Bolsonaro usa substância para agitar sua base. Defende uso até em casos leves. Nenhuma evidência o embasa. Mal administrada, droga pode levar à morte. Leia também: agrava-se drama da pandemia no Amazonas e Ceará
Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
CLOROQUINA: REMÉDIO POLÍTICO
O presidente Jair Bolsonaro entrou em cadeia nacional de rádio e TV ontem pela quinta vez desde que a epidemia de coronavírus começou. Desta vez, o destaque do pronunciamento foi a defesa da cloroquina – a mais recente panaceia do governante brasileiro. “Instruí meus ministros. Após ouvir médicos, pesquisadores e chefes de Estado de outros países, passei a divulgar, nos últimos 40 dias, a possibilidade do tratamento da doença desde sua fase inicial”, disse.
Bolsonaro resolveu abandonar qualquer cautela. Em seu pronunciamento anterior, havia pelo menos citado que há dúvidas científicas em relação ao seu uso. “O vírus é uma realidade, ainda não existe vacina contra ele ou remédio com a eficiência cientificamente comprovada. Apesar da hidroxicloroquina parecer bastante eficaz”, disse em 24 de março.
Ontem, antes da exibição do pronunciamento, Bolsonaro deu uma entrevista a um de seus aliados na mídia, José Luiz Datena, em que deixa mais claro seu propósito político: “Nós tínhamos que mostrar um possível norte”. Pouco importa que esse “norte” seja extremamente precário – já que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina (que são formulações diferentes) é motivo de estudos no mundo todo, assim como outras várias substâncias o são.
Se não há consenso científico a respeito desse tratamento, há menos ainda quando o assunto é receitar as substâncias para casos leves. Mas o presidente brasileiro foi além e praticamente incentivou a automedicação. “O elemento está em casa, tossindo. É como dizem os médicos, eu não entendo desse assunto, começa a sentir falta de ar, você não sente gosto, perde o olfato também, você tem que ir atrás de um médico para fazer… Às vezes você fazer o teste, demora. Tem que ser aplicado em você”, disse a Datena, tentando consertar na sequência: “Logicamente a gente tem uma preocupação para que não haja uma corrida para a busca desse material, que deve ser administrado, sim, de acordo com recomendação médica, tem que ter um receituário específico para isso.”
Mas Bolsonaro é hábil nesse jogo narrativo e, no pronunciamento de ontem, transmite a impressão de que o uso da droga para o tratamento é certeza de cura – e introduz na cena um personagem bastante popular na política, o cardiologista Roberto Kalil, que tratou de Lula e Dilma. “Há pouco conversei com o doutor Roberto Kalil. Cumprimentei-o pela honestidade e compromisso com o juramento de Hipócrates, ao assumir que não só usou a hidroxicloroquina, bem como a ministrou para dezenas de pacientes. Todos estão salvos. Disse-me mais: que, mesmo não tendo finalizado o protocolo de testes, ministrou o medicamento agora, para não se arrepender no futuro. Essa decisão pode entrar para a história como tendo salvo milhares de vidas no Brasil”.
Vamos problematizar por partes. Primeiro, diferente do que conta Bolsonaro, essa história começa não “nos últimos 40 dias”, mas em 19 de março. Foi o dia em que seu maior ídolo, Donald Trump, começou sua campanha – a original – pelo uso da substância no tratamento à covid-19. No dia 20, quando ainda frequentava reuniões ao lado de Luiz Henrique Mandetta, Bolsonaro ouviu o empresário Abílio Diniz perguntar sobre a substância propalada por Trump.
A fala do presidente dos EUA provocou corrida às farmácias e desabastecimento no mundo todo, prejudicando milhares de pessoas. De acordo com a Anvisa, a cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos registrados para o tratamento de artrite, lúpus, doenças fotossensíveis e malária. A Agência brasileira foi obrigada, naquele 20 de março, a restringir a sua venda, exigindo receita médica em duas vias.
No dia seguinte, um sábado, começou a campanha do presidente brasileiro pelas substâncias. Foi quando Bolsonaro gravou o vídeo em que anuncia que os laboratórios das Forças Armadas ampliariam a produção de cloroquina.
PROTOCOLO NACIONAL
No Brasil, em 25 de março, o Ministério da Saúde liberou o uso em tratamento de pacientes hospitalizados com quadros graves. Desde sempre foi feita a ressalva de que havia “lacunas no conhecimento” sobre a droga. Em 3 de abril, a Pasta ampliou a indicação de uso também para casos moderados, quando os pacientes passam por atendimento hospitalar.
Mesmo assim, o presidente brasileiro não está satisfeito. Ele quer que seu governo apresente uma “cura” mesmo que fake. De lá para cá, como sabemos, a relação entre Bolsonaro e Mandetta se deteriorou, primeiro por conta da defesa do “isolamento vertical”, que vem sendo apagada, em parte, pela cloroquina. O governante se cercou de médicos como Nise Yamaguchi que defendem o uso da substância ao menor sintoma da doença.
Diante da pressão, Mandetta pediu para que o Conselho Federal de Medicina se posicione sobre o assunto até o dia 20 de abril. Na terça, durante a coletiva de conciliação com o Planalto, o ministro da saúde afirmou que a Pasta não vai tomar medidas contra médicos que prescreverem a cloroquina para pacientes nos estágios iniciais da doença. “Ninguém vai reter a receita de ninguém”, disse.
Ontem, contudo, houve uma tentativa de imprimir alguma razoabilidade ao debate. Na coletiva para a imprensa, Mandetta afirmou que receitar cloroquina a gente que acaba de sentir os sintomas não faz muito sentido, já que a maioria dos infectados não tem complicações e se recupera sem problemas. Além disso, frisou, há efeitos colaterais: “Esse medicamento não é inócuo, não é um remédio que a gente fala ‘isso não tem problema nenhum’”. Para idosos, exemplificou, pode provocar arritmia cardíaca e, no limite, infarto do miocárdio.
Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério, já havia explicado essa semana: “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esse medicamento pode produzir um prolongamento de uma dessas fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”. Nova orientação publicada pelo American College of Cardiology alerta que a hidroxicloroquina aumenta o risco de que alguns pacientes tenham batimentos cardíacos irregulares que poderiam ser fatais.
E OS ESTUDOS?
Em meados de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou testes com cloroquina. Ao G1, o organismo internacional informou que o uso da cloroquina combinado com o antibiótico azitromicina é uma das quatro combinações de medicamentos que estão em fase de testes em 74 países e cujos resultados são monitorados pela organização. Mas a OMS ressalta: “até agora, nenhum produto farmacêutico se mostrou seguro e eficaz para tratar a covid-19”.
A Anvisa também adota tom parecido: “Apesar de dados promissores, ainda não existem estudos conclusivos que comprovam o uso desses medicamentos para o tratamento da covid-19″, informou ao Estadão na terça.
Mas o fato é que aquele primeiro “oba, oba” de Trump em torno das substâncias foi mais ou menos embasado em dois estudos publicados no mês passado, um feito com pacientes chineses e outro em franceses, que constatarem que a cloroquina, quando associada ao antibiótico azitromicina, seria eficaz no tratamento.
À Galileu, Seley-Radtke, pesquisadora da Universidade de Maryland, explica que, no caso do estudo francês, embora alguns dos resultados tenham encorajado o uso do remédio, é importante lembrar que a maioria das pessoas tratadas apresentava sintomas leves da infecção pelo novo coronavírus. “Além disso, 85% dos pacientes nem tiveram febre, que é um dos principais sintomas da doença”, afirmou a cientista. “[Isso] sugere que esses pacientes provavelmente teriam eliminado o microrganismo naturalmente, sem nenhuma intervenção.” E, acrescentamos nós, sugere também que o uso indiscriminado em casos leves pode aumentar a sensação geral de que o medicamento funciona. Já no caso do estudo chinês, ela diz que o artigo foi mal traduzido, o que obscureceu as primeiras interpretações dos resultados. A comunidade científica em peso tem descrito os problemas metodológicos da pesquisa.
No Brasil, a Anvisa liberou a cloroquina e a hidroxicloroquina para pesquisas clínicas. Uma delas é coordenada pela Fiocruz e, embora ainda não tenha sido concluído, falamos ontem aqui do resultado preliminar que aponta que a taxa de morte de quem usou a cloroquina no tratamento é a mesma daqueles que não usaram. Outro desses estudos é tocado pela “Coalização Covid Brasil”, que reúne instituições como Albert Einstein, Sírio Libanês e Hospital do Coração, envolverá 1,3 mil pacientes em 70 hospitais e terá seus resultados divulgados em dois ou três meses.
Outra iniciativa está sendo tocada pela operadora de saúde Prevent Senior, de reputação científica bem menos estabelecida, para dizer o mínimo. A empresa afirma que, até agora, 500 pacientes receberam hidroxicloroquina no estágio inicial da doença. Desses, 300 foram internados e já receberam alta. Mas eles não divulgam quantos pacientes foram tratados nessa modalidade nem as taxas de mortes com o uso do remédio nos estágios iniciais da doença. A operadora estuda tratar gente que poderia receber o medicamento em casa. Soa familiar? O diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Batista Júnior, deu uma entrevista à Exame, em que afirma: “O que posso dizer é que os dados são robustos e trazem esperança de tratamento adequado para a população”. Música para os ouvidos de Bolsonaro, não é?
Cientistas, contudo, têm bem mais dúvidas do que Batista Júnior. “Os dados que nós temos não são suficientes para bater o martelo e dizer que funciona. Mas nem por isso a gente vai deixar de estudar. Em muitos serviços a cloroquina está sendo administrada de maneira indiscriminada, quem sou eu frente ao que se sabe de ciência agora para aplaudir ou condenar os serviços que estão fazendo dessa forma? Eu só acho que ainda carece de dados mais robustos, mais consistentes. E em breve a gente vai ter”, disse Wladimir Queiroz, médico infectologista do Hospital Emilio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia em entrevista ao G1.
Na mesma reportagem, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, lembra que a substância não é a única ‘saída’. “O mundo não está tratando a covid-19 só com a cloroquina, muito pelo contrário. A experiência mostrou que o resultado em reduzir a mortalidade foi nulo. Há outras alternativas que foram usadas para pacientes graves, com a pneumonia causada por ela”, explicou, acrescentando: “Há países que estão testando soluções anti-inflamatórias biológicas, estão testando o uso de infusão de plasma. Há várias terapias que estão sendo testadas, mas até o momento nenhuma delas se mostrou nem melhor que a outra e nem capaz de reduzir substancialmente a mortalidade”.
Aqui mesmo, no Brasil, há um exemplo de que a cloroquina não é “cura”. A primeira vítima do vírus na Bahia, um homem de 74 anos que ficou internado durante 12 dias, foi medicado com a cloroquina e, mesmo assim, morreu.
OUVIDOS MOUCOS
Mas Jair Bolsonaro no pronunciamento de ontem anunciou que vai gastar muito dinheiro público produzindo cloroquina: “Temos mais boas notícias. Fruto de minha conversa direta com o primeiro-ministro da Índia, receberemos, até sábado, matéria-prima para continuarmos produzindo a hidroxicloriquina, de modo a podermos tratar pacientes da covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”.
Na vanguarda do uso dessa arma política, Donald Trump afirmou no sábado que ele próprio poderia tomar a hidroxicloroquina, e ainda ajudou a fortalecer o boato (chamado por ele de “estudo”) de que pacientes com lúpus que tomam o medicamento não desenvolvem covid-19. Atenção: a Aliança Global de Reumatologia compilou dados de 167 pessoas com condições reumatológicas, incluindo lúpus, que haviam contraído covid-19 até a última sexta. Concluiu que mais de 25% dos que estavam fazendo uso de hidroxicloroquina foram infectados com covid-19.
Por lá, sob influência de Trump, há uma grande confusão em relação às orientações do governo relacionadas a essas substâncias. A FDA (Food and Drug Administration) aprovou no sábado emergencialmente e de forma limitada o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina nos Estados Unidos. Já o Centro de Prevenção e Controle de Doenças retirou de seu site as orientações para médicos sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.
A jornalista Marina Rossi, do El País, faz uma boa observação: “Nos EUA, analistas políticos argumentam que Trump cumpre seu roteiro de sempre: se agarrar em uma visão ‘otimista’ e ‘antissistema’, dessa vez em relação à pandemia. No caso de as drogas comprovadamente se mostrarem efetivas, o presidente dos EUA poderá dizer que se antecipou aos especialistas ‘do sistema’. Caso não dê certo, o ocupante da Casa Branca tem experiência em apenas mudar o foco da conversa e ignorar a campanha anterior. Não seria a primeira vez que Bolsonaro seguiria seu script.”
DE NOVO, A TORCIDA
Por aqui, o uso da cloroquina virou um pompom entregue por Bolsonaro para que apoiadores agitem nas redes sociais. O presidente agora ataca os adversários políticos, como o governador de São Paulo João Doria, e o ex-presidente Lula, a partir de seus médicos: “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz. Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da covid-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do governador de SP?”, escreveu no Twitter.
A campanha contra o chefe do comitê contra a covid-19 em SP, Davi Uip, começou há dias. Bolsonaristas o pressionaram a dizer se havia feito uso do medicamento. “Não há nenhuma importância no que eu tomei ou deixei de tomar. O que é importante é que eu não me automediquei. O resto é absolutamente pessoal”, rebateu Uip.
Já Roberto Kalil, cardiologista do Hospital Sírio Libanês, mencionado ontem no pronunciamento e no Twitter, afirmou à rádio Jovem Pan que usou a hidroxicloroquina, depois que um dos médicos que o tratava propôs seu uso. Ele ponderou, no entanto, que a droga foi apenas uma de várias que ele usou para se tratar. Ele disse que foi uma “surpresa” a menção ao seu nome e não quis detalhar o que achou do pronunciamento.
Doria aproveitou a ocasião para consolidar a posição no centro que vem adotando durante a epidemia: “Não faz sentido atacar o médico David Uip, pelo dito gabinete do ódio. E nem o doutor Roberto Kalil. Por favor, respeitem os médicos e a medicina, os enfermeiros, aqueles que estão doando seu conhecimento e dedicação para ajudar as pessoas a manterem sua saúde”.
JÁ ESTÁ INFLUENCIANDO
Toda essa onda em torno da cloroquina e hidroxicloroquina já está influenciando as medidas tomadas pelos estados e municípios. O governador do Piauí Wellington Dias anunciou ontem a compra das substâncias e disse que um protocolo está sendo elaborado para a administração dos remédios.
Também o Ceará adotará protocolo para o uso de cloroquina. A ideia é que medicações sejam utilizadas assim que os pacientes forem internados. O governo de Camilo Santana afirma que com isso, tem o objetivo nada fundamentado de reduzir em 20% a necessidade de UTIs.
No Rio, a prefeitura regularizou o uso da cloroquina para tratar coronavírus na terça (7).
E, de olho na oportunidade, farmácias de manipulação já buscam informações sobre hidroxicloroquina.
PANELAÇOS
No pronunciamento de ontem, Bolsonaro expressou pela primeira vez solidariedade com os familiares das vítimas da covid-19. “Gostaria, antes de mais nada, de me solidarizar com as famílias que perderam seus entes queridos nessa guerra que estamos enfrentando.” Não comoveu a população que respondeu com panelaços em diversas cidades brasileiras, como São Paulo, Rio, Recife, Salvador, etc. Ouviram-se muitos gritos de “Fora Bolsonaro!”. Em alguns bairros, há protestos todo santo dia.
E uma das categorias profissionais que mais fez pressão pelo impeachment de Dilma Rousseff, os médicos, estão virando suas baterias contra Jair Bolsonaro. A BBC Brasil ouviu algumas médicas que estão batendo panelas contra o presidente brasileiro. Segundo elas, ele “debochou da saúde pública” e “começou a cair a ficha”.
Bolsonaro, que gosta tanto de dizer que respeita a voz do povo, resolveu relativizar: “Não está na hora de derrubar o presidente”, disse a Datena ontem.
AUTONOMIA
Todos sabemos que a primeira cruzada de Jair Bolsonaro nessa epidemia foi contra as medidas de distanciamento social adotadas pelos governadores país afora e recomendadas pelo Ministério da Saúde e autoridades internacionais. Ele chegou a dizer, semana passada, que poderia dar uma “canetada” para reabrir o comércio em todo o país.
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, consolidou a interpretação jurídica de que o governo federal não pode afastar unilateralmente medidas de prefeituras e governos estaduais.
Também ontem, no pronunciamento, ele voltou a tentar virar a população contra as autoridades locais: “Respeito a autonomia dos governadores e prefeitos. Muitas medidas, de forma restritiva ou não, são de responsabilidade exclusiva dos mesmos. O governo federal não foi consultado sobre sua amplitude ou duração.”
VAI PIORAR
Logo depois de dar uma entrevista ao jornal O Globo falando da situação do Amazonas – informando que 95% dos leitos já estão ocupados muito antes do pico de covid-19 e que esperava “pelo pior” –, o secretário de saúde do estado, Rodrigo Tobias, caiu. Quem assume em seu lugar é a biomédica Simone Papaiz, que comandava a saúde em um lugar completamente diferente: Bertioga, um pequeno município com 63 mil habitantes no litoral paulista. Mandetta criticou a troca: “Hoje teve troca de secretário e nos preocupa muito. (…) Precismos de pessoas que estejam habituados com a rede para que não tenha que começar tudo do zero”.
E na segunda cadeia mais populosa do estado, a Unidade Penitenciária de Puraquequara, dezenas de detentos estão doentes com sintomas de covid-19. A denúncia da Pastoral Carcerária Nacional e é detalhada pela Agência Pública, que também conversou com familiares e obteve áudios dos presos. “Hoje eu fui pro atendimento na enfermaria, muitos dos presos estavam passando mal aqui. Chegando lá em cima, a gente viu uma situação preocupante. Dentro da enfermaria tinha um interno que estava algemado, mas ele não estava na maca [com] os outros irmãos. Ele tava separado num quarto, isolado”, diz um deles. A Secretaria de Administração Carcerária nega a denúncia, diz que não registro de presos infectados ou com sintomas. E que não testou ninguém.
Se o Amazonas é uma bomba-relógio, o Ceará já explodiu. Fortaleza é hoje a capital brasileira com a maior taxa de infectados – 34,7 a cada 100 mil habitantes – e a doença está em 90% dos bairros da cidade. Dos 184 municípios do estado, há registros de infecções em 45. E a previsão é que a fase mais aguda do contágio aconteça só no fim do mês… O governo já requisitou o uso do hospital privado Leonardo da Vinci, que tem 230 leitos de internação e UTI e estava fechado há nada menos que 13 anos. Teve que ser reformados para receber os pacientes. Já está sendo ocupado. Outros hospitais particulares, em funcionamento ou desativados, também foram requisitados. Em paralelo, estão sendo construídos hospitais de campanha e um hospital emergencial em um estaio de futebol.
CALAMIDADE LOCAL
O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, decretou estado de calamidade pública ontem à noite. O texto, publicado no Diário Oficial, diz que a pandemia “impede o cumprimento das obrigações financeiras, orçamentárias e fiscais”. O estado já tinha decretado calamidade no último dia 20; a capital tem 1,4 mil casos confirmados e 73 mortes por covid-19.
AO MESMO TEMPO
Como se não bastasse o coronavírus, a dengue este ano anda pior do que o ano passado. Em todo o país, o volume está 70% maior que em 2019, e sete estados estão em patamar de epidemia, com mais de 300 casos a cada 100 mil habitantes: Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, São Paulo, Acre e Distrito Federal. O Paraná concentra 158 mil dos 484 mil casos registrados até agora.
O problema não é só na disponibilidade de leitos para os casos graves, mas também no diagnóstico: “É possível confundir. Um paciente com febre alta, dor nos olhos, indica à primeira vista que se trata se dengue. Mas pode ser coronavírus, porque nem sempre esses pacientes vão chegar tossindo ou com falta de ar. E isso é perigoso, porque os tratamentos são diferentes. Mais importante: se for coronavírus e acharem que é dengue, esse paciente pode sair e transmitir”, alerta Claudio Maierovitch, sanitarista e pesquisador da Fiocruz, na Folha.
VERSÃO ENXUTA
A votação do chamado Plano Mansueto, que estabelece ajuda financeiro aos estados comprometidos com medidas de ajuste fiscal, foi deixado de lado na Câmara. Rodrigo Maia anunciou que ele deve ficar para o segundo semestre, enquanto por agora a Casa vai tentar votar, ainda hoje, um outro projeto com ações emergenciais específicas para o coronavírus. O texto garante auxílio mediante recomposição do ICMS e da abertura de linhas de financiamento; prevê suspensão da quitação de empréstimos, recebimento de auxílio para recompor perda de arrecadação e permite novo limite de endividamento.
ENFIM, DADOS
O Ministério da Saúde finalmente informou quantos testes para covid-19 o país já fez até agora: 62,9 mil (os 13,7 mil positivos representam 22% do total). Considerando que o plano era chegar idealmente a 50 mil testes por dia, é bem pouco. E considerando que a Pasta distribuiu 54 mil testes PCR (mais precisos) e 500 mil testes rápidos,… é realmente pouco. Com todos os testes para síndrome respiratória aguda grave, que podem indicar tanto o coronavírus como influenzas e outros vírus respiratórios, foram ao todo 163,9 mil.
A propósito: a Unicamp desenvolveu um teste até 10% mais barato e feito com insumos nacionais, a partir de parceria com uma empresa brasileira de biotecnologia. Os produtos já foram comparados e aprovados em relação aos importados. E mais importante que o preço é o prazo (e a certeza) da entrega: segundo o diretor da empresa, ela pode se dar em 3 dias, contra pelo menos 15 no caso das importações. O novo teste já está em uso no Hospital das Clínicas da Unicamp.
NOVAS COMPRAS
Ainda em meio à tremenda confusão que se instaurou na importação de insumos – como temos acompanhado, os EUA estão abocanhando a produção chinesa –, o Ministério também informou ontem que fechou o primeiro contrato para aquisição de respiradores de uma empresa brasileira, a Magnamed. Segundo Mandetta, ela tem capacidade de produzir normalmente de 400 a 500 aparelhos por ano, mas foi “redimensionada” pelo Ministério e a previsão agora é que sejam entregues seis mil respiradores nos próximos três meses. Até entendemos que aumentar a capacidade de produção não deve ser simples, e antes tarde do que mais tarde… Mas 90 dias parece uma eternidade nessa pandemia. Na previsão inicial do Ministério, o pico de casos no país seria este mês. Para outros especialistas, pode chegar um pouco depois. Dependendo da resposta, o caos ainda pode durar bastante. Mas, de toda forma, cada dia que passa é muito tempo.
Enquanto isso, Mandetta diz que vai continuar tentando comprar produtos chineses, que serão buscados diretamente por aviões brasileiros. Se os negócios se concretizarem, é claro. De acordo com ele, todas as compras do país até agora deram errado. “Tínhamos a proposta de 15 mil respiradores firmada com a China, para entregar em 30 dias. Mas foi descartada porque não tínhamos garantia. Agora, estamos buscando outro fornecedor”, disse.
PILOTO SECRETO
Mandetta disse ontem que o governo federal trabalha num plano piloto em uma favela para frear o coronavírus, mas não disse onde é, nem exatamente como vai ser. Só deixou claro que o Ministério vai “dialogar” com o tráfico e a milícia. “Hoje, começamos o primeiro plano de manejo, e eu não vou dizer em qual comunidade, porque ali você tem que entender a cultura, a dinâmica. Entender que são áreas onde, muitas vezes, o Estado está ausente, onde quem manda é o tráfico, a milícia… Como que a gente constrói esta ponte em nome da vida? A saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar. Então, neste momento, quando a gente faz este tipo de colocação, a gente deixa claro que todo mundo vai ajudar, fazer sua parte”.
É mais um plano que chega tarde – e nem chegou propriamente, já que é um “piloto” em uma única favela. Já há casos confirmados em algumas das maiores comunidades do Rio. Na Rocinha e em Manguinhos, são trẽs as mortes por covid-19. Nem ousamos estimar quantos casos se diagnósticos podem estar circulando. Como temos visto e comentado, há tempos os moradores tentam bolar por conta própria ações de enfrentamento, levantando campanhas pelo isolamento onde muitas vezes não é possível se isolar, tentando arrecadar água, sabão e álcool em gel onde muitas vezes não há saneamento básico, arranjando doações de comida onde vai ser muito difícil evitar a fome.
MAIS DE 20 MILHÕES
O número de trabalhadores informais que se cadastraram para receber o auxílio de R$ 600 já passa de 26 milhões. E olha que há dificuldades no site, devido ao volume de acessos, dificultando o cadastro. Ainda deve entrar muito mais gente.
Ainda no pacote de auxílios, o governo publicou ontem à noite uma MP isentando pessoas de baixa renda do pagamento de contas de luz, algo que Bolsonaro mencionou na sua fala à TV. Na terça, outra MP havia liberado o saque de R$ 1.045 por trabalhador de contas ativas e inativas do FGTS. A ideia é fazer o dinheiro circular, injetando recursos na economia.
PELA ECONOMIA
Também para segurar a economia – mais especificamente, para conter o dólar –, o Banco Central já vendeu US$ 25,4 bilhões em recursos das reservas internacionais brasileiras este ano. É quase o mesmo volume vendido ao longo de todo o ano passado.
A medida é contestada por Henrique Meirelles, que considera essas reservas como um seguro para o país. Grande estrategista do Teto dos Gastos no governo Temer e hoje secretário da Fazenda em São Paulo, ele agora defende que o governo precisa é gastar muito mais para conseguir salvar não só a saúde como a também a economia. Inclusive imprimindo dinheiro. “O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”, disse à BBC. “É uma despesa que tem começo, meio e fim. Acabou a pandemia, acabou isso, nós voltamos à normalidade, pode voltar à austeridade fiscal”.
SEM BLOQUEIO
A liminar da Justiça Federal de Brasília que havia bloqueado os fundos eleitoral e partidário, deixando R$ 3 bilhões para o governo federal usar na pandemia, foi derrubada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1a região. “Se medidas para o combate à pandemia necessitam de ser adotadas, devem ser levadas a efeito, repita-se, mediante ações coordenadas de todos os órgãos do poder público federal, estadual, municipal e distrital, dentro de suas respectivas esferas de atribuições constitucionais, com intervenção apenas excepcional do Poder Judiciário”, escreveu o desembargador Carlos Moreira Alves, no despacho. De acordo com ele, a liminar interferia em atos de gestão e de execução do orçamento público, e interferia nas competências do Executivo e do Legislativo.
NOS PLANOS DE SAÚDE
A crise econômica da pandemia pode fazer com que pessoas com planos de saúde se vejam pressionadas a abandoná-los e usar exclusivamente o SUS. A ANS resolveu exigir das operadoras a garantia de que vão atender clientes inadimplentes nesse momento – vai ser uma das contrapartidas para que os planos possam usar R$ 15 bilhões de um fundo de R$ 54 bi que a ANS mantém. O Estadão lembra que o fundo é formado por um recurso depositado periodicamente pelas empresas, e que há tempos elas pressionam a agência para a liberação do dinheiro.
CONVERSA
Aconteceu ontem a conversa entre Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta. “Está tudo acertado“, disse o presidente. Foi “tranquila”, reforçou o ministro da saúde, que fez um afago no governante fazendo uso das comparações que ele tanto gosta: segundo Mandetta, Bolsonaro é o “comandante do time”.
Acontece que Mandetta conflagrado é pop. Segundo uma equação que leva em conta o número de seguidores, volume de comentários, reação positiva e engajamento nas redes sociais, ele conseguiu ultrapassar Luciano Huck e até Lula. Outro levantamento, esse da FGV, concluiu que o “fica Mandetta” concentrou 60% das interações no Twitter sobre coronavírus em dia de quase demissão. E vem mais por aí: o ministro vai aparecer no show transmitido ao vivo pela cantora sertaneja Marília Mendonça. Sua aparição no show de Jorge e Mateus, no sábado, havia causado incômodo no presidente, segundo interlocutores próximos.
OUTRA CONVERSA
Bolsonaro quer conversa com todo mundo. O presidente abriu sua agenda para receber líderes partidários e já se encontrou com Ciro Nogueira (PP), Wellington Roberto (PL) e Marcos Pereira (Republicanos).O Globo afirma que tudo isso mira a retomada do diálogo com os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Que de ambos “boa vontade”. Para quê exatamente?
É que o presidente não abandonou a ideia de flexibilizar as medidas de distanciamento social. Mas como depois da decisão de Alexandre de Moraes não pode mais fazer isso por decreto, agora ele quer apresentar um projeto de lei ao Congresso Nacional.
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