Para Douglas Rodrigues, restringir o acesso aos territórios indígenas é a melhor prevenção ao Covid-19. Ele já tratou de surtos de gripes nos povos do Xingu (Mato Grosso) Zo’é (Pará) e Xinane (Acre)
Por Fábio Zuker, Amazônia Real
Em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, o médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com populações indígenas e em isolamento voluntário na Amazônia há mais de 50 anos, disse que é importante evitar a entrada em terras indígenas de pessoas com sintomas de doenças respiratórias, como o novo coronavírus (Covid-19), sejam elas indígenas ou não, neste momento em que a pandemia foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Claro que quanto mais ermo o lugar, mais difícil [o contágio]. Essa doença é de lugares aglomerados. Em lugares isolados, a contaminação é menor”, afirma Rodrigues. Ainda assim, segundo ele, a realidade das populações indígenas demanda cuidado extra, já que, historicamente, “a gripe, a gripe lato sensu, foi o grande matador dos índios no século 20”, diz o especialista em saúde indígena.
Outras doenças como varíola e sarampo, diz o médico, também foram responsáveis pelo alto número de mortes de indígenas nas Américas, “mas os grandes vilões dessa história são as doenças respiratórias, e o coronavírus é mais uma delas”.
Cientes sobre a precariedade das ações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, principalmente em regiões remotas e de difícil acesso da Amazônia, onde vivem povos isolados, as organizações mais importantes do Movimento Indígena Nacional tomaram medidas para impedir o avanço do coronavírus nas aldeias.
Procurada pela Amazônia Real, a Sesai informou que o Ministério da Saúde vai contratar 5.811 médicos brasileiros para reforçar o atendimento à população durante a pandemia do coronavírus, por meio doprograma Mais Médicos, mas não anunciou investimentos para a prevenção da doença nas aldeias indígenas. “Os profissionais serão distribuídos em 1.864 municípios de todo o país, além de 19 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei)”, disse o Ministério da Saúde.
O médico sanitarista Douglas Rodrigues coordenou por mais de 50 anos o programa de extensão da Unifesp em saúde indígena no Parque Indígena do Xingu, no nordeste do Estado do Mato Grosso. O projeto apoia o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) atendendo 16 etnias, algumas de contato recente. Na Amazônia, o médico trabalhou com populações de recente contato como os Zo’é, do norte do Pará, e o povo do Rio Xinane, que vive na fronteira do Acre com o Peru, e que fez contato com indígenas Ashaninka em 2014. Rodrigues tratou da saúde desse povo naquele ano.
Douglas Rodrigues disse que teve acesso ao documento preliminar de contingência nacional e infecção do novo coronavírus da Sesai. Para o médico, trata-se de um plano demasiado genérico.
“Formalmente ainda não tem, ele não está ruim, mas é um documento geral, que faz determinação aos Distritos no plano geral, não há nada de muito concreto. Cada distrito, de acordo com a sua realidade, deveria fazer seu plano, o que está correto”, afirmou.
A Sesai atende uma população de 760.350 indígenas através de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei). Na Amazônia Legal, 25 Dsei’s atendem uma população de 433.363 pessoas. Até o momento não há registro de casos suspeitos de coronavírus na população indígena.
Ingresso aos territórios
O médico diz que, embora os surtos de gripe venham de fora dos territórios indígenas, a dinâmica de visitas entre aldeias pode aumentar a disseminação do coronavírus. “Os surtos que vejo na aldeia geralmente vêm de fora. Mas ali o contato entre as aldeias, acaba disseminando entre eles”, alertou Guimarães. Por isso a preocupação com quem entra e quem sai das terras indígenas deve ser redobrada.
No caso de populações indígenas em situação de isolamento voluntário, Rodrigues ressalta que “o contágio é de pessoa a pessoa. O risco está em alguma pessoa contaminada se aproximar deles”, afirma ele, seja essa pessoa um técnico da Funai, um indígena de recente-contato, ou mesmo “madeireiros e garimpeiros, que agem no Vale do Javari e principalmente nos Yanomami”.
Para Douglas Rodrigues, quanto mais fácil o acesso a centros urbanos, maiores os cuidados demandados. Ele elenca populações indígenas que vivem em locais de fácil acesso a centro urbanos: “o pessoal do Sul e do Sudeste (incluindo os Guarani), ou mesmo os do Nordeste, alguns do Centro-Oeste (como os Xavante, que vivem em cidade) e da Amazônia aqueles que têm mais acesso à cidade”.
Caso um indígena na cidade apresente os sinais usuais de gripe, o médico sanitarista da Unifesp recomenda que a pessoa fique na cidade e evite voltar à aldeia. O médico cita o caso de uma comitiva de indígenas do Xingu que esteve em Brasília para reuniões com governantes.
“Recomendei que ficassem na cidade. Voltaram com problemas respiratórios, mas provavelmente não Coronavírus. Foi uma viagem feita antes de se ter a confirmação da transmissão sustentada”, explica o médico, que resume:
“Temos que tomar muito cuidado, no sentido de garantir a segurança do território indígena e a Sesai de garantir um atendimento em tempo hábil”.
Para o médico, referindo-se ao contexto nacional geral, muita gente vai ficar doente. “Não temos como diminuir. Temos como aumentar o tempo de crescimento da epidemia para não sobrecarregar demais o sistema de saúde. Pois sobrecarregado ele será”, disse ele.
O médico também chama atenção para os cuidados que os próprios indígenas devem tomar para o coronavírus não se alastrar nos territórios. A “recomendação é de diminuição de atividades e resguardo”, afirma.
Já existem casos de transmissão sustentada em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. “Em outros lugares também deve ter, mas não tem agilidade de informação”, observou.
Apesar da gravidade da situação, medidas simples que todos devem adotar são as mais eficazes para evitar que o contágio se alastre. São elas: evitar aglomerações, lavar as mãos com qualquer tipo sabão, evitar compartilhar objetos pessoais como talheres, toalhas e cuias, evitar levar as mãos ao rosto e diminuir “as atividades não-urgentes, não juntar muita gente”.
Particularidades do contexto indígena
Uma das principais preocupações do médico Douglas Rodrigues quanto a uma possível chegada do coronavírus a territórios indígenas, ainda que não existam casos graves, diz respeito à economia e à circulação de alimentos de consumo básico.
Indígenas costumam ir à “roça duas ou três vezes por semana, tem que pescar diariamente, fazer coleta, etc.…”. Para Rodrigues, isso significa que “outras medidas de suporte terão que ser dadas: comida, suprimento de água, e assim por diante. Isso, para que ele [o indígena] não tenha que sair para a cidade”.
O médico se preocupa particularmente com a alta transmissão do novo vírus pelas mãos e objetos: “em aldeias, se compartilha as cuias, o pessoal termina de beber e compartilha com os outros, a mesma coisa com talheres”.
Ele lembra que medidas que surtiram efeito positivo na contenção do vírus em Taiwan, na Ásia, como a limpeza obsessiva de maçanetas de transporte públicos, podem também ter eficácia entre nós.
Rodrigues diz também que falta o saneamento básico nas aldeias, e questiona “a qualidade da água utilizada para essa higienização”. “Na minha realidade, é comum passar por aldeias sem saneamento básico”, relembra o médico.
Ele conta o caso de uma recente visita ao Xingu, no Mato Grosso, em que, com igarapés secos e aldeias sem sistema de água, os indígenas tinham que caminhar dois quilômetros para chegar à água: “pode em algumas situações, ser um complicador para alastrar a transmissão”.
Ainda sobre as particularidades do contexto indígena, Rodrigues reflete sobre a eventual necessidade de se isolar um doente. “Como vai isolar, casas comunais com 15, 20, 30 pessoas? Será que pode isolar uma casa comunal?”, questiona o médico.
Para Rodrigues, na situação em que se encontra a pandemia, a solução é “falar com os índios diretamente”.
“Trazer informações técnicas e ouvir deles possibilidades de enfrentamento, eles que conhecem como funcionam, como são… isso é a maior recomendação que eu tenho para fazer aos gestores de saúde indígena: vai escutar os caras”, afirma o sanitarista.
Xingu pode fazer quarentena
A exemplo de outras lideranças do Movimento Nacional Indígena, Ianucula Kaiabi, presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), anunciou nesta segunda-feira (16) que a organização emitiu “um comunicado às comunidades xinguanas sobre a diminuição das atividades, das reuniões internas, de visita às cidades do entorno, bem como os cuidados pessoais que os órgãos de saúde estão nos obrigando a fazer”. Leia a cartilha de prevenção ao coronavírus.
Na região vivem 16 povos. Ianucula disse à reportagem da Amazônia Real que, para a efetivação das medidas de prevenção ao coronavírus, a organização conta com o apoio dos caciques e outras lideranças do território do Xingu, que fica no nordeste do estado do Mato Grosso. Segundo ele, as orientações são: colocar em quarentena pessoas que estiveram fora da aldeia e voltaram apresentando problemas respiratórios.
A liderança ressalta, ainda, o cuidado na forma de orientação aos diferentes povos do Alto Xingu: “são costumes diferentes, que variam de povo para povo. Estamos pedindo que cada comunidade, de cada região, adote seus protocolos de segurança. As comunidades estão cientes, e algumas estão tomando inclusive medidas mais rígidas que a Atix”.
Ianucula Kaiabi sintetiza a estratégia: “nossa preocupação é que possíveis pessoas que possam ser transmissoras adentrem as terras indígenas. Enquanto isso não acontecer, as aldeias são os lugares mais seguros que temos agora”.
Sobre a falta de orientações por parte da Sesai, a liderança indígena reclama: “estamos cobrando que os órgãos de Saúde de governo tomem medidas e recomendações. Ainda estamos aguardando isso”.
Todas as medidas e precauções que a Atix tem tomado são “iniciativas da própria organização, porque tem os órgãos do Estado que trabalham com a gente nas Terras Indígenas, mas acredito que a burocracia esteja retardando a comunicação deles”.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a contaminação pelo Covid-19 se espalha de maneira semelhante à gripe, pelo ar após a tosse, coriza e a liberação de gotículas de quem está infectado. Os sintomas são: febre, tosse, coriza e dificuldade para respirar. Pessoas com mais de 50 anos de idade estão mais vulneráveis, principalmente os idosos. Quem está com o sistema imunológico debilitado e possui doenças crônicas, como as cardiovasculares, diabetes ou infecções pulmonares também pode adoecer gravemente.
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Imagem: O médico Douglas Rodrigues na Base do Xinane da Funai, em 2014 (Foto: Arquivo pessoal)
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Geralda Chaves Soares.