Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
PÁSCOA MOVIMENTADA
Não dá para dizer que este tenha sido um feriado de Páscoa normal, já que houve muitas famílias se encontrando em plataformas digitais e serviços de entrega em domicílio funcionando mais do que o regular. Mas também ficou longe de parecer que o país está na maior crise sanitária das últimas décadas. As cenas são de dar comichão: filas para comprar peixe ou chocolate, trânsito em São Paulo quadruplicando na véspera do feriadão, centenas aproveitando o domingo para espairecer na orla carioca. “As crianças não têm culpa”, tenta justificar uma consumidora no Jornal da Band. “A maioria das vezes eu fico em casa. Só saio para o estritamente necessário… uma vez por dia”, revela uma senhora de 72 anos, na mesma reportagem.
Até o controle é anedótico. Uma ação da prefeitura do Rio fechou 18 lojas que desrespeitavam as regras de evitar aglomerações no sábado. A foto do G1 mostra vários agentes da Ordem Pública durante um dos fechamentos… Todos bem juntinhos e sem proteção.
A mensagem do presidente Jair Bolsonaro ontem veio em uma videoconferência com líderes religiosos, como o pastor Silas Malafaia, transmitida pela TV Brasil durante duas horas. “Parece que está começando a ir embora a questão do vírus”, disse, no momento em que os casos no país galopam, atingindo subestimadas 22.169 infecções e 1.223 mortes. Ele ainda publicou um vídeo em que manifestantes criticam o governador do Pará, Helder Barbalho, pelas medidas de restrições no estado. “Além do vírus, agora também temos o desemprego, fruto do ‘fecha tudo e fica em casa, ou ainda o ‘TE PRENDO’. Para toda ação desproporcional a reação também é forte. O governo federal busca o diálogo e solução para todos os problemas, e não apenas um”, tuitou o presidente. No sábado, apoiadores do governo haviam saído em carreata às ruas de São Paulo, mais uma vez, para pedir a reabertura.
À noite, o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta participou do Fantástico. Vivendo perigosamente, voltou a bater de frente com Bolsonaro e criticar aglomerações. “Ele [o brasileiro] não sabe se escuta o ministro da saúde, se escuta o presidente, quem é que ele escuta”, disse. É óbvio que a entrevista foi considerada pelo governo uma afronta.
Falando em crise, os bastidores do ‘Dia do Fico’ de Luiz Henrique Mandetta, terça (7) passada, foram detalhados pela repórter Thais Arbex na revista Época. E, ao contrário do que foi apurado no calor do momento, ela conta que o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, atuou pela demissão, seguindo a lógica de que “indisciplina e desobediência hierárquica são inadmissíveis e sujeitas à punição na carreira militar”. Mas há, sim, um grupo do ‘deixa disso’ – nas palavras dela, um “cordão sanitário feito para esterilizar Bolsonaro”. Ele é formado por Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência), Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União), André Mendonça (Advocacia-Geral da União), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional). Os cinco ‘bombeiros’ vêm atuando de maneira mais incisiva desde o começo de abril e tem servido de ponte entre o governo e o Supremo e parlamentares. Mas, como temos visto, os focos de incêndio são muitos. Durante o feriado, não faltaram exemplos.
Já na manhã da sexta, Bolsonaro visitou o Hospital das Forças Armadas. O compromisso não estava na agenda oficial e, questionado, ele disse que foi lá “tomar sorvete”. Na sequência, foi a uma farmácia, onde declarou à imprensa que tem direito constitucional de “ir e vir”.
No sábado, o presidente foi a Águas Lindas, em Goiás, visitar o canteiro de obras para um hospital de campanha. O terreno virou foco de aglomeração de apoiadores e, à certa altura, o presidente os cumprimentou sem máscara. Quando foi saudar o governador Ronaldo Caiado, de quem tenta se reaproximar, recebeu em troca a oferta de um pote de álcool em gel. Mandetta, que compareceu à visita, criticou Bolsonaro assim que este deixou o local. À imprensa, disse que a “lógica da não aglomeração” vale “para todos os brasileiros” – e que pode recomendar, mas não “viver a vida das pessoas”. Caiado também fez críticas ao presidente.
Não dá pra saber ao certo que papel as mensagens truncadas do governo federal têm no fracasso do isolamento, ou se é só uma experiência coletiva (e perigosa) de negação. Mas parece que, no geral, as pessoas estão menos preocupadas com o coronavírus. Uma pesquisa da empresa Ideia Big Data feita por aplicativo mostra que em 25 de março 62% dos entrevistados se diziam muito preocupados; no dia 8, eram 57%. A parcela que se diz pouco preocupada subiu de 11% para 13%, e os “nada preocupados” foram de 2% para 5%.
RELAXAMENTO GERAL
A verdade é que nos últimos dias o isolamento social diminuiu em todos os estados brasileiros, menos no Amazonas, segundo dados de movimentação de celulares pela empresa In Loco. As informações, compiladas pela Época, vão até o dia 9 de abril, portanto antes do feriado. e mostram uma queda constante desde a semana de 24 a 30 de março. O isolamento esteve sempre abaixo dos 60% em todas as unidades da federação. Mesmo na semana em que os números estiveram maiores, nunca ultrapassavam essa marca.
E olha que a maioria dos estados tem medidas de restrição. Apesar da nova orientação do Ministério da Saúde – de flexibilizar o isolamento a partir de hoje nos locais que estejam com ‘folga’ de mais de 50% de sua estrutura hospitalar –, 19 das 27 unidades da federação disseram à Folha que vão manter por prazo indefinido o distanciamento social, ou que pretendem flexibilizar só alguns pontos. Esses “alguns pontos” é que preocupam. Quase metade dos estados pretende abrir comércio e escolas em breve, por exemplo.
O Distrito Federal, um dos primeiros a fechar estabelecimentos, autorizou na quinta-feira a reabertura de lojas de móveis e eletrodomésticos, além da retomada de atividades de Sesc, Senai e demais instituições do Sistema S. No sábado, lojas já ficaram lotadas no entorno de Brasília. Santa Catarina também liberou comércio de rua e hotéis neste sábado.
Ainda por cima, o procurador-geral da República Augusto Aras defende em parecer que o presidente tem, sim, o pode de decretar o fim das quarentenas em estados e municípios. O documento, que segue hoje para o Supremo Tribunal Federal, foi obtido pelo Estadão. Nele, Aras escreve: “As incertezas que cercam o enfrentamento, por todos os países, da epidemia de covid-19 não permitem um juízo seguro quanto ao acerto ou desacerto de maior ou menor medida de isolamento social”…
A flexibilização pedida por Bolsonaro, acatada em parte pelo Ministério e agora vislumbrada pelos estados pode ser catastrófica. Não bastasse a palavra quase unânime de pesquisadores ao redor do mundo, o Banco Mundial também concluiu que o isolamento geral é mais efetivo do que o “seletivo”. Não sabemos o que mais falta dizer.
O CASO DE SÃO PAULO
São Paulo, um dos maiores objetos de ataques dos apoiadores de Bolsonaro no momento, registrou índice de isolamento de apenas 57% na sexta-feira. Segundo os dados do governo estadual, ele aumentou 10 pontos percentuais em relação ao dia anterior, ou seja, estava muito baixo mesmo.
Detalhe: o estado já tem mais da metade dos leitos de UTI ocupados, e quase metade dos leitos destinados a pacientes com covid-19 foram ocupados em uma semana. Segundo o infectologista Julio Croda – que, como sabemos, saiu polemicamente do Ministério da Saúde e agora está no Centro de Contingência do coronavírus em SP –, uma taxa de entre 50% e 70% permite suprir os leitos de UTI necessários, mas o ideal é ultrapassar os 70%. Nenhuma cidade monitorada no estado atingiu essa meta. Se menos de metade da população aderir, como aconteceu na semana passada, o sistema não deve aguentar.
De acordo com ele, até os Estados Unidos estão com índices de isolamento maiores do que os de SP. “Foi antes, a gente isolou antes [de países como Itália, Espanha e EUA]. Mas agora a gente está perdendo todo esse isolamento. Então não adianta ter isolado antes, se agora está todo mundo indo para a rua. Todo ganho de ter começado antes vai se perder muito rapidamente se todo mundo voltar às atividades habituais”, vaticinou, em entrevista à Folha.
MÃO DUPLA
A Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF, emitiu uma nota técnica apontando que a flexibilização da quarentena pode gerar ação por improbidade contra os gestores, caso não seja feita com respaldo técnico (comprovação de que se superou a fase de aceleração do contágio, de que os casos e mortes caíram, de que há equipamentos de saúde suficientes para dar conta do pico de contaminação). É uma orientação para que procuradores tomem medidas nos estados (precisa combinar com Augusto Aras, contudo…). A improbidade administrativa pode implicar perda da função pública e inegibilidade.
Mas, enquanto isso… O governo federal pode colocar na Justiça estados que endureçam mais suas medidas. O recado foi dado pelo advogado-geral da União André Mendonça, e foi dirigido, nada sutilmente, ao governador de São Paulo. Dois dias depois que João Doria anunciou que a PM pode agir contra furadores de quarentena, o comunicado de Mendonça diz que “medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio”. O objetivo do governo, quem diria, seria “garantir a ordem democrática”.
PÉSSIMA NOTÍCIA
Especialistas têm dito que talvez os governos precisem organizar entradas e saídas da quarentena, manejando o número de casos para evitar o colapso dos sistemas de saúde, até que uma boa parte da população tenha sido infectada e exista a tal imunidade de rebanho. Isso porque não há vacina que proteja do SARS-Cov-2, então precisaríamos desenvolver os anticorpos.
Porém, há uma pedra nesse caminho: autoridades da Coreia do Sul informaram que pessoas que já foram curadas estão novamente com testes positivos. Aqui na newsletter, já divulgamos algumas poucas notícias de pacientes que pareciam reinfectados, mas agora se trata de um balanço oficial. Aconteceu com ao menos 111 pessoas classificadas como curadas. Jeong Eun-kyeong, diretor geral do Centro de Controle e Prevenção de Doenças daquele país, disse que pode não ser uma nova infecção, mas uma ‘reativação’ do vírus. Mas ainda não se sabe. A OMS também está investigando.
A garantia da imunidade é o que tem dado tanta importância aos testes sorológicos (aqueles testes rápidos, que não identificam a presença do vírus mas sim a de anticorpos) como peças fundamentais no planejamento da saída das quarentenas. A ideia é que, testando grandes amostras das populações, seja possível estimar quantas pessoas estão imunes, e, portanto, quando e como é possível reabrir cada local. Mas, mesmo sem a notícia alarmante vinda da Coreia do Sul, muitos especialistas já recomendavam cautela nessas previsões, justamente porque ainda não se sabe direito até que ponto a presença de anticorpos nos protege no caso do novo coronavírus. “Com alguns patógenos, como o vírus varicela-zoster (que causa catapora), a infecção confere resistência quase universal e duradoura. A infecção natural por Clostridium tetani, a bactéria que causa o tétano, por outro lado, não oferece proteção – e mesmo as pessoas que são vacinadas por isso precisam de doses regulares de reforço. No extremo deste espectro, os indivíduos infectados pelo HIV geralmente têm grandes quantidades de anticorpos que não fazem nada para prevenir ou eliminar a doença”, exemplifica a reportagem da Scientific American.
Com centenas de estudos, mas menos de cinco meses de experiência, ainda se sabe muito pouco sobre o novo coronavírus. Uma das últimas novidades é que geneticistas da Alemanha e Grã-Bretanha mapearam o caminho evolutivo dele até agora. Viram que o vírus já sofreu mutações, e há três variantes espalhadas pelo mundo. A primeira, A, foi encontrada em morcegos e pangolins. Duas mutações levaram ao tipo B, o mais encontrado em Wuhan. E o tipo C, que não foi detectado em ninguém da China continental, foi o que se espalhou na Europa, Singapura, Hong Kong e Coreia do Sul. Entre Wuhan e o México, foram dez mutações. “Esta pesquisa indica que a propagação do vírus está cada vez mais adaptada a diferentes populações e, portanto, a pandemia precisa ser levada a sério”, analisa Lu Jiahai, epidemiologista da Universidade Sun Yat-sen.
NAS PERIFERIAS E FAVELAS
Um levantamento do jornal O Globo mostrou que no Brasil, segundo as estatísticas oficiais, pessoas com menos de 60 anos e sem comorbidades representam 25% das mortes causadas pelo novo coronavírus. Com isso, esse perfil de vítima fatal é cinco vezes mais comum aqui do que na Espanha, por exemplo. Isso acontece, segundo Eliseu Alvez Waldman, da USP, porque a doença está chegando nos mais pobres e socialmente mais vulneráveis.
O Ministério da Saúde passou a divulgar informações sobre raça/cor das vítimas de covid-19. E começa a aparecer, ainda que de forma tímida, uma desigualdade social já registrada em outros países. Isso porque a taxa de letalidade pode ser maior entre pardos e pretos. Os brancos ainda respondem pela maioria das hospitalizações (74%) e das mortes (64%). Só que embora pardos e pretos representem uma em cada quatro internações (23%), eles correspondem a uma em cada três mortes (32%).
Em capitais como São Paulo e Rio o novo coronavírus já entrou em rota de colisão com as periferias e favelas. Na semana passada, o Centro de Vigilância Epidemiológica do estado de SP deu conta de que mais de um terço das mortes registradas está acontecendo nas comunidades paulistanas mais pobres das zonas leste e norte. No site da Piauí, a repórter Amanda Rossi fez um levantamento junto a dois hospitais de elite – Albert Einstein e Sírio Libanês – e duas unidades que atendem pelo SUS – Hospital São Paulo e Santa Marcelina, em Itaquera. Se nos primeiros o número de internações vem diminuindo, nos últimos está aumentando.
“O número de internações na UTI de hospitais públicos está aumentando todos os dias. No início da pandemia em São Paulo, eram pessoas que viajaram para Europa e que tinham seguro de saúde. Agora, já está pegando toda a população”, disse José Roberto Ferraro, superintendente do Hospital São Paulo, ligado à Universidade Federal de São Paulo. Marco Aurélio Safadi, da Santa Casa de SP, completou: “O que está se desenhando é que devemos ter o pico no final de abril. E vamos vivenciar esse pico de forma mais dramática nos hospitais da rede pública, tanto em número de casos como em taxa de mortalidade. A população atendida pelo SUS é mais vulnerável e tem menos condições de acesso a serviços de saúde. Em momentos como esse, os injustos contrastes brasileiros manifestam sua face”.
No sábado, foi confirmada a primeira morte por covid-19 na Cidade de Deus. A vítima foi uma mulher de 32 anos. Dentre as muitas favelas da cidade, já haviam sido confirmadas mortes na Rocinha (2), Vigário Geral (2), Maré (1) e Manguinhos (1).
A Folha retrata um pouco dessa realidade vulnerável ao entrevistar moradores da favela Santa Marta, na zona sul carioca. Sandra Gomes de Barros, de 51 anos, já teve tuberculose três vezes e tem evitado sair de casa. Já Kíssila Conceição, de 35 anos, mora num barraco de madeira no alto do morro. Ela não tem caixa d´água e tem tentado se virar na higienização da casa armazenando em baldes – o que, além de tudo, aumenta os focos do mosquito Aedes aegypti.
ENTRE INDÍGENAS
No feriado, houve a confirmação de três mortes entre indígenas. A primeira vítima confirmada foi Alvaney Xiriana, de apenas 15 anos. O adolescente que morava terra indígena Yanomami morreu em 9 de abril e havia sido internado seis dias antes no Hospital Geral de Roraima.
Já no sábado, foram confirmados outros dois óbitos em Manaus. As vítimas foram um idoso de 78 anos da etnia tikuna e uma mulher de 44 anos da etnia kokama que, aparentemente, contraíram o novo coronavírus em unidades de saúde para onde foram levados para tratar de outros problemas.
O Instituto Socioambiental está informando os casos registrados entre indígenas a partir de uma plataforma virtual. A ferramenta divide as ocorrências por cada distrito sanitário especial, que é a forma como o subsistema de saúde indígena se organiza no país (ao invés de por meio de unidades da federação). No total, foram registrados nove casos.
COLAPSO
Outra forma de dividir o SUS é por meio das chamadas regiões de saúde. E de acordo com esse panorama, a região de saúde de Manaus e entorno e Alto Rio Negro tem a maior incidência de casos da covid-19 do país: são 281 por 1 milhão de habitantes. Por lá, a situação já está caótica. De acordo com o relato feito à Folha por um profissional de saúde que não quis se identificar, o hospital de referência Delphina Aziz chegou ao limite de atendimento na sexta – e trabalhadores orientaram a família de uma idosa a levá-la para ‘morrer em casa’.
No sábado, o Ministério da Saúde anunciou a construção de um hospital de campanha federal com 200 leitos, a liberação de recursos extras para instalar outros 350 leitos no Delphina e a primeira convocação emergencial de médicos e enfermeiros para reforçar o atendimento na região.
Manaus foi uma das três capitais que recebeu respiradores apreendidos pelo governo federal nas dependências de empresas exportadoras. No total, 60 equipamentos foram despachados para lá e também para Macapá e Fortaleza.
LABIRINTO
O Ministério da Saúde continua às voltas com a dificuldade de suprir o país com respiradores. No sábado, o secretário-executivo da Pasta, João Gabbardo, reiterou a necessidade de importar os equipamentos. O acordo de produção com a indústria nacional é de 15 mil respiradores. Mas os prazos de entrega são de 30, 60, 90 e 120 dias. Gabbardo afirmou que vai tentar importar entre 10 e 15 mil aparelhos. E disse que, se houvesse sucesso, essa compra de 30 mil respiradores no total ampliaria a capacidade de leitos de UTI no país em 54%. Hoje, são 55 mil leitos no total.
Para importar, contudo, é preciso desfazer o mal-estar criado por filhos e integrantes do governo Jair Bolsonaro com a China. No sábado, Mandetta foi ao gabinete do presidente relatar a conversa que teve com o embaixador Yang Wanming – mas encontrou lá Carlos e Eduardo Bolsonaro, além do ministro da educação Abraham Weintraub. Foi um climão, apurou a colunista Monica Bergamo. O ministro da saúde teria dito que “precisa importar dois mil respiradores com urgência” e que adoraria fazer isso de qualquer outro país, mas que a alternativa mais viável era mesmo a China. A situação é surreal a ponto de a Organização Pan-Americana de Saúde ter que mediar o acordo, pois nem o governo federal vai à embaixada, nem o corpo diplomático chinês aceita ir às dependências brasileiras.
Enquanto isso, outra compra está causando tensão. É que o governo quer trazer da China 240 milhões de máscaras. Mas teme que a carga seja retida pelos EUA, como aconteceu anteriormente. Por isso, a decisão é não fazer escalas em solo americano, nem revelar o trajeto de dois aviões que serão enviados esta semana.
Há também uma disparada de preços por aqui. Análise de 34 contratos emergenciais assinados pelo Ministério desde o início da crise mostra como as empresas têm lucrado com a epidemia. Sapatilhas que eram compradas por R$ 0,07 agora custam R$ 0,20. Frascos de álcool em gel que antes custavam R$ 3,91 agora saem a R$ 6,68.
E o contrabando é mais um obstáculo à resposta brasileira contra a epidemia. A Polícia Civil de SP conseguiu prender no sábado 14 suspeitos de integrar uma quadrilha que furtou cerca de dois milhões de máscaras e 15 mil testes. A carga foi descoberta no Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Por fim, o Ministério da Saúde suspeita que hospitais, principalmente os conveniados com o SUS, estão escondendo a ocupação de leitos. Na semana passada, a diária repassada por leito ocupado dobrou de R$ 880 para R$ 1,6 mil – possivelmente é uma tentativa de tornar a oferta para o SUS atraente. Mas as unidades públicas e privadas têm a obrigação de informar duas vezes por dia para o MS a taxa de ocupação. Caso a determinação de repasse de dados continue sendo desobedecida, João Gabbardo disse que a Pasta pretende envolver a Polícia Federal. O tom já subiu, mas ainda está longe de um horizonte de medidas mais rígidas, como as adotadas pela Espanha, onde o governo tomou conta dos leitos particulares durante a epidemia.
O QUE MENOS TESTA
Entre os países mais atingidos pela doença, o Brasil é o que menos testa. “O país faz 296 testes por milhão de habitantes. O Irã, o segundo que menos testa entre os mais afetados, faz 2.755 por milhão. Os EUA, 7.101 por milhão. A Alemanha, um dos países com menor taxa de mortalidade, testou 1.317.887 pessoas – 15.730 por milhão”, comparou O Globo em reportagem publicada sexta.
No sábado, Wanderson Oliveira, do Ministério da Saúde, deu confusas declarações à imprensa. Segundo o secretário de vigilância, “não é verdade que estamos testando pouco no Brasil”. Hoje, são feitos cerca de 4,2 mil testes por dia no país. Mas, ao mesmo tempo, ele projeta para o futuro a promessa de 50 mil testes diários: “O que nós vamos fazer é testar mais, baseado numa estratégia de centros de coleta de emergência, com postos volantes para os casos leves”. Quando isso vai acontecer? Ele não sabe. De acordo com Oliveira, a concorrência pública para prestar o serviço ainda não tem ganhador. A ideia é que ou um atendente ou um robô entre em contato com a população por telefone para checar eventuais sintomas e encaminhar uma das tais unidades volantes de coleta de exames. Mas mesmo esses planos atrasados vêm junto com um balde de água fria: “O que eu posso garantir para vocês é que nós não teremos testes para todas as pessoas”, declarou Oliveira.
DEBAIXO DA TERRA
O deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) tem usado suas credenciais de médico para atuar contra as quarentenas. Mas com o número de mortes por covid-19 em ascensão, começa a ficar difícil sustentar a posição sem, ao menos, algum constrangimento. A coluna Painel ligou para o ex-ministro, que tinha declarado dias antes que o coronavírus mataria “abaixo de mil pessoas”, e ainda comparou a cifra ao suposto número de vítimas fatais de gripe no Rio Grande do Sul. “Estou te fazendo uma previsão que pode me desmoralizar. Quero ver quem está tomando essas medidas pirotécnicas, assustando a população, quero ver me dar números. Eu dou números do que estou falando”, sustentou. Só que olhando as estatísticas, a história não é bem assim. No Rio Grande do Sul, ano passado morreram 75 pessoas, de acordo com o boletim InfoGripe, feito pela Fiocruz. Confrontado, o deputado seguiu dizendo que a cada inverno morrem cerca de mil no RS. E que, na verdade, sua aposta era que o novo vírus mataria menos do que a gripe mata no Brasil inteiro. De acordo com o InfoGripe, 1.149 pessoas morreram no Brasil em 2019. Ontem, o número de vítimas fatais da covid chegou a 1.223…
PIOR
E, entre fevereiro e abril, ainda havia no sábado 2.176 mortes por síndrome respiratória grave a serem investigadas. O aviso foi dado pelo secretário de vigilância do Ministério da Saúde, Wanderson Oliveira, e quer dizer que, mesmo sem levar em conta os casos novos, as estatísticas podem ser bem piores.
Para se ter uma ideia, só na cidade de São Paulo ainda há resultados pendentes para exames feitos em 670 mortos com suspeita de coronavírus.
SEM SUS
Mas há situações bem mais dramáticas em países sem sistema público de saúde. Nos Estados Unidos, o enfermeiro Derrick Smith deu um depoimento muito triste à CNN. Ele atua em Nova Iorque, e na última semana ouviu a seguinte pergunta de um paciente que estava morrendo: “A conta vai sobrar para quem?”. Sua preocupação era deixar a esposa endividada. “Isso demonstrou que falhamos profundamente quando alguém precisa se preocupar com as próprias finanças em pleno leito de morte”, disse Smith, acrescentando: “A pandemia faz saltar aos olhos a inadequação do país não só em responder à altura, mas em proporcionar cobertura de saúde”.
ESTÃO ABANDONADOS
Há uma tragédia dentro da tragédia italiana: 300 mil idosos vivem espalhados em sete mil asilos no país, e a maioria está abandonada pelas autoridades. Nesses lugares, morrem tantas pessoas todos os dias que é difícil fazer as contas. A idade média dos moradores é de 85 anos, e mais de 60% deles têm doenças pré-existentes. Mas, se isso já é um terreno fértil para o coronavírus, há outros problemas que parecem estar levando a outras causas de morte. “Em Soleto, na Província de Lecce, 80 idosos do asilo La Fontanella ficaram dois dias sem comer e sem receber tratamento médico, porque todo o pessoal da estrutura havia entrado em quarentena. Como resultado, 5 idosos morreram e 55 estão infectados”, diz a reportagem.
Esse é só um exemplo. Há outros, como instituições que sequer informam familiares sobre as mortes ou condições de saúde dos moradoredes. “Quando saí do elevador, dei de cara com um cadáver coberto com um lençol branco. Minha mãe era única que continuava a andar com sua cadeira de rodas pelos corredores. Achei estranho e perguntei onde estavam os outros e me disseram que estavam todos doentes”, diz a mãe de uma idosa, que em seguida ouviu desabafos da médida responsável sobre a falta de material de proteção. Os profissionais vinham usando as mesmas luvas e máscara há uma semana. “Foi quando percebi que aquelas luvas usadas para manusear o corpo no corredor seriam usadas para tocar o corpo da minha mãe, para tirá-la da cadeira de rodas e colocá-la na cama. Entrei em pânico”, completou ela.
Isso não acontece só na Itália. Este fim de semana vimos com surpresa o salto fenomenal no número de mortos na Bélgica, país que parecia vir contornando mais ou menos bem a epidemia. Em sete dias, o país passou de cerca de mil óbitos para mais de três mil, ultrapassando a China. É muito para a pequena população de 11 milhões de habitantes, e a taxa de mortalidade está entre as mais altas do mundo, comparável à italiana. O que é estranho, considerando que, mesmo agora, ainda há uma folga de leitos na UTI e a ocupação nunca ultrapassou os 60%. Uma explicação, segundo a reportagem do Valor, pode estar nos asilos. Cerca de 40% das mortes no país vem dessas instituições, sem que os idosos chegassem sequer a ser hospitalizados.
Nos EUA, onde o coronavírus começou a se alastrar a partir de uma casa de repouso em Washington, esses lugares permanecem mal preparados, perigosos e pouco transparentes.
Por aqui,o alerta foi aceso. Cinco idosos foram diagnosticados com coronavírus em um asilo do Rio. O outros residentes e os funcionários estão sendo testados, e os infectados foram transferidos.
NÃO ACABOU
E apenas dois dias antes de o fim da epidemia de ebola ser declarado na República Democrática do Congo, um novo caso foi confirmado. Um paciente morreu na quinta-feira. Tinham sido 52 dias sem casos, depois de uma epidemia que durou dois anos, infectou 3,4 mil pessoas e matou dois terços delas, 2,2 mil.
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Foto: Pixabay