Segundo a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, mais de 1,5 milhão de famílias deixaram de receber o benefício
Por: Por Patricia Fachin e Ricardo Machado, em IHU On-Line
O recuo na cobertura do Bolsa Família nos municípios mais pobres do país e o aumento das filas de espera para receber o benefício fazem parte de uma decisão política do governo Bolsonaro para “economizar”, diz Tereza Campello à IHU On-Line. “Não se trata apenas do aumento do número de famílias na fila; o governo está diminuindo o programa para economizar. Economizar no Bolsa Família é uma opção. Por isso a opção não é diminuir a fila, mas ampliá-la, excluindo pessoas diariamente do programa”, adverte. Segundo ela, a atual fila de espera é “sensível” porque as famílias que estão aguardando para receber o benefício já estão habilitadas. “Estamos falando de pessoas que entraram com a solicitação, seus dados já foram verificados e checados, e agora elas têm que receber, porque o benefício já foi reconhecido. Ou seja, a pessoa já atende aos critérios para recebê-lo”, explica.
A ex-ministra do governo Dilma afirma que o “orçamento da União não é menor agora” em relação ao que foi no passado e lembra que o custo do programa, 0,5% do PIB, “é marginal, residual perto do que o governo gasta em outras áreas”. Na avaliação dela, o aumento das filas não tem relação com a situação fiscal do Estado, mas com uma mudança de modelo em relação aos investimentos. “Trata-se de uma visão de que pobre é gasto”, menciona.
Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp à IHU On-Line, Tereza apresenta alguns dos resultados do Bolsa Família, como a redução da mortalidade infantil, do déficit de altura em mais de 50% das crianças atendidas e da tuberculose. “O programa tem um impacto na melhora da saúde das crianças beneficiadas e, consequentemente, na economia que faremos a longo prazo nesta área. Quanto custa não fazer isso?” E acrescenta: “Em 20 anos, se perde uma geração no Brasil”.
Tereza Campello é economista, formada pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Foi professora do curso de Economia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, assessora econômica do Gabinete de Planejamento e Orçamento Participativo de Porto Alegre, assessora do governador Olívio Dutra e secretária-geral adjunta de Governo no Rio Grande do Sul. Foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no período de 2011 a 2016, e coordenou o Plano Brasil Sem Miséria.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua percepção sobre a situação da fome e da miséria no Brasil de 2016 para cá, depois de ter trabalhado no enfrentamento dessas questões no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no período de 2011 a 2016 e na coordenação do Plano Brasil Sem Miséria? Há um retrocesso nessas questões? Se sim, quais são as causas?
Tereza Campello – Não só existe um retrocesso claro, como isso já está documentado pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O Brasil virou uma referência em políticas de combate à pobreza não por questões ideológicas, mas graças a um combate efetivo e a resultados efetivos. Em 2003, o Brasil tinha em torno de 42 milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza, segundo dados da Organização das Nações Unidas – ONU e esse número caiu para 14 milhões no final do governo da presidente Dilma. Esses dados já foram revertidos e a última informação que temos, de 2018, mostra que a pobreza já voltou a um patamar de 22 milhões se pessoas. Em três anos, o processo foi revertido, a pobreza aumentou muito e a extrema pobreza já voltou aos patamares de 2006.
É importante destacar por que conseguimos reduzir a pobreza. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO diz que o sucesso das políticas no Brasil aconteceu porque as pessoas começaram a ter acesso à comida. O país não tinha falta de comida, ao contrário, mas a população não tinha acesso à alimentação porque não tinha renda. Portanto a melhora dos indicadores da fome tem muito a ver com a melhora dos indicadores da pobreza.
Por que a pobreza caiu no Brasil? As pessoas pensam que isso tem a ver com o Bolsa Família, mas o programa é apenas um pedaço disso – o menor pedaço. O grande responsável pela redução da pobreza foi o aumento do salário mínimo. Ao longo de 13 anos, o salário mínimo aumentou e isso permitiu que a população tivesse uma melhora no poder de compra. Também foram gerados 20 milhões de empregos formais e houve maior acesso da população à aposentadoria. Todas essas questões, junto com o desenvolvimento da agricultura, explicam como o Brasil, em tão pouco tempo, conseguiu sair do Mapa da Fome e reduzir a pobreza nesses patamares.
Redução de políticas públicas
Todas essas políticas que citei já foram destruídas: o salário mínimo já está abaixo da inflação, existem 12 milhões de desempregados no país e quem não está desempregado teve uma redução de salário por conta da desestruturação trabalhista. Além disso, a aposentadoria já está sendo limitada e há uma fila enorme no Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, porque as pessoas não conseguem ter seu benefício liberado. O Bolsa Família também está sendo reduzido. Esse conjunto de elementos explica por que a pobreza cresceu tanto no Brasil e nos serve de alerta, porque como essas políticas ainda vão ter impacto, a tendência é piorar. O Brasil tem experiência no desenvolvimento de políticas públicas, portanto não se justifica estarmos vivendo esse quadro de aumento da pobreza no país.
IHU On-Line – Que diferenças percebe no modo como o governo Bolsonaro tem tratado os programas sociais e as políticas públicas em seu governo em comparação com o período em que a senhora esteve no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma? As mudanças são circunstanciais do momento político e econômico ou ideológicas?
Tereza Campello – Não são circunstanciais porque nenhuma das mudanças em curso é conjuntural: a PEC do Teto dos Gastos Públicos é uma medida constitucional que nunca foi feita e que mexe em questões orçamentárias dentro da Constituição Federal. Essa PEC vai durar por 20 anos, congelando os gastos do governo em saúde, educação, assistência social, saneamento básico, energia, água; em 20 anos, se perde uma geração no Brasil. Não estamos falando de mudanças conjunturais por causa de um ajuste de câmbio ou uma crise. Se observarmos as mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que tiveram e estão tendo um impacto na precarização do trabalho no Brasil e na desorganização do mercado de trabalho, levando à redução dos empregos e à instabilidade do trabalhador, veremos que se trata de uma reforma que é para sempre. Não são questões pontuais de caráter orçamentário ou de ajuste. Isso também ocorre com a reforma previdenciária, que muda o perfil da previdência.
Agenda social como agenda econômica
Nós acreditávamos que a agenda social não era só parte da agenda econômica, mas impulsionadora da agenda econômica. A inclusão social não era vista apenas como uma questão de justiça social – era também de justiça social e de direito –, mas econômica. Isso porque, ao ter acesso à renda, a população ajuda a dinamizar a economia brasileira, pois consome produtos nacionais, como roupas, calçados, alimentos e isso tudo faz a economia se movimentar. Acreditávamos que isso era bom para o conjunto dos brasileiros. Era uma compreensão do modelo de desenvolvimento que o Brasil deveria seguir.
A visão que está no governo hoje é oposta a essa. Trata-se de uma visão de que pobre é gasto. A nossa visão era de que investir na população pobre significava gerar dinâmica econômica. Para o atual governo, pobre é uma variável de ajuste fiscal. É uma situação dramática do ponto de vista econômico, porque essas medidas só vão afundar o país e não o ajudam a sair da crise. Cortar a renda da população mais pobre só gera mais pobreza, porque essa população para de consumir, o que reduz o consumo no país e deixa de existir aquela base de renda que dá sustentação e faz o país se movimentar. Além disso, é uma tragédia social, porque essa população desempregada, com perda de renda, perde ainda com o corte das políticas sociais, num momento em que mais precisa.
IHU On-Line – Recentemente, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma matéria informando que nas cidades mais pobres do país houve um recuo no número de famílias atendidas pelo Bolsa Família e na inclusão de novos beneficiários no programa. A senhora deu algumas declarações chamando atenção para o fato de que as filas de espera não são somente para receber o Bolsa Família, mas também o auxílio-maternidade e o Benefício de Prestação Continuada – BPC. O que explica a formação dessas filas e qual é o impacto social delas no atual contexto brasileiro?
Tereza Campello – Primeiro, é importante explicar por que há tantas versões sobre a quantidade de famílias que estão na fila esperando para receber os benefícios. Na minha conta, a fila já passou de 1,5 milhão de famílias. Por que as notícias informam números diferentes? Porque o governo está escondendo os números da Folha de S. Paulo. Vários jornais solicitaram pedidos de informação via Lei de Acesso à Informação, mas o governo está descumprindo sistematicamente a lei.
Esta fila é sensível – e isso a imprensa ainda não compreendeu – porque são de famílias habilitadas para receber os benefícios. Estamos falando de pessoas que entraram com a solicitação, seus dados já foram verificados e checados, e agora elas têm que receber, porque o benefício já foi reconhecido. Ou seja, a pessoa já atende aos critérios para recebê-lo. É importante explicar isso porque se fosse uma fila de pedidos para novos ingressos, o governo poderia alegar que está verificando as informações fornecidas pelas pessoas. Mas, neste caso, as pessoas não recebem porque o governo fechou todo o processo de concessão. Ou seja, é uma decisão do governo parar de conceder benefícios, e, por conta disso, ninguém está recebendo. Desde maio, famílias estão sendo excluídas mês a mês e ninguém mais entra no programa Bolsa Família. Por isso, o número de participantes do programa caiu de mais de 14 milhões para 13 milhões, ou seja, mais de um milhão de famílias.
Pessoas que vivem em situação de pobreza vivem de forma vulnerável: aqueles que fazem “bicos” na construção civil, por exemplo, têm dinheiro em alguns meses, em outros, não. Por isso, por mais que uma pessoa tenha saído do programa, é possível que meses depois ela tenha que voltar para a fila – tem pessoas que estão na fila há mais de um ano.
IHU On-Line – O jornal Folha de S. Paulo publicou uma matéria informando que o governo já sabia antecipadamente que não teria dinheiro para pagar os beneficiados e, por conta disso, o pagamento foi barrado por uma junta da qual o ministro Paulo Guedes faz parte. O não pagamento do benefício se dá por razões financeiras ou políticas?
Tereza Campello – Políticas, porque o gasto com o Bolsa Família é marginal, residual perto do que o governo gasta em outras áreas. Estamos falando de 0,5% do PIB. O valor que o governo está represando tem origem em uma decisão política de onde e como se quer gastar. O orçamento da União não é menor agora, mas o governo resolveu diminuir o valor do Bolsa Família; é isso que está acontecendo e é por isso que temos que gritar, para evitar que isso aconteça. Em outros momentos em que houve cortes no Bolsa Família, a movimentação foi grande e o governo Temer teve que recompor o programa. Agora, não se trata apenas do aumento do número de famílias na fila; o governo está diminuindo o programa para economizar. Economizar no Bolsa Família é uma opção. Por isso a opção não é diminuir a fila, mas ampliá-la, excluindo pessoas diariamente do programa. Nós nunca barramos a fila de entrada de pessoas no Bolsa Família; o fato de ela ficar congelada de maio a janeiro é inédito.
É lógico que o governo sabia da fila. O Bolsa Família tem um sistema de informações gerenciado pela Caixa Econômica Federal e o governo não repassa essas informações para a imprensa porque não quer. Nós tínhamos as informações do Bolsa Família publicadas em relatórios mensais e qualquer pessoa poderia acessá-las. O governo sabia que isso estava acontecendo e tomou a decisão de excluir famílias para sobrar dinheiro no final do ano para pagar o abono.
IHU On-Line – Em termos orçamentários, do Produto Interno Bruto – PIB, o que representa o investimento social do Bolsa Família?
Tereza Campello – Em termos do PIB, é gasto 0,5%. O programa sempre foi muito elogiado, porque foi muito bem montado: é barato não só pelo que gasta de dinheiro público, mas pelo que gasta da estrutura burocrática, porque não tem muitos funcionários e é um programa de fácil execução, que usa outras estruturas públicas como parceiras para funcionar, como a Caixa Econômica Federal, a rede de educação, de saúde, de assistência social. Então, quando falamos que o programa está em risco, não é só por causa do orçamento, mas porque essas redes também estão sendo desmontadas.
O professor Marcelo Neri fez um estudo para verificar quanto do dinheiro investido no Bolsa Família retornava para a economia. As pessoas que recebem o benefício de 190 reais por família gastam tudo imediatamente com comida, roupa, calçado, remédios. Ou seja, esse dinheiro roda muito rápido e gera ondas na economia: o beneficiado compra a comida, que vai ajudar a pagar o salário do empregado do mercado e gera recurso para que o dono do mercado possa comprar mais mercadoria e pagar quem produziu o alimento. O estudo de Neri mostra que, a cada um real investido no Bolsa Família, 1,78 retorna para a economia. Nesse sentido, o Bolsa Família poderia ser considerado um investimento e não um gasto. Então, parar de gastar no Bolsa Família é uma burrice e uma maldade para com a população pobre, porque esse é um investimento de curto prazo que tem um efeito multiplicador do PIB de 1.78%. Ou seja, é um programa que dinamiza a economia e ajuda a reduzir o ciclo de pobreza no Brasil.
IHU On-Line – Além do estudo mencionado, existem, de outro lado, estudos e dados consolidados sobre o impacto do Bolsa Família em outras áreas, como na saúde, na educação, na renda das famílias e no enfrentamento da pobreza de modo geral? Qual o tempo médio que uma família fica recebendo o benefício? Qual percentual de beneficiários que depois de um período deixam o programa porque conseguiram um emprego ou aumentaram a renda?
Tereza Campello – Há estudos em várias áreas. Alguns mostram a redução da mortalidade infantil, a redução do déficit de altura em mais de 50% das crianças e a redução de doenças como a tuberculose. Ou seja, o programa tem um impacto na melhora da saúde das crianças beneficiadas e, consequentemente, na economia que faremos a longo prazo nesta área. Ele reduziu a mortalidade infantil em 60% e tudo isso tem que ser computado como investimento econômico e social para o país, porque crianças que tinham dificuldade de desenvolvimento passam a se desenvolver melhor. Além disso, a criança beneficiada está na escola e provavelmente não vai ter o mesmo destino dos pais e avós que não tiveram oportunidade de estudar.
Tem um estudo muito interessante mostrando que, ao contrário do que se diz, o Bolsa Família não tira as pessoas do trabalho – é comum ouvir o discurso de que os beneficiados do programa deixam de trabalhar para receber o benefício, mas isso não é verdade. Muitas das pessoas que recebem o Bolsa Família trabalham muito e ganham pouco porque têm um perfil de trabalho não qualificado ou têm famílias muito grandes. Existem situações em que uma única pessoa trabalha na família, mas a família é composta do casal com os filhos mais os irmãos ou cunhados com seus filhos e tudo isso faz com que essa família não tenha renda suficiente para viver bem. O que acontece é que apesar de a pessoa estar trabalhando, ela tem direito ao Bolsa Família. Então, não existem provas de que as pessoas deixam de trabalhar para receber o benefício. Ao contrário, elas trabalham e recebem o benefício como um complemento, até porque ninguém deixa de trabalhar para receber um auxílio de 190 reais, que é um valor com o qual ninguém consegue sobreviver.
Sobre por quanto tempo as pessoas recebem o programa, não existe uma média, porque em alguns períodos o desemprego estava muito baixo, em outros, alto, então o tempo que a pessoa recebe o benefício depende muito da situação da economia. Algumas pessoas entram no Bolsa Família e em seis meses devolvem o cartão, outras demoram um ano, mas também tem aqueles que recebem o benefício por dez anos. Uma família pobre, que vive numa terra ruim no Nordeste, que enfrenta a seca desde 2012, não tem chance de alterar seu padrão de vida e precisa do benefício. Por isso que é preciso um conjunto de oportunidades para resolver a situação da pobreza. No Nordeste, por exemplo, muitas famílias melhoraram de vida porque foram beneficiadas, além do Bolsa Família, por outros programas, como o Programa Cisternas e o Programa Luz para Todos. Essas famílias melhoraram de vida, mas não necessariamente conseguiram sair da pobreza e abrir mão do programa, porque elas estavam numa situação de desnutrição e abandono e, ainda, viveram um período de seca.
Alívio para a pobreza
O programa é um alívio para a pobreza, mas sozinho não resolve nada. Não dá para achar que ele vai resolver o problema das famílias com 190 reais. No Rio Grande do Sul, tivemos uma experiência muito bem-sucedida com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec. Identificamos que em 2012 a economia estava indo bem, mas faltava mão de obra qualificada para a construção civil. Pessoas que recebiam o Bolsa Família começaram a fazer os cursos do Pronatec e tiveram uma melhoria de vida fantástica. O que tirou essas pessoas da pobreza não foram os programas em si, mas o fato de terem tido emprego naquele período.
IHU On-Line – Que balanço faz do Bolsa Família ao longo desses 17 anos? Quais foram os avanços e os limites do programa?
Tereza Campello – O investimento do Bolsa Família é reconhecido no mundo todo. Gosto de fazer a pergunta ao contrário: quanto custa ter reduzido 60% a mortalidade infantil no Brasil graças ao Bolsa Família? Com 0,5% do PIB foi possível reduzir a mortalidade infantil causada por desnutrição, por falta de comida, graças ao Bolsa Família. Quanto custa não fazer isso? Quanto custa ter as crianças na escola, ter acabado com o trabalho infantil? Esses são ganhos do Bolsa Família, os quais vamos conseguir medir no longo prazo.
Ganhos sociais
O estudo do pesquisador Davide Rasella, que está em processo de publicação, mostra a redução na mortalidade materna entre mulheres que recebem o Bolsa Família por mais tempo. Ou seja, meninas que receberam o benefício quando eram crianças, morreram menos ao chegar à fase adulta do que as que não receberam, porque se alimentaram melhor, foram mais ao médico etc. Esses dados só estão sendo colhidos agora. Os ganhos do Bolsa Família ainda estão sendo investigados.
Outro ganho foi o controle da tuberculose: as famílias que recebem o benefício conseguem ter maior percentual de cura do que aquelas que não recebem o benefício, porque são obrigadas a ir ao médico com frequência, são imunizadas. Existem benefícios generalizados na área da saúde e benefícios de impacto de longo e curto prazo que precisam ser computados. Que país preferiria não gastar 0,5% do PIB e deixar as crianças morrerem, terem baixa estatura ou órgãos pouco desenvolvidos? O ganho que essa criança tem é para a vida toda. Vamos colher ganhos do programa por muito tempo.
Limites
O programa tem limites, mas não são limites do programa em si. Um único programa social não resolve todas as mazelas do país. Ele se dispõe a aliviar a pobreza, a manter as crianças na escola e as gestantes e as crianças na rede pública de saúde. De todo modo, tem uma questão que talvez seja um elemento a ser investigado: a forma como o programa foi trabalhado acabou exacerbando o preconceito contra os pobres. Existe um preconceito que tem a ver com a cultura do privilégio e as pessoas acham que os outros são pobres porque são vagabundos ou drogados, ou seja, se atribui à pobreza elementos comportamentais ou de saúde mental.
No Brasil, a população é pobre apesar de trabalhar muito: a empregada doméstica levanta às cinco horas da manhã, pega transporte público, trabalha o dia todo na casa da patroa, volta para casa à noite, faz comida para os filhos, cuida da roupa e dos afazeres da casa, dorme pouco e continua pobre. Essa situação tem a ver com um processo de exclusão que está na origem da história do país, com a cultura do país de achar que tem que pagar pouco por serviço braçal. A forma como o país montou sua estrutura gera um preconceito muito grande.
Nesse contexto, quando o Estado passou a dar um benefício para os pobres, muitos disseram que o Estado estava premiando o vagabundo e isso exacerbou o preconceito contra os pobres. Mas na verdade, muitas dessas famílias nunca tiveram oportunidades. Enquanto isso, um fazendeiro tem imposto beneficiado, juros beneficiados, fica devendo e depois não paga e ainda se beneficia do Programa de Recuperação Fiscal – Refis. O pobre, se não paga um empréstimo, sai do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf e nunca mais consegue entrar. É um conjunto de desigualdades causadas pela não inclusão dessa população que gera a pobreza. Essa situação justifica que o Estado entre com mecanismos para reduzir as desigualdades, compensar a população e garantir que ela tenha direitos mínimos, como alimentação, que é o que o Bolsa Família faz.
IHU On-Line – O programa precisaria ser reformulado em algum aspecto?
Tereza Campello – O que o Bolsa Família teve de correto foi achar que não iria começar perfeito. Então, desde 2004 o programa foi sendo aperfeiçoado ano a ano. Se olharmos o programa em 2003 e em 2015, veremos que são dois programas distintos, porque ele foi sendo aprimorado e melhorado a cada crítica, a cada questionamento. Exatamente porque o programa era aberto e os dados, transparentes – inclusive entregamos o cadastro único para as universidades –, foram feitas pesquisas e fomos fazendo correções, como o cruzamento de dados a partir de 2007.
IHU On-Line – Entre 2002 e 2015, o Brasil conseguiu avançar em políticas sociais de redução da pobreza, mas nunca superou o patamar de um dos países mais desiguais do mundo. Que tipo de políticas públicas ainda precisam ser implementadas para reduzir as desigualdades?
Tereza Campello – Apesar de ter havido uma redução gigantesca das desigualdades, os níveis de desigualdade são tão grandes que não é possível, em 13 anos, enfrentar o que foi gerado em 500. Então, seria preciso continuar reduzindo as desigualdades para chegarmos a um patamar aceitável. Se olharmos a redução da desigualdade no acesso à água, veremos que ela foi tremenda: enquanto a maioria da população tinha acesso à água, entre os mais pobres só 50% tinha acesso; melhorou muito e esse valor passou para 70%. O mesmo ocorre com o saneamento básico: reduzimos a desigualdade pela metade. Mas metade dos mais pobres continua sem saneamento.
Em duas questões deveríamos ter avançado e não avançamos suficientemente. A primeira delas é a questão tributária. Há muitos anos o Brasil tem uma estrutura tributária desigual, a qual faz com que o mais pobre pague mais imposto do que o rico. Precisamos inverter isso. Infelizmente, não conseguimos enfrentar essa que é uma questão fundamental para reduzir a desigualdade.
Carro no Brasil paga imposto, mas iates e helicópteros não pagam. Iate é um veículo de luxo, que só serve para passear, enquanto o carro é usado pelo trabalhador para trabalhar. Nós enviamos um imposto sobre iate [para o Congresso], mas não passou. A cultura do privilégio é tão absurda no Brasil, que os ricos não aceitam pagar impostos. Deveria existir imposto sobre fortunas e o imposto sobre heranças deveria ser maior do que é hoje. Mas a classe média fica nervosa porque acha que vai pagar mais imposto, mas não estamos falando da classe média, que já paga impostos, estamos falando dos ricos. A classe média se acha rica, mas não é; ela é formada por trabalhadores, por profissionais liberais; estamos falando de pessoas ricas, que têm dinheiro fora do país, em paraísos fiscais, que vivem de especulação financeira.
A segunda questão na qual deveríamos ter avançado é na política para melhorar a concentração fundiária no país. No Rio Grande do Sul, temos um padrão de agricultura familiar muito eficiente, com padrões de produtividade altíssimos, e se pudéssemos reproduzir esse padrão em outros estados do país, teríamos bons resultados. Independentemente de quem é o governo, essas duas coisas ainda precisam ser feitas.
IHU On-Line – Na última entrevista que nos concedeu em 2016, a senhora mencionou que ao analisar o fenômeno da pobreza, é necessário olhar para as pessoas mais pobres, não para a média da população. Pode nos explicar essa ideia? Como esta mudança metodológica de análise implica nos resultados práticos de enfrentamento à pobreza?
Tereza Campello – Vou usar o exemplo da energia elétrica para explicar. Em 2003, 93% dos brasileiros tinham acesso à energia elétrica, ou seja, o sistema estava quase universalizado, segundo a média. Mas quando se analisava apenas a situação dos pobres, era possível perceber que mais de 20% deles não tinham acesso à energia e, no meio rural, metade deles também não tinha acesso à energia. Comparando com o restante do Brasil, era possível observar essa dificuldade. Isso significa que não adianta só ofertar política pública e, nesse caso, não adiantava apenas continuar ofertando energia, porque a pessoa estava longe do linhão e não conseguia ter acesso à energia, apesar da oferta. Ou seja, não adianta querer fornecer energia para essa pessoa, se o custo para ela puxar a energia até a sua casa é de 20 mil reais. Apesar da política, essa pessoa estaria fadada a nunca poder ter acesso à energia e as consequências disso são muitas, como não ter acesso a um conjunto de benefícios que a energia traz, como a produção, que poderia fazer ela melhorar de renda. O Estado, ao identificar esse problema, construiu um programa específico chamado Luz para Todos, que usou os fundos das próprias concessionárias de energia elétrica para levar energia para a população rural, e o programa foi um sucesso.
Então, para enfrentar as desigualdades, temos que fugir das médias. Nesse caso, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU foram muito felizes ao usar a terminologia “não vamos deixar ninguém para trás”. Isso joga uma lupa na população mais pobre, que está vivendo em locais sem acesso à água, a médico etc. Ou seja, existe um conjunto de carências que é um limitador para a própria saída da pobreza, e a construção da redução da desigualdade da saída da pobreza tem que ser multidimensional, tem que olhar vários aspectos.
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Foto: Arquivo /Agência Brasil