“E daí?”: a Semiótica sobre o discurso necropolítico

Por Alexandre Simão de Oliveira Cardoso, no Justificando

Conhecido provérbio africano diz: “Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr”. No último dia 28/04/2020, a intensidade da reafirmação necropolítica[1] brasileira, a estratégia do fazer-morrer e da negação da vida potencializada pelo discurso emanado pelo Presidente da República talvez tenha atingido seu gradiente máximo. Fomos dormir – para aqueles que conseguiram, claro – após vermos e ouvirmos o chefe máximo do Poder Executivo, quando indagado por uma jornalista acerca da superação de mortos pelo novo coronavírus pelo Brasil em comparação com a China, enunciar: “e daí?”. Tal fato é público e notório. 

O Sol despontou e a aurora do dia reclama a nós, brasileiros de altivez, que não há outro caminho frente aos acontecimentos políticos nacionais senão começarmos a correr para agir, imediatamente, antes que a necropolítica governamental termine de mover todas suas engrenagens para alcançar seu objeto de valor maior: terminar por ditar quem deve morrer. Porque esse “e daí?” propalado aos quatros ventos pelo Presidente da República significa muita coisa.

Tal intencionalidade, não sejamos ingênuos, está dita e enunciada, não é de hoje, na discursividade do atual Governo Federal e concentrada, em sua maior parte, nos pronunciamentos e ações do Presidente da República. Dezenas de ataques e ameaças de toda sorte, desde o primeiro dia de governo até o presente momento, foram lançados sobre minorias e movimentos sociais, toda e qualquer oposição, jornalistas, memória de pessoas mortas e desaparecidas em consequência do regime militar, até atingirem, enfim, a própria democracia e a ordem constitucional brasileira (dias atrás fomos açoitados pelo “Eu sou a Constituição”), amalgamando uma narrativa destrutiva em intensidade e extensidade. Diante de fatos tão aviltantes e perigosos à continuidade do regime democrático brasileiro, um olhar com viés semiótico nos ajuda a destacar analiticamente desta discursividade política nefasta todo esse programa narrativo de violência estatal estrategicamente moldado. Afinal, tamanho ultraje discursivo não pode ser encarado apenas como uma patologia do Presidente da República, “um modo de se expressar que lhe é próprio” ou qualquer outro eufemismo que visa esconder aquilo que se pretende pôr em prática e que cada vez mais emerge do subterrâneo: a decisão de quem deve morrer.

Debruçando-se sobre esse discurso macabro composto apenas por esse “e daí?” presidencial, é que a Semiótica[2] tem como petição de princípio[3] tomar objetos empíricos para proceder sua análise, não se sobrepondo ou pretendendo substituir disciplinas próximas, mas, ao revés, interagindo e visando, em franca dialogia, estabelecer pontes com as mais variadas áreas do saber humano. Nesta ordem de ideias, é que o arco teórico trazido pela Semiótica e, notadamente, a semiótica do poder (poder-fazer e poder-ser)[4], reveste-se de ferramental profícuo para esmiuçar dentro do discurso postodito enunciado, as estruturas da significação que podem “projetar, a partir da análise do aqui agora, as formas possíveis do amanhã”.[5] 

Daí questionarmos: diante do que temos assistido, qual amanhã se mostra projetado? Do discurso do “e daí?” do Presidente da República, no qual se manifesta a máxima desumanidade em relação à dor alheia, a morte do outro, retirando e colocando no esquecimento o luto daqueles que perderam seus entes e amigos por conta do vírus, categoricamente se prenuncia a real possibilidade de caminharmos para um amanhã pior e mais deletério que o presente, na qual cada vez mais o poder constituído decide quem irá viver e quem irá morrer. Naquilo que a semiótica discursiva denomina de nível profundo do percurso gerativo do sentido, a questão está mais do que posta e transitará, justamente, pela relação de oposição vida morte. E principalmente: a depender da escolha do Presidente da República, a decisão já está tomada e apontará para o caminho do extermínio do outro. 

A Necropolítica praticada por Bolsonaro nas periferias

E esse outro, no meio da pandemia do novo coronavírus que estamos atravessando, não é determinado mas determinável, já que compreende aquela camada da população brasileira menos favorecida socialmente, com menos acesso a direitos básicos, periférica e que carrega na cor preta de sua pele o enfrentamento diário ao racismo estruturalmente construído, seja no plano econômico, político ou subjetivo. 

O “e daí?” presidencial, bradado em alto e bom som, anuncia a estratégia de operar pela modalização do não-fazer-deixar-morrer, já que o novo coronovírus tem índices de letalidade maciçamente mais elevados sobre esta população que se localiza à margem dos grandes centros, como vem demonstrando as estatísticas[6] sobre a doença. De outra mão, a morosidade[7] criada pelo Poder Público em pagar o auxílio emergencial à camada da população que mais necessita, mesmo após a aprovação pelo Senado Federal – parcela da população esta que, em boa parte, já está devidamente inscrita nos órgãos de cadastro federais, fazendo jus, por exemplo, ao Bolsa Família, não havendo, portanto, qualquer dificuldade operacional para o repasse do auxílio – denota o programa narrativo da necropolítica que estamos vendo passar diante de nossos olhos. 

Como se não bastasse tudo aquilo que é dito para dirigir a morte no Brasil, o Presidente da República também atua para a consecução de seu objeto de valor necropolítico. Observe-se, neste sentido, a revogação das portarias do Comando Logístico nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que dispunham sobre rastreamento, identificação e marcação de armas e munições. Tal determinação, estreme de dúvidas, torna ainda mais fácil – e, claro, menos rastreável pelas autoridades competentes –, o acesso às armas, munições e outros componentes pelos grupos de milícias que assolam diversas regiões brasileiras. Tal ação caracteriza um poder-fazer que expande a própria necropolítica para além das limites estatais, conforme bem assinala Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco, com fundamento em Andrea Ivanna Gigena e Achille Mbembe, ao afirmar que “o direito de matar se aliena do Estado para um conjunto heteróclito de grupos armados locais, milícias, formações paramilitares, empresas privadas de segurança”[8], transformando, então, a violência em uma commodity

Talvez inspirado no primeiro ministro da Hungria, Viktor Órban, que se valeu da pandemia para governar este país por decreto, após aprovação do Parlamento prorrogando por tempo indeterminado o estado de emergência por lá, aqui o Presidente da República, em demonstração visceral de seu programa necropolítico de desgoverno, se vale do vírus para relegar à própria sorte às camadas sociais mais baixas da população, externando, ao fim e ao cabo, seu desiderato fascista de homogeneização da população brasileira. Por isso o “e daí?” significa e revela muito. 

A normalização do absurdo vem a reboque tentando sedimentar, quase à base do cansaço, toda essa discursividade da necropolítica atual brasileira. É dizer, os arroubos autoritários e depreciativos presidenciais externados reiteradamente em seus discursos geram uma senóide alocada dentro do eixo da intensidade (na vertical) e do eixo da extensidade (na horizontal). Com esse grafo da cólera discursiva presidencial, quando pretensamente se atinge o cume, o Chefe do Poder Executivo finge arrefecer, geralmente enfatizando que sua enunciação foi tirada do contexto ou passando a atacar frontalmente a imprensa, sob o suposto argumento de distorção daquilo que disse. E tal estratagema vem se repetindo, à exaustão, mês após mês durante o governo em questão. Testa-se e coloca-se à prova, a todo instante, a democracia, aferindo a aprovação ou não de tais e quais condutas pelo termômetro da repercussão emanada das redes sociais. 

A duras penas a humanidade aprendeu que discursos não podem ser menosprezados. Neste momento de pandemia trazido pelo novo coronavírus, os discursos daqueles que foram eleitos democraticamente para governar dizem muito sobre suas pretensões e comportamentos. Por tudo o que tem sido manifestado e posto em prática, fica clara na exteriorização discursiva do Governo Federal e, especial, do Presidente da República, o claro intento de governar pelo ditame da morte. 

A sociedade civil tem o papel de não se calar e não se abater pela melancolia que racionalmente pretendem incutir. É a hora de velarmos por nossas instituições democráticas e resistirmos à manipulação da intimidação governamental. É a hora de denunciarmos o projeto necropolítico sobre os mais desfavorecidos. “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”, diz outro provérbio africano. Sejamos, portanto, os sujeitos da construção narrativa que pretendemos ver registrada pela história.

Alexandre Simão de Oliveira Cardoso é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP. Bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado

Bolsonaro no BOPE. Foto: Estadão

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