Após breve paz durante a quarentena, policiamento violento retorna às favelas

No RioOnWatch

Por duas semanas, a pandemia global da Covid-19 pareceu suficiente para conter a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro. Agora, ativistas de favelas dizem que a violência está de volta e está dificultando as campanhas comunitárias de mitigação do coronavírus. Enquanto a Polícia Militar se esforçava para se adaptar às medidas de isolamento decretadas pelo Governador Wilson Witzel em meados de março, ativistas comunitários de direitos humanos se aproveitaram do cessar-fogo momentâneo, e concentraram seus esforços na mitigação do coronavírus. Agora, em abril, o retorno à violência ameaça seus esforços.

De acordo com um novo relatório da Rede de Observatórios da Segurança (ROS), um órgão de monitoramento, em março de 2020 houve uma queda de 23% nas operações policiais—violentas incursões nas favelas, ostensivamente empreendidas para combater o comércio ilícito de drogas no Rio—em comparação com março de 2019. Após 16 de março, o número total de operações caiu 74% em comparação com a primeira metade do mês.

Número de operações policiais em março de 2020. As linhas tracejadas de 16 e 20 de março representam declarações estaduais de calamidade pública e de emergência. Barras do gráfico – Azul = Patrulhas, Vermelho = Operações, Verde = Ações Anti-Coronavírus. Fonte: Rede de Observatórios da Segurança, Rio de Janeiro

“As forças policiais estavam tentando encontrar como reagir, como desenvolver suas atividades corriqueiras nesse novo contexto”, disse Pablo Nunes, cientista social e coordenador de pesquisa da ROS. Além de uma queda nas operações policiais, disse Pablo, a ROS observou um aumento de atividades em relação às medidas de contenção, incluindo pontos de verificação de rodovias e controle de isolamento, traduzindo-se em uma queda no número de pessoas mortas durante operações policiais em março: 15 em comparação com 26 em março de 2019.

“Houve, de fato, essa mudança”, disse Cecilia Oliveira, diretora da plataforma Fogo Cruzado e especialista em segurança pública. “O governador redirecionou muitos policiais para ações relativas ao coronavírus”. Segundo o relatório da ROS, a polícia do Rio forneceu “repressão ao tráfico de drogas”, como motivação para operações, 43% menos em março de 2020 em comparação a março de 2019.

1º de abril: Operações Como Sempre

A paz durou pouco. Na primeira semana de abril, alertou Pablo, já houve o retorno ao status quo, com as operações policiais voltando à sua frequência regular. Ele atribuiu a mudança às mensagens mistas do governo federal: orientações amigáveis à Organização Mundial da Saúde pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, enquanto era divulgada a retórica anti-quarentena do Presidente Jair Bolsonaro, o que haviam deixado os brasileiros divididos sobre como se comportar. “A gente tem visto não só um aumento na circulação, agora a gente também está vendo que as operações policiais estão voltando ao normal.”

No dia 3 de abril, uma operação policial na favela de Acari, na Zona Norte, deixou três mortos. “Até a semana passada a avaliação era positiva, não estava rolando operações, as ruas estavam bem mais esvaziadas”, disse Buba Aguiar, moradora, socióloga e militante do coletivo Fala Akari, em 7 de abril. Agora, ela disse, “as operações estão ocorrendo com uma frequência muito maior, com uso do caveirão e com tiros. Ao mesmo tempo que as ruas andam mais cheias também. Então, são duas preocupações: a de sempre, que é o risco de alguém ser baleado ou morto, e a propagação do vírus”. 

No dia 6 de abril, uma operação policial, realizada nas favelas da Maré, durou mais de oito horas. “As operações têm durado horas, com arrombamento de casas, roubos, assassinatos, no momento como esse, de pandemia, de crise”, disse Gizele Martins, moradora e comunicadora da Maré.

Gizele, cujo trabalho geralmente aborda direitos humanos e violência policial, faz parte da Frente de Mobilização da Maré, uma colaboração entre coletivos locais dedicados a conscientizar sobre os métodos de prevenção de coronavírus. “A gente já vive numa sociedade em que todos os dias a gente tem que sobreviver a isso [a violência policial]”, disse Gizele. “Agora imagina o que é sobreviver a isso em momento de grande crise na saúde, em um momento que todos nós estamos com medo do vírus”. A Maré já registrou duas mortes confirmadas por Covid-19 no dia 15 de abril.

“Muito provavelmente as famílias que precisavam daquela cesta básica na segunda-feira, para ter o que comer em casa, passaram mais um dia sem comer.”

Após semanas distribuindo com sucesso alimentos, produtos de limpeza e materiais informativos, os mobilizadores disseram que as recentes operações policiais começaram a impedir seus esforços. A comunicadora popular Juliana Pinho, também integrante da Frente de Mobilização da Maré, disse que a operação policial de 6 de abril lhe custou um dia de trabalho. “Todas as ações de mobilização, conscientização e ajuda aos moradores foram interrompidas. Distribuições de cestas básicas pelas organizações, que têm acontecido durante todo o dia, foram suspensas”, disse Juliana, que trabalha no projeto de artes marciais para jovens, Luta pela Paz. “Muito provavelmente as famílias que precisavam daquela cesta básica na segunda-feira, para ter o que comer em casa, passaram mais um dia sem comer.”

Referindo-se às operações policiais em Acari, Buba disse que também ficou paralisada. “Ontem eu não consegui sair, pois estava saindo no momento exato em que estava iniciando a segunda operação do dia. E aí, não consegui recolher um repasse bancário importante para a encomenda das cestas básicas.”

“A gente está falando de pessoas que estão em vulnerabilidade extrema no território”, adicionou Juliana. “E que têm seus direitos, que são garantidos pelas organizações, pelos coletivos e não pelo Estado. E ainda assim, tiveram os seus direitos violados.”

“O Estado continua oferecendo polícia e genocídio para essa população”, disse Gizele. “A população favelada e periférica trabalha para comer. Em um momento como esse, como iram se manter em casa se trabalham para comer? Então, é uma obrigação dos governantes pensar em renda básica, pensar em distribuição de gás, distribuição de roupa, de alimentos, de álcool em gel, de produtos de limpeza, de água.”

Foto: Diana Rogers/Super Rádio Tupi

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

twenty + twenty =