Na ABA
A mineração na promoção de doenças crônico-degenerativas e no agravamento dos efeitos da Covid-19 entre Povos Indígenas
Com esta nota, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) por intermédio da sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) objetiva trazer à discussão que ora se desenvolve na sociedade brasileira, sobre como enfrentar a transmissão da COVID-19 no território nacional, uma situação específica de vulnerabilidade que exige uma estratégia também específica e urgente de ação. Para isso, iremos usar dois casos de populações indígenas afetadas pela atividade de mineração industrial e de “pequena escala” (garimpo) na Amazônia, que em decorrência disso passam a ser acometidas de doenças crônico-degenerativas, o que faz com que sejam coletivamente parte dos grupos sociais na condição de altíssimo risco epidemiológico.
Em relatório divulgado no final de março passado, o médico Dr. João Paulo Botelho Filho, professor adjunto da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), descreve um quadro que exige medidas urgentes, em particular dos Ministérios da Saúde (MS), do Meio Ambiente (MMA) e da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Trata-se do despejo de metais pesados e elementos químicos no rio Cateté pela Usina Onça-Puma da Companhia VALE (mineração de níquel), e no rio Itacaiúnas pela mina S11D de ferro, também da VALE, ambas no estado do Pará. O lançamento é realizado por ductos e canos clandestinos, em níveis de toxicidade muito acima inclusive do considerado tolerável (sic) pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), diz o professor João Paulo.
Pesquisas realizadas na região identificaram altíssimos níveis de Chumbo e Cadmio na cadeia alimentar acessada pelos grupos humanos indígenas e não indígenas regionais, associados com o surgimento de doenças crônico-degenerativas transgeracionais. Utilizadas pelos Xikrin da Terra Indígena Cateté no seu cotidiano, as águas desses rios alimentam a calha do rio Tocantins, um dos principais cursos d’água da Amazônia Oriental brasileira, e é fonte de abastecimento de água da população ribeirinha e de vários núcleos urbanos. Ou seja, o dano ambiental e à saúde humana abarca um território bem mais amplo do que o situado no interior e no entorno imediato do espaço ocupado pela atividade de mineração.
O Dr. João Paulo tem verificado ao longo dos anos que a obesidade, a hipertensão arterial e o diabetes mellitus tipo 2 estão aumentando em incidência e prevalência entre os Xikrin, assim como mortes associadas com diabetes. Em um contexto epidêmico de COVID-19, estes problemas ampliam os riscos desta população indígena. Ela fica ainda mais propensa a desenvolver casos de complicação que podem desembocar em óbito. Dados recentes do Ministério da Saúde mostram que cerca de 79% dos mortos confirmados pelo COVID-19 apresentavam ao menos um desses fatores de risco associado.
O outro caso singularmente grave diz respeito aos Yanomami e Ye’kwana, povos indígenas que habitam na fronteira norte da Amazônia brasileira, nos estados de Roraima e Amazonas. As informações que nos chegaram são de que mais de vinte mil garimpeiros estão atualmente na Terra Indígena Yanomami, de maneira totalmente irregular e clandestina, sem que medidas eficazes sejam tomadas pelo governo para conter o processo de invasão e para retirar os que lá estão. Temos conhecimento de que há vários casos de garimpeiros sintomáticos de COVID-19 que permanecem no interior do território indígena ou que de lá vieram para Boa Vista, na busca de tratamento. A invasão garimpeira é hoje o principal vetor de transmissão desta doença à população indígena.
Como se não bastasse a ocupação irregular e o risco de transmissão do novo coronavírus à população indígena, entre 16 de novembro e 3 de dezembro de 2014, o pesquisador doutor Paulo Cesar Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), coordenou um estudo sobre a presença do mercúrio (Hg) e o grau de contaminação da população Yanomami e Ye’kwana em aldeias situadas no estado de Roraima. A pesquisa foi realizada nas regiões de Paapiú (em dezenove aldeias situadas às margens do rio Mucajaí) e de Waikás (em quatro aldeias situadas às margens do rio Uraricoera), que no passado e na atualidade foram invadidas por grupos de garimpeiros e empresas do setor da mineração de ouro de “pequena escala”.
Foi utilizado como parâmetros de referência o indicador da Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera que níveis acima de 6,0 μg.g-1 podem trazer sérias consequências à saúde, mais ainda a grupos vulneráveis, com atuação primária de toxicidade nos sistemas nervoso central, urinário e cardiovascular. O Mercúrio usado nos garimpos de ouro é cumulativo no organismo como os outros metais pesados. Além disso, os sistemas respiratório, gastrointestinal, hematopoiético, imunológico e reprodutivo também podem ser negativamente afetados, gerando fragilidades na capacidade de resistência e resposta do organismo humano aos efeitos mais graves, p.e., da COVID-19. Foram observados diferentes níveis de exposição ao Hg entre as duas regiões estudadas. Concentrações alarmantes de Hg foram registradas na aldeia de Aracaça, na região de Waikás, situada próximo à área de garimpo, principalmente em crianças e mulheres na faixa etária de 12 a 49 anos. Praticamente a totalidade dos indígenas avaliados apresentaram níveis elevados de Hg no cabelo.
Diante do quadro de saúde e o nível de toxicidade verificado, recomendou-se a imediata interrupção da atividade garimpeira, e a realização de um diagnóstico situacional sobre as condições gerais de saúde e nutricional da população Yanomami e Ye’kwana afetada pelos garimpos. Medidas semelhantes é recomendada pelo Dr. João Paulo Botelho Filho, acrescido da paralização imediata da atividade de mineração e a limpeza e revitalização dos rios Cateté e Itacaiúnas pela Companhia de Mineração.
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) entende que o Ministério Público Federal (MPF) tem um papel protagônico essencial no enfrentamento desta situação e para a definição de recomendações e medidas envolvendo instituições governamentais e não governamentais, lideranças e organizações indígenas, assim como outras associações científicas, como é o caso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Brasília, 11 de maio de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ricardo Verdum.
Arte: Ascom/PRR5
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