Na esteira do tráfego aéreo, a pandemia espalhou-se — interrompendo fluxos de produtos e pessoas. Rompeu-se, mesmo à força, o “imperativo da fluidez”, descrito por Milton Santos, revelando: podemos viver sem correr e consumir tanto
por Antonio Gomes de Jesus Neto*, em Outras Palavras
Se há algo inerente à humanidade, é o movimento. Por exemplo, não seria possível pensar o continente africano atual sem as milenares migrações bantu e, na escala mundial, a China se lançou aos mares antes mesmo dos portugueses darem início ao que se chama, romanticamente, de Grandes Navegações. No século XIX, os trens e telégrafos ingleses mudaram a forma (e a velocidade) pela qual o planeta interagia, e daí à aviação comercial, já no século XX, foi um pulo. Assim, entramos no século XXI animados com a possibilidade de circular rapidamente pelo mundo em poucas horas (senão em um clique), mas sem pensar nas possíveis consequências disso.
As primeiras notícias vindas da China pela internet sobre um tal coronavírus não ganharam tanta repercussão por aqui, mas quando os chineses foram obrigados a diminuir o ritmo, e a economia mundial começou a estremecer porque os insumos e produtos chineses não estavam chegando onde deveriam, já havia sinais de que a circulação (marítima, no caso) seria afetada. Ironicamente, isso partia do país cujo principal plano para se tornar a grande potência mundial nas próximas décadas chama-se Belt and Road Initiative (que em português, tem sido chamada de Nova Rota da Seda), que visa a construção de uma infraestrutura monstruosa de circulação que integraria ao menos três grandes continentes: Ásia, África e Europa.
Mas não são apenas as mercadorias que cruzam o mundo aos milhões (bilhões?), e diariamente. As pessoas também o fazem, e para essas grandes distâncias geralmente usam aviões, mesmo com os recentes alertas de Greta Thunberg sobre o quanto isso custa para o planeta. Entre essas pessoas todas, incluem-se alguns milhares (milhões?) de chineses, que continuaram circulando pelo mundo por não saberem exatamente o que era esse novo coronavírus. Daí em diante, os aeroportos tornaram-se os principais vetores de difusão do vírus, e uma comparação entre o mapa-múndi do covid-19 e um mapa de fluxos aéreos de passageiros pelo globo pode ajudar a explicar muita coisa.
As principais áreas de incidência do novo coronavírus, representadas pelos círculos vermelhos maiores e mais concentrados, são praticamente as mesmas representadas pela cor vermelha no mapa-múndi do tráfego aéreo, que indica a maior densidade de fluxos globais de passageiros. Ambas estão basicamente localizadas no hemisfério Norte, e correspondem grosseiramente aos territórios dos Estados Unidos, da União Europeia, do Oriente Médio e do leste asiático, com destaque ao litoral da China, à Coreia do Sul e ao Japão.
No hemisfério Sul, tanto o covid-19 quanto os fluxos globais se tornam mais rarefeitos, e suas concentrações seguem uma tendência parecida. Na América Latina, cabe destaque ao Brasil, e mais especificamente à cidade de São Paulo, o que explica basicamente o que estamos passando por aqui atualmente. No continente africano, bem pouco inserido nos dois fenômenos até agora, chama atenção os números da África do Sul. E na Ásia/Oceania, praticamente se repete uma linha que passa por Malásia, Singapura e Indonésia, e depois se intensifica novamente na costa meridional da Austrália.
Assim, aparentemente ligado à circulação aérea, em poucas semanas o coronavírus se espalhou e ligou um alerta mundial. Com muitas mortes se acumulando, era preciso fazer algo, e um após o outro os governos foram tomando medidas drásticas, dentre as quais a principal: restrição à circulação. As fronteiras se fecham, as pessoas são orientadas a ficar em casa (ou proibidas de sair), os aeroportos tornam-se fantasmas. O recado é claro: “por favor, parem de circular”. Essas pessoas, então (as que podem, claro), confinam-se em casa, e aposta-se que a economia será salva pelo que a internet, que não demandaria circulação física, pode proporcionar. Será?
Em primeiro lugar, engana-se profundamente quem pensa que a internet dispensa circulação física. Por exemplo, para você ler este texto, seu dispositivo mandou um pacote de dados pedindo para que o servidor onde está hospedado Outras Palavras mande o conteúdo para você, digamos que no seu celular. Para isso, seu celular emitiu uma onda eletromagnética que foi recebida por uma antena, de onde seu pacote de dados foi jogado em um cabo de fibra ótica e, dependendo de onde você está, cruzou o Oceano Atlântico duas vezes até voltar para você. Em milissegundos. Ora, não estamos falando de circulação? A luz, e as ondas, não fazem parte da física?
Mas não é só isso. Que precisamos pegar leve com a circulação marítima, aérea e terrestre, parece que ficou claro. Mas e essa circulação de dados, não precisa de limites? Vamos ficar agora o dia todo gerando dados para plataformas como Google, Facebook, WhatsApp, Amazon, Youtube, Netflix e etc.? Já não sabemos o que isso significa? Adianta alguma coisa ficar manhã, tarde e noite sendo bombardeado pelas infindáveis informações sobre o “novo coronavírus/covid-19”? Ou isso mais angustia do que ajuda na atual situação? Não, não devemos entrar nessa megalomania da informação, da mesma maneira que não devemos entrar nos supermercados e comprar todo o estoque que nossos braços puderem aguentar, como se o amanhã só existisse para os mais rápidos.
Nos hoje longínquos anos 1990, quando essa história de internet ainda engatinhava (mas os carros, caminhões, trens, navios e aviões já alcançavam velocidades inimagináveis 50 anos antes), Milton Santos, um geógrafo brasileiro, negro, e que tinha vivido muitos anos rodando o mundo exilado pela ditadura militar brasileira, já falava de um “imperativo da fluidez”. Para ele, criou-se um modus operandi econômico onde a concorrência voraz seria vencida sempre pela velocidade, e por isso era preciso circular cada vez mais e mais rápido, do contrário ficar-se-ia pelo caminho. Não estaríamos, afinal, presos nisso?
Mas Milton Santos também via uma saída nessa história toda, e apostava firmemente na lentidão como uma forma alternativa de racionalidade, que acabaria por colocar um limite a essa vertigem contemporânea, e que, para ele, seria a racionalidade dos pobres, migrantes e excluídos. De alguma maneira, é a mesma leitura feita por Godfrey Reggio, e musicada por Phillip Glass, em Koyaanisqatsi e Powaqqatsi, onde a uma intensificação suicida da velocidade em nossa desequilibrada sociedade industrial, contrapõe-se a potência transformadora de sociedades do Terceiro Mundo, que resistem e insistem em tocar a vida em suas próprias velocidades.
Com esse desacelerar forçado que estamos vivendo, começam a surgir notícias de diminuição visível da poluição em várias partes do mundo, como na China e na Itália. Forçosamente, pouco a pouco vamos refletindo (oxalá) nas grandes cidades que é possível (e desejável) viver sem correr e consumir tanto, e que talvez não seja necessário circular tanto (gastando tanto combustível) como imaginamos.
Confio que sobreviveremos a essa pandemia (infelizmente não todos), mas depois dela precisaremos dosar drasticamente nossa velocidade. Não parar, pois circular é da nossa essência, e não existe sociedade que não dê suas voltas. Mas é urgente que desaceleremos, e que olhemos positivamente para a lentidão como tantos povos já olham, e não damos a mínima bola. Do contrário, podemos não sobreviver à próxima.
Gostaria de agradecer ao Bruno Costa, por ter chamado a atenção à comparação entre os mapas do covid-19 e dos fluxos aéreos de passageiros, e ao Igor Venceslau, pela leitura prévia do texto e pelas sugestões.
*Doutorando em Geografia Humana na USP, com o tema da circulação.