Polícia Federal em Tabatinga (AM) investiga culto religioso com 400 pessoas dentro de Terra Indígena

Pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus, a mesma de Valdemiro Santiago, é um servidor Tikuna da Funai; os relatos são de que as cerimônias na TI Feijoal, na fronteira com o Peru, continuam acontecendo, ainda que com menos fiéis

Por Maria Fernanda Ribeiro, em De Olho nos Ruralistas

A Polícia Federal em Tabatinga investiga um culto religioso realizado dentro da Terra Indígena Feijoal, em Benjamin Constant (AM), no dia 28 de março, com a presença de 400 pessoas vindas de dentro e de fora da comunidade. O pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus é um servidor indígena da Fundação Nacional do Índio (Funai). Mesmo alertado da ilegalidade do ato, ele prosseguiu com a cerimônia. O local é território da etnia Tikuna, onde moram cerca de 4.500 indígenas.

Agentes da Funai e do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Solimões estiveram na comunidade antes da realização do evento para alertar o pastor Davi Cecílio Felix, também da etnia Tikuna, que a ação contrariava as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de órgãos federais, estaduais e municipais no combate e prevenção à pandemia, além de ser um ato de insubordinação, por ele se tratar de um servidor federal.

A Funai enviou as seguintes informações ao De Olho nos Ruralistas:

— Numa reunião com o cacique, diversos representantes religiosos e outras lideranças locais, as equipes das duas instituições expuseram diversos argumentos técnicos, sanitários, legais e até religiosos para que o culto não fosse realizado. Foi enfatizado quanto a ilegalidade e a periculosidade da realização do culto. E, ainda houve diversas tentativas de que se cancelasse o evento, via telefone.

Em vão. O culto não só foi realizado, como continuam a acontecer todas as sextas, sábados e domingos. Mas o de março teria sido o maior, pois se tratou de uma cerimônia em comemoração ao aniversário da igreja, onde até indígenas do Peru – país fronteiriço – estiveram presentes. A investigação ocorre em Tabatinga, município estratégico na região, na fronteira com Peru e Colômbia.

LÍDER DA IGREJA É VALDEMIRO SANTIAGO

A Igreja Mundial do Poder de Deus é a mesma do pastor Valdemiro Santiago, o religioso que ofereceu feijão para a cura de coronavírus. O Ministério Público Federal (MPF) mandou o YouTube retirar o vídeo das redes e também apresentou uma notícia crime na qual pede investigação de Valdemiro por prática de estelionato.

O delegado-chefe da Polícia Federal em Tabatinga, João Paulo Correa, afirmou que foi recebida a denúncia e que a investigação ainda está em fase inicial, com levantamento de informações preliminares para identificar se houve algum ilícito penal. Ele disse que serão levados em consideração os decretos do governo do Amazonas e da Presidência sobre liberação de atividades religiosas como essenciais.

“Se havia um decreto por conta da pandemia impedindo aglomeração de pessoas e ele foi desobedecido, em tese poderia haver o crime de infração sanitária preventiva”, afirma Correa.

Segundo um líder Tikuna que não quis se identificar, Davi e os irmãos, também servidores da Funai e igualmente religiosos, têm se aproveitado do momento da pandemia para causar temor na comunidade, com o discurso de que Deus só vai proteger quem estiver na igreja. Essa leitura contraria não só as orientações de saúde, mas também o conselho local e líderes indígenas:

— Eles não respeitam ninguém e também não respeitam a cultura Tikuna porque qualquer tentativa de fortalecer a nossa cultura, como rituais, eles afrontam. São muito perversos nesse sentido e exploram a comunidade cobrando dízimo. Construíram essa igreja grande com o suor dos fiéis. Não sei o que os órgãos competentes estão esperando para barrarem isso, talvez a morte de todo nosso povo e muitos casos de coronavírus apareceram depois desse culto.

‘TU TEM QUE TOMAR CUIDADO COM O QUE ESTÁ FALANDO’

Há também relatos de intimidação, por parte da família do pastor, a todos que se posicionam contra a realização dos cultos, mesmo em postagens nas redes sociais. A reportagem teve acesso a um deles, em que o autor seria um dos irmãos de Davi alertando para alguém que o teria denunciado: “Isso vai dar processo para ti, não brinque com quem é evangélico e escolhido por Deus, tu tem que tomar muito cuidado com o que está falando”.

Davi é servidor da Funai há três décadas, contratado como monitor bilíngue. Ele também já foi vereador e coordenador-regional da Funai.

As mensagens durante os cultos em tempos de pandemia relacionam a cura do coronavírus à fé. Dizem que não se deve temer a doença, pois quem está na igreja está livre de contágio. O avanço das igrejas neopentecostais entre os indígenas tem sido um entrave na pandemia e considerado, nessa região do Solimões, rota de acesso aos povos isolados do Vale do Javari, como um dos principais problemas a ser enfrentado no combate à disseminação do vírus.

A reportagem entrou em contato com Davi pelo telefone, mas ele não quis falar. No dia 5 de maio morreu em Manaus um sobrinho do pastor, o médico Cleubi Florentino, 36, que trabalhava na capital no combate à pandemia. Da comunidade Feijoal, foi o primeiro Tikuna a se formar em medicina.

MUNICÍPIO DECRETOU CALAMIDADE PÚBLICA

O município de Benjamin Constant já tem dez óbitos — não somente entre indígenas — e 92 casos, segundo boletim divulgado na quarta-feira (13). De acordo com o IBGE, o município a 1.184 quilômetros de Manaus, tão a oeste que seu fuso-horário é o mesmo do Acre, tem 42.984 habitantes.

Conforme dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde, a região do Alto Rio Solimões, onde estão inseridas as cidades de Tabatinga e Benjamin Constant, na tríplice fronteira (Peru, Colômbia e Brasil), é onde estão concentrados os maiores índices de contaminação e mortes entre os indígenas: 129 casos confirmados e dez óbitos, considerando apenas aqueles que vivem nas aldeias.

O número de infectados corresponde a 46% de todos os 34 distritos sanitários do país e o de óbitos a 52%. A prefeitura de Benjamin Constant decretou em 24 de março estado de urgência no município e adotou o isolamento e a quarentena como medidas preventivas, com autorização de força policial em casos de descumprimento da lei. Em 16 de abril foi publicado o decreto obrigando o uso de máscaras.

No dia 1º de maio a prefeitura decretou estado de calamidade pública.

Benjamin Constant não tem hospital de alta complexidade e os casos mais graves são transferidos para Manaus, que está com o sistema de saúde colapsado e onde um indígena da etnia Tikuna foi contaminado dentro do hospital, após ser levado para outro tratamento. Os Tikuna, assim como os Kokama, duas etnias populosas, são os que mais engrossam as estatísticas de mortes e infectados indígenas em todo o Brasil.

Cultos não só reúnem multidões, mas defendem cura pela fé. (Foto: Reprodução)

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