Manutenção do Enem durante pandemia gera impactos desproporcionais e viola a Constituição, aponta PFDC/MPF

Para a Procuradoria não há oferta de educação digna em contextos como o atual, em que estão acentuadas as desigualdades

O fornecimento de conteúdo escolar em período de pandemia segue cercado de precariedade, diversidade de situações e, principalmente, desigualdade – contrariando o que estabelece a Constituição Federal de 1988 ao tratar dos objetivos fundamentais da República. 

O posicionamento é da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), órgão do Ministério Público Federal, e está em uma nota técnica publicada nesta sexta-feira (15) e encaminhada ao Ministério da Educação, ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) e ao Conselho Nacional de Educação. 

O documento traz orientações e parâmetros acerca da garantia do direito à educação em tempos de pandemia e os impactos desproporcionais do não adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020.

“No ambiente da pandemia, em que a desigualdade se acentua e a diversidade fica pouco visível, há tudo, menos educação minimamente digna. Considerar que, nesse período, há dias letivos, ou que é possível a realização da prova do Enem, é orientar a política nacional de educação na contramão do artigo 3º da Constituição Federal”. 

Na nota técnica, a PFDC destaca que a falta de acesso à tecnologia ou a uma boa conexão de Internet é um obstáculo para a aprendizagem contínua, principalmente para os estudantes de famílias desfavorecidas. Além disso, a suspensão das aulas presenciais suprime, também, o componente mais fundamental da educação: o encontro e o intercâmbio.

“Mecanismos para manter a escola de alguma forma presente no imaginário do aluno são importantes em tempo de pandemia – de modo a evitar evasão, desinteresse, desconexão. No entanto, não podem ser considerados dias letivos e tampouco instrumentos hábeis à transmissão qualificada do conhecimento”. 

Nessa perspectiva, aponta a PFDC, perdem, e muito, os estudantes com escasso acesso a meios remotos, como internet e televisão. Mas perdem todos, inclusive os mais favorecidos economicamente. “Estes podem ter facilitada a transmissão de conteúdo das disciplinas, mas igualmente ficam carentes da dimensão social da educação. E, tal como os demais, pouco habilitados a serem avaliados em exames que não podem e não devem desconhecer a socialização que a educação deve promover”. 

A nota técnica destaca que 191 países já determinaram o fechamento de escolas e universidades. A decisão atinge cerca de 1,6 bilhão de crianças e jovens, o que corresponde a 90,2% de todos os estudantes, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que vem monitorando os impactos da pandemia na educação. 

No Brasil, o Conselho Nacional de Educação aprovou em 28 de abril, por unanimidade,  as diretrizes para orientar escolas da educação básica e instituições de ensino superior durante a pandemia do novo coronavírus. “Tais diretrizes, contudo, não têm a aptidão de superar o quadro normativo a respeito de calendário escolar e horas presenciais”. 

A nota técnica é assinada pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e por um conjunto de 12 integrantes dos Grupos de Trabalho da PFDC sobre Educação em Direitos Humanos e sobre Enfrentamento e Prevenção ao Racismo.

Enem

O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado em 1998 para avaliar a qualidade do Ensino Médio brasileiro a partir do desempenho de seus estudantes. Desde 2009, o Enem se tornou critério de seleção para quem deseja ingressar nas instituições federais de ensino superior ou participar do Sistema de Seleção Unificada. 

Mesmo diante da pandemia da covid-19 o governo federal anunciou a abertura de inscrições para o Enem. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, órgão ligado ao Ministério da Educação e responsável pela elaboração do exame, as inscrições seguem até 22 de maio.

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Assessoria de Comunicação e Informação
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC)
Ministério Público Federal

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Íntegra da Nota da PFDC:

PGR-00185390/2020

Nota Técnica nº   11/2020/PFDC/MPF, 15 de maio de 2020.

Assunto: Orientações e parâmetros sobre a garantia do direito à educação em tempos de pandemia e sobre os impactos desproporcionais do não adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM 2020.

Referência: Procedimento Administrativo PA-PPB n° 1.00.000.007312/2020-41

A maior parte dos Estados brasileiros, tão logo antevista a gravidade da pandemia decorrente do novo coronavírus (COVID-19), adotaram diversas medidas tendentes ao isolamento social.

Informe recente do Imperial College[1] sobre o Brasil aponta que as políticas de redução do isolamento social tiveram, até agora, importante impacto na contenção da epidemia. Antes da redução, a taxa de contágio (Rt) estava entre 3 e 4 (a taxa indica quantas pessoas cada contagiado contamina, em média). A taxa caiu drasticamente (85%) após estados e cidades terem adotado o distanciamento social, estando situada entre 1 e 2 atualmente.

Entretanto, a redução ainda não foi suficiente para situar a taxa de contágio (Rt) abaixo de 1. Enquanto não ficar abaixo de 1, a epidemia seguirá se expandindo e aumentará a demanda por serviços de saúde, bem como o número de mortes.

Sem uma ampliação do isolamento social não será possível controlar o contágio e conter o número de mortes. Na Itália, por exemplo, Rt ficou bem abaixo de 1 após o lockdown super restrito, no qual, por exemplo, o trânsito de pessoas em mercados foi reduzido em 75%; em São Paulo e Amazonas essa redução foi respectivamente, de 21% e 18%. Ou seja, o padrão atual de quarentena não é suficiente para conter a expansão da epidemia.

Há indefinida taxa de subnotificação. A má qualidade dos dados não permite definir qual percentual da população já foi contaminada. Porém, em qualquer cenário, os valores são muito inferiores àqueles necessários (70%) para caracterizar a imunidade do rebanho.

Em suma, as medidas de redução do contato social produziram impactos significativos, mas necessitam ser ampliadas.

Desse modo, é muito pouco provável um cenário próximo de retorno às aulas, em todos os níveis de ensino, de forma presencial. No mundo, de acordo com os últimos dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que monitora os impactos da pandemia na educação, 191 países determinaram o fechamento de escolas e universidades. A decisão atinge cerca de 1,6 bilhão de crianças e jovens, o que corresponde a 90,2% de todos os estudantes.

Tão evidente constatação levou o Conselho Nacional de Educação – CNE a aprovar, por unanimidade, no dia 28 de abril, as diretrizes para orientar escolas da educação básica e instituições de ensino superior durante a pandemia do novo coronavírus[2]. Tais diretrizes, contudo, não tem a aptidão de superar o quadro normativo a respeito de calendário escolar e horas presenciais.

Desse modo, o fornecimento de conteúdo escolar em período de pandemia segue cercado de precariedade, diversidade de situações e, principalmente, desigualdade.

O Decreto nº 9.432, de 29 de junho de 2018, ao regulamentar a Política Nacional de Avaliação e Exames da Educação Básica, aponta como seus objetivos, dentre outros, (iv) aferir as competências e as habilidades dos estudantes; (v) fomentar a inclusão educacional de jovens e adultos; e (vi) promover a progressão do sistema de ensino.

A Portaria MEC nº 807, de 18/06/2010, que institui o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, estabelece que os resultados do ENEM possibilitam, dentre outros: (i) a constituição de parâmetros para auto-avaliação do participante, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho; (ii) a certificação no nível de conclusão do ensino médio, pelo sistema estadual e federal de ensino, de acordo com a legislação vigente; (iii) a criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio; (iv) o estabelecimento de critérios de participação e acesso do examinando a programas governamentais; (v) a sua utilização como mecanismo único, alternativo ou complementar aos exames de acesso à Educação Superior ou processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho; e (vi) o desenvolvimento de estudos e indicadores sobre a educação brasileira.

Assim, o ENEM, além de um lado ensejar uma acirrada disputa, dada a sua capacidade de abrir portas para o mercado de trabalho, para programas governamentais e para o ensino superior, de outro, é uma importante ferramenta para avaliação da educação brasileira.

Em documento recente, a respeito das modalidades de educação a distância, UNESCO e UNICEF apontam que há acesso desigual aos portais de aprendizagem digital, ou seja, a falta de acesso à tecnologia ou a uma boa conexão de Internet é um obstáculo para a aprendizagem contínua, principalmente para os estudantes de famílias desfavorecidas[3];A subdiretora geral de Educação da UNESCO, no mesmo documento, observou que “as escolas, ainda que estejam longe de serem perfeitas, desempenham uma função niveladora na sociedade e quando estas se fecham, as desigualdades se agravam”.[4]

A sociedade brasileira é historicamente desigual. A Oxfam[5], em relatório intitulado “A distância que nos une – um retrato das desigualdades brasileiras”, observa:

Desigualdades sociais não são inevitáveis. São, antes,produto da ação ou inação de governos e empresas ao longo da história, em benefício de poucos indivíduos com muito poder. Desta forma, seu combate também exige políticas sustentadas ao longo do tempo, levadas a cabo por sucessivos governos, bem como mudanças estruturais na forma pela qual as sociedades distribuem renda e riqueza. São diversos os fatores que explicam a situação de desigualdade extrema no Brasil. Nossa bagagem histórica de quase quatro séculos de escravidão e nosso largo passado colonial criaram profundas clivagens entre regiões, pobres e ricos, negros e brancos, mulheres e homens.  Tal distanciamento marcou a forma com a qual organizamos nossa sociedade, nossa economia e nosso Estado, diminuindo sua capacidade redistributiva.
Em outras palavras, não só nossa economia beneficia poucos, mas também nosso Estado e nossa organização social contribuem para perpetuar desigualdades.”

A Constituição de 1988, porque resultado de lutas sociais, vai ter como principal propósito vencer a desigualdade. É textual em seu artigo 3º ao afirmar que a sociedade brasileira tem o compromisso de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV), e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III).

Há, no artigo 3º, dois vetores hermenêuticos fundamentais: a máxima igualdade na máxima diversidade. Apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, e esta só é possível se se assegura a cada qual sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida.

E o espaço escolar foi estrategicamente pensado para avançar nesse sentido. Daí porque o art. 205 da Constituição traz como objetivo primeiro da educação o pleno desenvolvimento das pessoas e a sua capacitação para o exercício da cidadania. A seguir, enuncia também o propósito de qualificá-las para o trabalho. Essa ordem de ideias não é fortuita. Ela parte da ideia de que a educação tem o papel primeiro de desenvolver todas as capacidades pessoais, que só são possíveis no encontro das muitas e diferentes visões de mundo.

Lacan, Derrida, Judith Butler, dentre muitos outros autores, falam da nossa falha constitutiva. Somos seres incompletos, na busca permanente de superação dessa falta. Daí por que a diversidade é também um imperativo de natureza individual. O sempre igual nos mantém incompletos. A possibilidade de alcance da completude requer o espaço da diversidade.

A Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência tem uma expressão símbolo: as pessoas com deficiência fazem parte da diversidade humana e da humanidade. E, em seu preâmbulo, reconhece que “a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente (…)” (incisos “e” e “i”).

Significa dizer que é impossível, antecipadamente, dizer que alguma pessoa não possui tais ou quais habilidades sem análise concomitante das barreiras culturais, comportamentais e ambientais que se colocam ao seu pleno desenvolvimento e da possibilidade de sua superação.

Desse modo, somos seres precários, que precisamos uns dos outros, e é nos encontros que vamos percebendo as barreiras que nos separam e a necessidade de vencê-las.

A educação, mais do que qualquer outro espaço social, postula a presença, os corpos que se percebem diferentes e vão aprendendo, uns com os outros. Esse é o sentido do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC – promulgado pelo Decreto 591, de 6 de julho de 1992), quando estabelece em seu artigo 13.1 que: “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.

Também o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador – promulgado pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999) estabelece, no seu Artigo 13, em relação ao direito à educação que: “[…] 2. Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz”.

A suspensão das aulas presenciais, desse modo, suprime o componente mais fundamental da educação: o encontro e o intercâmbio.

Mecanismos para manter a escola de alguma forma presente no imaginário do aluno são importantes em tempo de pandemia, para evitar evasão, desinteresse, desconexão. Mas não podem ser considerados dias letivos e tampouco instrumentos hábeis à transmissão qualificada do conhecimento.

Perdem, e muito, os estudantes com escasso acesso a meios remotos, como internet e televisão. Mas perdem todos, inclusive os mais favorecidos economicamente. Estes podem ter facilitada a transmissão de conteúdo das disciplinas, mas igualmente ficam carentes da dimensão social da educação. E, tal como os demais, pouco habilitados a serem avaliados em exames que não podem e não devem desconhecer a socialização que a educação deve promover.

No ambiente da pandemia, em que a desigualdade se acentua e a diversidade fica pouco invisível,  há tudo, menos educação minimamente digna. Considerar que, nesse período, há dias letivos, ou que é possível a realização da prova do ENEM, é orientar a política nacional de educação na contra-mão do artigo 3º da CR.

Brasília, 15 de maio de 2020.

DEBORAH DUPRAT
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

FELIPE DE MOURA PALHA E SILVA
Procurador da República
Coordenador do GT Educação em Direitos Humanos
Membro do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

LÍVIA MARIA SANTANA E SANT’ANNA VAZ
Promotora de Justiça
Coordenadora do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

BRUNA MENEZES GOMES DA SILVA
Procuradora da República
Membro do GT Educação em Direitos Humanos

ELEOVAN CÉSAR LIMA MASCARENHAS
Procurador da República
Membro do GT Educação em Direitos Humanos

ENRICO RODRIGUES DE FREITAS
Procurador da República
Membro dos GTs Educação em Direitos Humanos e Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

GABRIEL PIMENTA ALVES
Procurador da República
Membro do GT Educação em Direitos Humanos

JAIME MITROPOULOS
Procurador da República
Membro do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR
Procurador da República
Membro dos GTs Educação em Direitos Humanos e Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

MARIA BERNADETE MARTINS DE AZEVEDO FIGUEIRA
Procuradora de Justiça
Membro do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

NATÁLIA LOURENÇO SOARES
Procuradora da República
Membro do GT Educação em Direitos Humanos

WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG
Procurador Regional da República
Membro do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

PAULO GILBERTO COGO LEIVAS
Procurador Regional da República
Membro do GT Enfrentamento e Prevenção ao Racismo

[1] https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/mrc-gida/2020-05-08-COVID19-Report-21.pd

[2] Trechos                             retirados                de:          http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php? option=com_content&view=article&id=89051:cne-aprova-diretrizes-para-escolas-durante-apandemia&catid=12&Itemid=86

[3] Id, ib

[4] Id, ib

[5] https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_ une.pdf    

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