Pandemia da covid-19 deve ampliar ainda mais o abismo da desigualdade. Entrevista especial com Fábio Konder Comparato

Para o professor e pesquisador, a crise atual exigirá, de forma mais intensa, que se construa um novo sistema político que supere dois enormes desafios: organização do poder e a atual mentalidade social

Por: Ricardo Machado, em IHU On-Line

Em um planeta onde 1% da população vive com a metade das riquezas e 3,7 bilhões de pessoas não têm acesso algum a seus bens, é bastante presumível conhecer quem serão os principais afetados pela pandemia mundial de covid-19. Os impactos da estagnação econômica têm data para acabar, ainda que de forma imprecisa e em tempos diferentes em cada região do mundo. As consequências do agravamento das desigualdades, contudo, podem ser bastante mais longas. “Os efeitos econômicos não se limitam à recessão, que pode não durar muito tempo. Além dela, haverá também, sobretudo em nosso país, o crescimento dramático do grau de separação entre ricos e pobres, com a redução demográfica e social da chamada classe média”, pontua o professor e pesquisador Fábio Konder Comparato, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“Para enfrentar esses efeitos perversos da pandemia provocada pelo novo vírus, é urgente e indispensável construir um novo sistema político, nos dois principais elementos que o constituem; a saber, a organização do poder e a mentalidade social, esta última formada pela visão de mundo e pelos costumes sociais das diferentes parcelas componentes da sociedade”, sugere o entrevistado. Como proposta para enfrentar os enormes desafios, Comparato propõe que os recursos sejam incrementados por meio de impostos incidentes sobre os rendimentos.

Um dos limites, no entanto, ao enfrentamento da crise e do agravamento da sociedade é a consolidação humanista da própria Constituição Federal. “A Constituição de 1988, tal como todas as que a precederam, não alterou em nada a dialética da dissimulação, a qual, a meu ver, representa o traço mais marcante do caráter social brasileiro. Nós sempre tivemos um sistema jurídico binário, com um Direito oficial de fachada, ao lado de um Direito efetivo, que consagra a soberania oligárquica, ou seja, o supremo poder da minoria mais rica de nossa população”, critica.

Fábio Konder Comparato é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da USP e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, além de especialista em Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU ideias, nº. 239, e O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU ideias, n°. 222.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a pandemia do coronavírus impõe a construção de novos paradigmas econômicos e sociais?

Fábio Konder Comparato – Em países como o nosso, ela veio demonstrar a absoluta necessidade de se enfrentar a ciclópica desigualdade social, aqui estabelecida desde o início da colonização portuguesa, e de se ampliar e aperfeiçoar o programa do Sistema Único de Saúde – SUS.

IHU On-Line – Quais devem ser os efeitos econômicos da atual crise e de onde vêm (ou deveriam vir) os recursos para enfrentá-la?

Fábio Konder Comparato – Os efeitos econômicos não se limitam à recessão, que pode não durar muito tempo. Além dela, haverá também, sobretudo em nosso país, como acabo de dizer, o crescimento dramático do grau de separação entre ricos e pobres, com a redução demográfica e social da chamada classe média. Para enfrentar esses efeitos perversos da pandemia provocada pelo novo vírus, é urgente e indispensável construir um novo sistema político, nos dois principais elementos que o constituem; a saber, a organização do poder e a mentalidade social, esta última formada pela visão de mundo e pelos costumes sociais das diferentes parcelas componentes da sociedade.

A nossa organização oligárquica do poder, instalada sem descontinuar desde a chegada dos primeiros colonizadores, sempre esteve intimamente ligada à convicção geral de que só os ricos têm capacidade para governar o país. Na configuração dos costumes e da mentalidade social, os fatores históricos mais marcantes foram o genocídio dos primitivos indígenas, perpetrado pelas primeiras gerações de colonizadores (estima-se que só no século XVI, os portugueses dizimaram um milhão de índios), e a escravidão dos negros, que perdurou legalmente quase quatro séculos.

Quanto aos recursos econômicos para enfrentar a crise da atual pandemia, é ingênuo acreditar que eles virão apenas de doações episódicas, ainda que de grande montante, como a que acaba de ser feita pelas três maiores instituições bancárias do nosso país. Como já disse em artigo publicado originalmente no site A terra é redonda, e reproduzido no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, é indispensável aumentar significativamente os recursos públicos (isto é, pertencentes ao povo brasileiro), por meio de impostos incidentes sobre os rendimentos das pessoas físicas e jurídicas.

IHU On-Line – Que retrato da desigualdade se faz a partir das lentes da pandemia em escala mundial e como ela ajuda a explicar a complexidade e consequências do fenômeno?

Fábio Konder Comparato – Ainda não sabemos qual será a duração, nem tampouco o tamanho dos efeitos mundiais da peste do coronavírus. Mas é possível, desde já, prever que ela contribuirá decisivamente para o aumento da desigualdade socioeconômica mundial. De acordo com levantamento efetuado pela ONG britânica Oxfam, em 2017 o grupo componente do 1% dos super-ricos ficou com 82% da riqueza gerada no mundo todo, enquanto a metade mais pobre da população mundial, formada por 3,7 bilhões de pessoas, não obteve nada da riqueza produzida no mundo naquele ano. Segundo as estimativas feitas pelo Crédit Suisse em 2018, portanto antes do surgimento da atual pandemia, o 1% das pessoas mais ricas do mundo acumularia dois terços da riqueza mundial em 2030.

IHU On-Line – Como o sistema tributário brasileiro, mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã, mantém uma lógica oligárquica e por que é tão difícil romper com essa dinâmica?

Fábio Konder Comparato – A Constituição de 1988, tal como todas as que a precederam, não alterou em nada a dialética da dissimulação, a qual, a meu ver, representa o traço mais marcante do caráter social brasileiro. Nós sempre tivemos um sistema jurídico binário, com um Direito oficial de fachada – simplesmente “para inglês ver”, segundo a expressão criada por Floriano Peixoto no final do século XIX, quando o Reino Unido exercia um imperialismo mundial –, ao lado de um Direito efetivo, que consagra a soberania oligárquica, ou seja, o supremo poder da minoria mais rica de nossa população.

No campo tributário, o regime oligárquico se estabelece com o predomínio da tributação do consumo sobre a tributação dos rendimentos. Ou seja, a alíquota do ICMS é igual para todos, ricos ou pobres. Já quanto ao imposto de renda, a alíquota máxima é inferior à de 88 (oitenta e oito!) outros países.

IHU On-Line – Quem paga a conta das crises no Brasil?

Fábio Konder Comparato – Respondendo de forma bem direta, a conta é sempre maior para os mais pobres.

IHU On-Line – No caso brasileiro, como superar os desafios da desigualdade em um cenário de crise? Como outros países podem nos inspirar a ter maior justiça tributária?

Fábio Konder Comparato – Imaginar que em um cenário de crise é quase impossível substituir a oligarquia pela autêntica democracia. Mas a luta política tem que ser mantida. Creio que para estabelecermos uma maior justiça tributária, podemos nos inspirar nos países europeus.

IHU On-Line – O que explica, especialmente no caso brasileiro, a antipatia da classe média em relação aos mais pobres e uma certa subserviência aos interesses das elites econômicas?

Fábio Konder Comparato – O grande temor dos que constituem a nossa classe média sempre foi o de ser rebaixada socialmente. A sua grande ambição sempre foi a de pertencer à mal chamada “elite”.

IHU On-Line – Qual a expectativa, levando em consideração o atual Congresso, de se levar a cabo a votação da lei complementar que regulamenta o imposto sobre grandes fortunas, previsto no artigo 153 da Constituição Federal?

Fábio Konder Comparato – A expectativa é bem baixa, quase nula. A inclusão desse imposto na Constituição faz parte da tradicional política de dissimulação, que existiu nestas terras desde que Cabral aqui aportou.

IHU On-Line – Em suma, poderíamos dizer que a pandemia da desigualdade é mais severa que a da covid-19?

Fábio Konder Comparato – Sem dúvida, pois a política de desigualdade sempre existiu e dificilmente será abandonada, enquanto a pandemia do coronavírus – como todas as pestes que assolaram a humanidade – não vai durar para sempre.

Fábio Konder Comparato (Foto: Reprodução/Carta Capital)

Comments (1)

  1. A única saída provável, somente deverá ocorrer via “fortalecimento” da consciência coletiva, esta por sua vez, através de um processo robusto, com forte continuidade e previsibilidade em EDUCAÇÃO, em todas as suas matizes, por no mínimo quatro gerações,e daí em diante. A “menoridade” do Estado BR. é secular.

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