade, não é uma exceção, mas a regra.
É a partir da romaria que se produzem denúncias coletivas e estratégias coletivas de luta. Por isso que, por exemplo, pessoas de uma romaria apareciam fazendo outras romarias, pois essas pessoas se percebem em realidades próximas, com similaridades de conflito, resistência e luta por terra. O que a pesquisa mostrou é que os participantes das romarias têm crescido em número, o que articula um volume maior de demandas e denúncias a violações de direitos humanos como o direito à vida e à terra.
IHU On-Line – Levando em conta dados da Comissão Pastoral da Terra – CPT, entre 1985 e 2017 foram assassinadas 1.904 pessoas em conflitos no campo, mas apenas 113 casos foram julgados. O que esses dados revelam sobre o cenário de disputa por terras e o sobre o papel do judiciário neste contexto?
Edimilson Rodrigues de Souza – É preciso entender os números em uma articulação mais ampla. A primeira coisa é que os mandantes dos assassinatos não se envolvem diretamente. Durante a pesquisa houve recorrentes narrativas sobre sindicatos de pistolagem, que prestam serviços a agrupamentos de fazendeiros – o chamado consórcio –, que contratam pistoleiros. Quando a polícia investiga, normalmente se chega à figura do pistoleiro e alguns deles são presos ou respondem a processos judiciais. A grande complicação de se chegar aos mandantes dos crimes é que não se tem um único mandante, e sim um grupo de pessoas que encomendou os assassinatos. O trabalho do sociólogo César Barreira, Crimes por encomenda, ao entrevistar pistoleiros em situação de encarceramento, revelou que existe um sindicato de pistolagem que é acionado por grupos de fazendeiros. É esse sindicato que chama o pistoleiro que, por sua vez, não sabe quem o contratou, o que leva à impossibilidade de uma investigação mais profunda, pois a pessoa que executou o assassinato não conhece, de fato, o mandante.
A justiça investiga esses casos, por conta, também, de uma pressão internacional, de movimentos sociais, de defesa de direitos humanos. Trata-se de movimentos internos e externos de pressão à justiça. O limite é que o poder judiciário normalmente chega ao pistoleiro, mas dificilmente ao mandante, porque ele usa um atravessador para encomendar a morte. Isso explica a distância entre o número de pessoas assassinadas e o de pessoas incriminadas pelos assassinatos.
O crescimento dos números de violência na disputa por terra, nos últimos anos, ao que me parece está associado ao crescimento dos grupos políticos de extrema direita. Se olharmos para os dados desde 2016, após o impeachment, o número de ameaças de morte, assassinatos e criminalização dos movimentos sociais aumentaram muito porque temos uma elite política no poder que está afinada com movimentos de extrema direita. Isso indica o senso de impunidade, como se houvesse um contexto de permissão maior para se cometerem crimes no campo, de violação contra as populações indígenas, posseiros e populações tradicionais.
IHU On-Line – Como se caracterizou (e se caracteriza) o trabalho de missionários dos setores mais progressistas da Igreja Católica nestas regiões de conflito desde a década de 1970? Quais as diferenças entre o período de ditadura civil-militar e, após, da redemocratização?
Edimilson Rodrigues de Souza – A chegada de missionários europeus ao Brasil a partir da década de 1960 pode ser explicada porque havia naquele momento, com o debate do pós-Concílio Vaticano II uma abertura da Igreja Católica a uma maior proximidade com os movimentos sociais de base, que tinha como debate uma igreja mais próxima do povo. Entre outras coisas houve a substituição da realização da missa em latim para os idiomas vernaculares, a presença de leigos nos trabalhos da igreja, um indicativo de que ela estava se abrindo para um novo tempo. Há vários teólogos que marcam esse período como uma igreja mais próxima dos movimentos populares.
Ocorre também depois do Concílio conferências episcopais importantes, realizadas na América Latina, com bispos do continente que estavam afinados à proposta de traduzir para a ação pastoral da igreja Católica latino-americana as orientações do Concílio. Isso não significa que todos os bispos estavam afinados, porque havia bispos ligados aos movimentos de extrema direita, religiosos mais conservadores, mas cresceu muito o número de religiosos que tinham essa inclinação para setores mais progressistas e com diálogos mais próximos às populações que viviam em situação de vulnerabilidade social, exclusão e pobreza.
É nos encontros de Medellín e Puebla, nas décadas de 1960 e 1970, que começa a ser formulado o que viria a se chamar, depois, Teologia da Libertação, uma proposta teológica muito marcadamente latino-americana que pensa um tipo de cristianismo que leva em conta o contexto da América Latina de populações indígenas e camponesas, que vivem em situação de exclusão e exploração desde o período colonial. Ao mesmo tempo ocorre a emergência de governos civil-militares, com golpes de estado no Brasil, Chile e Argentina. Alguns missionários vêm para o Brasil como americanos, espanhóis e franceses mobilizados por essa igreja “nova”, pós-concílio Vaticano II, e por acreditarem que a América Latina ser um espaço profícuo para colocar em prática um modelo de ação cristã que se solidarizasse com estas populações marginalizadas historicamente, mais propositivo com estratégias de tomada de consciência de direitos básicos: à terra e seus recursos naturais, moradia digna, saúde e educação, por exemplo.
Os missionários que vinham para o Brasil naquele período passavam por um curso de formação no Centro de Formação Intercultural – Cenfi, no Rio de Janeiro, para aprender português e, como disseram durante a pesquisa, quando chegavam ali os professores diziam “se vocês vieram para catequizar e evangelizar o nosso povo, podem voltar para os seus países, mas se vocês vieram para trabalhar junto com o povo, podem ficar”. Então aquilo que era um curso de língua portuguesa se transformou em um curso de formação política, com valores dos movimentos de esquerda, na teoria marxista e na teologia da libertação para pensar em ações propositivas da Igreja Católica expresas na criação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e Comissão Pastoral da Terra – CPT, organismos ligados à igreja com atuação forte de leigos, que se constituíram como espaços de mediação e formação política. Além disso foram estabelecidas relações muito próximas com setores da universidade pública, articulando programas de educação popular, organizados por religiosos, ativistas de movimentos sociais de base e lideranças políticas.
A chegada desses missionários e a articulação deles com movimentos populares, com força no interior da igreja, seja pelas próprias inclinações do texto do Concílio Vaticano II, seja nas conferências episcopais com a participação de bispos brasileiros, como dom Hélder Câmara, dom Tomás Balduíno e dom Pedro Casaldáliga, se dá em um contexto de articulação interna da Igreja no Brasil e religiosos estrangeiros, que pelo fato de serem naturais de países europeus e norte-americanos não seriam tão facilmente perseguidos e presos, nem torturados. Veja o exemplo da prisão de dois padres franceses, em São Geraldo do Araguaia, no Pará, na década de 1980, Aristides Camio e François Gouriou, que foram presos e julgados, mas em condições completamente diferentes em relação aos brasileiros.
Redemocratização e violência
O contexto de violência e disputa por terras durante a redemocratização se mantém, com violação dos direitos humanos e do direito à vida, mas, por outro lado, continua a atuação desses missionários porque eles já estavam bem articulados. Se no período militar era um debate muito restrito, feito em espaços muito reservados e sob bastante sigilo, depois da redemocratização ele se torna mais amplo porque não era mais passível de prisão.
Devemos recordar que ocorre depois da redemocratização o assassinato de lideranças importantes como o Xicão Xukuru, assassinado em 1998, dez anos depois da Constituição Cidadão de 1988, e da Irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005. Isso mostra que o contexto de violência é muito parecido com a ditadura, mas com a diferença que o Estado não pode mais agir de maneira violenta, prendendo, torturando e assassinando lideranças populares, porém esse modelo de ação das elites econômicas se mantém via fazendeiros e pistolagem. Todo esse movimento de violência no campo permanece, não mais com a ação direta do Estado, mas com sua anuência e omissão.
IHU On-Line – De que forma as narrativas construídas em torno da memória das pessoas que foram assassinadas as transformam em mártires e encantados?
Edimilson Rodrigues de Souza – É preciso entender, e eu falei um pouco disso na resposta anterior, é que essas pessoas são assassinadas em decorrência de uma luta em situação de conflito de terra ou por direito ao uso de recursos naturais, como a água, a floresta, etc. Então não é qualquer assassinato, no sentido de que se mata qualquer pessoa, mas se mata lideranças por uma crença muito clara do ponto de vista das elites econômicas e das oligarquias políticas, a ideia de que há um movimento encabeçado por uma liderança, capitaneado por essa liderança, que precisa ser silenciada, da perspectiva das elites políticas e econômicas. O que eles fazem para silenciar a liderança e acabar com o movimento? Primeiro intimidar, caçar, ameaçar, coagir. Caso a liderança não responda a nenhuma dessas estratégias, então a “saída” é assassinar. Então se acredita mesmo que ao assassinar uma liderança o movimento se desfaz. Por exemplo o caso da Irmã Dorothy Stang que capitaneava lutas pelo direito à floresta das populações agroextrativistas do oeste do Pará, ou padre Josimo que capitaneava toda uma luta pelo direito às terras livres de babaçuais, e a liderança de Xicão Xukuru em Pesqueira nas lutas por demarcação de terras indígenas ocupadas desde períodos imemoráveis.
É contra essas lideranças que grupos de elite política se reúnem, descontentes com os movimentos populares, e acreditam que, ao matar a liderança, acaba o movimento. O que as romarias e assembleias indígenas, no entanto, me mostraram, segundo os próprios participantes, é que são espaços de fazer memória das lideranças – se lembrar, contar a história, reunir histórias de luta – e não deixar que as lutas acabem com os assassinatos. Isso fica muito claro no ato público que os Xukuru do Ororubá fazem anualmente no dia da morte do Xicão em que eles caminham seis quilômetros de braços dados, para dizer “todos somos Xicão”. Quem matou o Xicão pensando que o movimento acabaria tem que lidar com 12 mil indígenas dizendo que eles são o “Xicão” e aí vai ter que matar todos, porque o líder não morre quando é assassinado. Isso tem o efeito político de agrupar as pessoas em torno de uma causa. Se por um lado essas lideranças faziam esse papel de reunir e de mostrar que as pessoas tinham direitos, inclusive constitucionais, à terra, à água, aos recursos naturais, por outro lado essa clareza sobre os próprios direitos produz mais uma razão para continuar lutando.
IHU On-Line – Como essa rememoração, nas romarias, ressignifica o estatuto da vida e da morte nesse contexto?
Edimilson Rodrigues de Souza – Algumas coisas me indicam que esse estatuto é retraduzido. A primeira coisa importante para dizer é que a morte é em uma situação de extrema violência, o assassinato violento que produz martírio. Não é qualquer morte, mas sim uma morte em situação de extrema violência, vulnerabilidade, sujeição aos direitos humanos fundamentais. Outro indicativo é que existe uma espécie de mantra, em que ao se falar o nome da liderança que é homenageada naquela romaria as pessoas dizem: “presente na caminhada”. No caso de Anapu, por exemplo, ao longo de toda a romaria as pessoas vão dizendo “A irmã Dorothy vive?”, e em coro respondem “sempre, sempre, sempre”, ou então “Irmã Dorothy” e o povo responde “presente na caminhada”. Essa ideia de acionar a presença é a ideia de retraduzir a morte em vida, é uma vida que se multiplica nas pessoas que caminham. É a ideia de que a morte física não é o fim, mas a potência de produzir novas vidas. Isso aparece tanto na narrativa oral, quanto na narrativa visual. Há desenhos de Xicão em que ele aparece produzindo vida, se multiplicando em outros Xukuru.
Uma outra coisa muito forte que marca essa tradução da morte em vida, no contexto de Dorothy, em Anapu, e de Xicão, em Pesqueira, é que as pessoas fazem a caminhada do local onde estão sepultados até o local onde foram assassinados. No caso da Irmã Dorothy existe um túmulo que marca o local onde ela foi assassinada e outro onde está sepultado seu corpo. Elas também não dizem que a pessoa foi enterrada, porque a ideia de enterrar é de acabar, mas que a Dorothy e o Xicão foram plantados e que foram plantados como sementes. A semente plantada tem a potência de fecundar, isso significa que eles renascem nas pessoas que continuam lutando pela terra, pela vida, pela floresta. Eles são fecundos tanto no sentido simbólico ritual, dando força para a luta, quanto no sentido mais pragmático, pois tem-se narrativa de que o local onde Dorothy foi assassinada era um lugar muito úmido, em que ela ficou muito tempo sob a chuva porque a polícia precisava chegar para a perícia, e vários camponeses me disseram que aquela terra é a mais fértil porque foi banhada pelo sangue dela. Ou mesmo a figura de Xicão feita por um índio chamado Geraldo Bananeira, em que, na sua representação, da altura do peito onde foi deflagrado o tiro para baixo o sangue desce e vai virando água, a água virando rio e as flores nascendo no entorno daquele rio. Esses indicativos marcam como essas pessoas estão pensando e retraduzindo o estatuto da vida e da morte. É a morte violenta traduzida em martírio, e o martírio passa a ser retraduzido em vida que se multiplica nas pessoas que caminham, nas romarias ou nas pessoas que continuam vivendo naquele contexto de violência. Essa memória que é feita, porém, não põe fim à violência, que continua acontecendo na região.
IHU On-Line – O assassinato da missionária Irmã Dorothy Stang em Anapu, Pará, ficou conhecido internacionalmente. Além dela, o senhor pesquisou a morte de outras três lideranças: Padre Josimo, Xicão Xukuru e Padre João. Poderia contextualizar quem foram e qual a importância desses quatro personagens na luta pelo território?
Edimilson Rodrigues de Souza – O padre Josimo trabalhava na região do Bico do Papagaio, Estado de Goiás à época, atual Tocantins. Importante destacar que era um padre negro, o que foi uma das razões que motivou seu assassinato. Ele foi ordenado padre em 1979, e de 1983 até 1986 estava na região do Bico do Papagaio. Veja, já no período de redemocratização, ainda era uma região de intenso conflito, sobretudo pelo uso de terras livres de babaçuais, muitas quebradoras de coco babaçu eram proibidas de coletar babaçu, porque as fazendas começaram a ser cercadas. Além disso, tinha toda uma população migrante, anterior à abertura das estradas, e estando localizadas ali, em posses muito antigas, foram espoliadas de suas terras com a política de Reintegração Nacional do governo federal. Josimo chega nesse contexto de posseiros expropriados de suas posses, de mulheres impedidas de fazer uma atividade tradicional de extração de coco babaçu e de muita violência policial e dos fazendeiros. Ele começa no seu trabalho de padre com a formação política: estimula organização de sindicatos, associações, cooperativas, faz cursos bíblicos que tratavam sobre o direito, faz uma leitura política da Bíblia, dirigida para aquele contexto, de mostrar que a luta dos hebreus, quando saíram do Egito para Israel, era também uma luta por terra, que sofriam com violação de direitos, com trabalho análogo à escravidão, entre outras coisas. Josimo trabalhou assim, como padre e missionário, e essa é uma das razões pelas quais ele sofre uma tentativa de assassinato, em abril de 1986, e é assassinado então em 10 de maio de 1986, em Imperatriz, no Maranhão.
Xicão Xukuru foi assassinado no período pós-redemocratização, em 1998, em Pesqueira, Pernambuco. É uma liderança importante, que assumiu o cacicado. Reunia-se com os indígenas para discutir as terras que os fazendeiros ocuparam. Dizia que era preciso retomá-las, e para isso precisavam criar estratégias para desintrusar as terras tradicionais para poder plantar, colher e viver. Em um contexto de luta entre os Xukuru e os fazendeiros, recebe ameaças, intimidações e é assassinado.
Com a Irmã Dorothy a situação é semelhante, narrando os casos eles parecem iguais. Quando ela chega em Anapu, começa uma articulação com camponeses posseiros, que não têm documento de terra; enquanto o Estado concede terra para grandes fazendeiros, não faz o mesmo aos camponeses. Então ela começa um trabalho de base, nas comunidades de base, de formação política, dizendo “olha, a floresta em pé é vida, destruí-la é acabar com a vida humana”, discutindo direito constitucional, direitos fundamentais, a dignidade humana, os direitos humanos. Essa movimentação de formação política, de organização sindical, de associações, produz as ameaças.
Por essas razões eles são ameaçados de morte, intimidados por grandes fazendeiros ou grandes empresas de mineração e madeireiras, e são assassinados.
IHU On-Line – Como as romarias e as caminhadas pelos locais dos assassinatos formam uma cartografia da violência no campo? Qual a importância simbólica de refazer essas caminhadas?
Edimilson Rodrigues de Souza – Um dado importante é que as Romarias ocorrem em sua maioria na Amazônia brasileira e no Nordeste, que são áreas históricas de conflito de terra, desde o período colonial. Algumas acontecem no centro-sul do país, mas se olharmos com atenção são também locais de conflitos. Por exemplo, em Minas acontecem na região do Jequitinhonha; no Rio Grande do Sul, em locais de terras ocupadas via MST, que eram áreas de conflito, conquistadas pela luta. Por isso o mapa das Romarias é o mapa dos conflitos por terra no Brasil, e esse é um indicativo de que essas duas categorias se sobrepõem: Romarias da Terra e dos Mártires e áreas de conflito.
Isso ocorre, sobretudo, porque os mártires são assassinados nesses lugares de intenso conflito fundiário, porque estão exercendo ali o seu trabalho de liderança política e popular. A narrativa sobre a vida de um mártir não inicia contando sobre o lugar em que ele nasceu, mas tem como ponto de partida o momento em que começou a atuar como liderança popular. A narrativa da Irmã Dorothy, por exemplo, poderia começar nos Estados Unidos, depois em algumas áreas do sudeste do Pará logo que ela chegou ao Brasil e depois em Anapu, onde foi morta. Mas a narrativa começa já em Anapu, contando as articulações que fazia com camponeses, indígenas, posseiros etc.
Romarias como espaço de denúncia
Essas Romarias são importantes se pensarmos como um espaço de reunião de pessoas que passam por situações parecidas e podem compartilhar situações de violência, violação de direitos humanos. E estando reunidas formam um espaço de denúncia. Ali formulam cartas, denúncias, documentos que tomam dimensão nacional e até internacional. O fato de a Romaria ser noticiada, de a Assembleia Xukuru gerar sempre uma carta pública, indica que as pessoas se reúnem e produzem um diálogo que formula a denúncia desses contextos de violência e violação de direitos humanos.
Por isso tem esse tom político e religioso. O que poderia parecer ser apenas uma movimentação religiosa, com elementos da religiosidade católica, é também um espaço de articulação política, porque produz a partir dela formação e denúncia das violências, das ameaças, das desapropriações, explorações… as pessoas são convidadas a falar na Romaria sobre suas condições, das ameaças que recebem, da situação de encarceramento. Ainda mais nos últimos anos, que tem ocorrido a desqualificação e a criminalização dos movimentos sociais, sobretudo os ligados a camponeses e indígenas. Tem sido recorrente as lideranças serem encarceradas em processos fundamentados pelo trabalho de articulação entre movimentos, sindicatos, partidos, associações que defendem o direito à terra, à água, à floresta, entre outros.
IHU On-Line – Em que sentido as romarias, enquanto resistência política e religiosa, constituem-se em uma espécie de mito fundador da luta pela terra?
Edimilson Rodrigues de Souza – No sentido de que elas homenageiam um mártir. Um assassinato, como o da Irmã Dorothy, do Xicão Xukuru, do padre Josimo ou do padre João Bosco, é colado a um contexto de conflito de terra, que é de extrema violência e violação de direitos humanos. Vejo a Romaria como um mito fundador, porque ela reúne, em torno da pessoa assassinada, todo o contexto que causou esse e outros assassinatos naquele local.
Ao falar do martírio, narram a luta pela terra, pela vida que foi capitaneada por aquela liderança, reunindo pessoas, encorajando, empoderando, dando formação sobre direitos fundamentais, direitos à vida… Por isso a Romaria constitui um mito fundador, ela evidencia que o conflito chega ao extremo de assassinar, violentamente, a pessoa. Assassinando sob encomenda, com valor monetário, como mercadoria. Em narrativas que ouvi nestas áreas, a morte de uma liderança popular aparece com valor em dinheiro, que depende da representatividade dessa pessoa, do tamanho da sua atuação.
Isso constitui o mito fundador da luta pela terra, compondo o texto histórico, com uma narrativa que vem antes do assassinato, mas que acontece por causadaquela conjuntura de violência, e cria-se uma narrativa pós-assassinato. Não se matou qualquer pessoa, mas uma liderança importante. No caso da Dorothy, por exemplo, uma mulher, religiosa, idosa, que estava participando de uma reunião, o relato é de que quando os pistoleiros chegaram, a irmã disse que sua única arma era a Bíblia. E então ela começou a narrar as bem-aventuranças, mas nem assim eles se solidarizaram, e deflagraram tiros à queima-roupa.
Todos esses elementos vão compondo a narrativa do martírio, em três dimensões: o local do assassinato, a pessoa assassinada e a memória que se faz do assassinato. Por isso não é qualquer pessoa que vira mártir, mas alguém morto em decorrência da extrema violência – como uma senhora idosa morta à queima-roupa –, desse conflito de terra e da sua atuação nesse contexto. A narrativa recupera o período anterior e posterior ao assassinato, como estratégia de denúncia de até onde o conflito pode levar, ao limite da violência física.
–
Foto principal: CPT-PA