Jornalismo em tempos de pandemia. Por Alceu Castilho

Em Alceu Castilho

Não postei nada ontem sobre o Dia do Jornalista. Um pouco porque foi um dia de muito trabalho. Mas também — e não é muito fácil admitir isso em um momento como este — por um certo constrangimento. Não me orgulho do que faz parte significativa de meus colegas. Pelo contrário: deploro.

Sim, compartilho da homenagem a todos aqueles que honram seu juramento. E àqueles que correm risco nas ruas. Mas no primeiro caso não são tantos assim. Mesmo que eu impute boa parte das responsabilidades aos patrões, há excessivo comodismo. Paramos de nos repensar.

A defesa da ciência e da educação e de direitos elementares não foi feita. A defesa da democracia não foi feita. E todas essas distrações contribuem para o quadro peculiar do coronavírus no Brasil: a ascensão ao poder de um presidente fascista e negacionista. O que fizemos contra isso?

A multiplicação das falsas simetrias deverá constar na história do nosso genocídio. Chefetes de todo o país engoliram goela abaixo a imposição de um golpe, em 2016, e a implosão de direitos (como os trabalhistas) e orçamentos (como o da saúde), ingredientes da matança que se inicia.

Certo, a Globo tem sido mais contundente em defesa da quarentena. Mas lá vai um apresentador da Globo News correr no calçadão e dizer que ele não é do “grupo de risco”. Ele que pregara o isolamento e exercícios apenas em seu domicílio. A direita adorou, claro. Pela hipocrisia.

O caso acima mostra que o problema não está só nos donos. Ainda que não possamos minimizar o poder de destruição de um jornal. Leio na Gazeta do Povo de anteontem notícia sobre a Suécia, como modelo alternativo ao isolamento. Notícia velha! O país errou feio e já está revendo a decisão.

A velha falta de habilidade (ok, uma questão técnica, não ética, mas…) com a matemática e com as estatísticas não permite a nossos jornalistas muita desenvoltura na análise de dados. E por isso ainda lemos aqui e ali coisas estapafúrdias, enquanto vemos minimizações da pandemia.

A cobertura pusilânime em relação a Jair Bolsonaro também faz parte desse pacote flácido. No caso do Brasil, o pedido de impeachment (ou renúncia, interdição, engaiolamento, o que seja) do presidente deveria ter vindo como aquelas capas unificadas de cobertura do corona: todos juntos.

Porque aqui temos um genocida. Simples. Relativizar isso seria como ponderar, em Auschwitz, que os campos de concentração geravam alguns empregos. Há pouca ênfase, há um jornalismo cheio de dedos (e medos empresariais) em relação à deposição urgente do psicopata.

Já escrevi por aqui que deveríamos estar tendo Roda Viva todo dia. (Com escolha melhor dos entrevistados, Vera, faça-me o favor.) E muito mais que isso: cobertura jornalística ampliada em vez de novela reprisada. Estamos nos apegando a um modelo anterior, a um mundo que já se foi.

Não podemos cair em uma espécie de entretenimento da pandemia. Não podemos sair romanticamente em busca de heróis precoces enquanto vilões permitem uma matança em escala muito maior do que poderíamos ter. (Não podemos aceitar que é legal enxugar gelo.)

Só que não temos mecanismos amplos de crítica da profissão. O Observatório da Imprensa morreu com Alberto Dines. A representatividade dos sindicatos foi indevidamente substituída pela fala de uma associação de jornalismo investigativo. (Que tem uma função, mas não essa.)

E quem nos salvará — a citação é do Jogo da Amarelinha — desse fogo surdo? Esses patrões brasileiros da comunicação calaram a voz dos jornalistas críticos. Em plena ditadura tínhamos comunista dirigindo redação. Hoje temos pelego do Edir Macedo e negacionista do racismo.

Fomos implodidos. E não só salarialmente. Na imprensa alternativa navegamos contra a falta de recursos. Algumas das coisas que publicamos são mais do que relevantes. Mas coleguinhas da grande imprensa ignoram, empurram para debaixo do tapete narrativas que não convêm aos donos.

Quantos deram espaço sistemático para a implosão da ciência? Ou deram nome às políticas racistas contra indígenas desse governo fascista? De que adiantará, agora, publicarem gráficos moderninhos sobre as mortes se a imprensa apertou gatilhos sem dó lá atrás?

O jornalismo em tempos de pandemia é aquele mesmo de antes: serviçal. O mínimo de comoção gerada pela morte de quem frequenta aeroportos internacionais não pode esconder que profissionais da imprensa, de mãos dadas com oligarcas infames, assinam também o genocídio.

Destaque: Hieronymus Bosch – A Violent Forcing Of The Frog (detalhe).

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