Justificar inação diante de recordes diários de casos, mortes e falta de testes é difícil, mas o Ministério da Saúde tem se contorcido o quanto pode. Leia também: Reaberturas nos comércios acontecem a despeito da piora nos números brasileiros
por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
OS NÚMEROS E OS MALABARISMOS
Pela segunda vez em uma semana, o Brasil registrou mais de mil mortes em 24 horas. Foram 1.188 entre quarta e quinta-feira, levando a um total a 20.047 óbitos. O número de infecções conhecidas chegou a 310 mil, com 18,5 mil novos casos.
Os registros continuam velhos, o país continua perdido. Na coletiva de imprensa ontem, Eduardo Macário, diretor do Departamento de Análise em Saúde e Vigilância em Doenças Não Transmissíveis, afirmou que até agora a data de 5 de maio foi a que, de fato, teve o maior número de óbitos num único dia: 480. Foi apresentado um gráfico mostrando que, a partir de então, tem havido um decrescimento das mortes.
Ocorre que as investigações não foram todas concluídas. Voltando um pouco no tempo, vemos que no dia 5 de maio o número de óbitos divulgado pelo Ministério foi de 600, mas na época a pasta informou que só 25 deles tinham realmente acontecido nas 24 horas anteriores. Se hoje o governo sabe que houve 480 mortes naquela data, isso quer dizer que outras 455 foram registradas depois. Ou seja: não dá para confiar nem um pouco nessa aparente diminuição das mortes desde o dia 5.
Pelo menosMacário reconheceu que se trata de uma falsa impressão, afirmando que não há “subsídios suficientes” para identificar se o Brasil já atingiu o pico da pandemia. Na verdade, daria para ser bem mais específico do que isso e dizer que, muito provavelmente, o pico não passou. Basta olhar para a sobrecarga na rede de saúde de vários estados e municípios e para a forma como o vírus vem se espalhando Brasil adentro. Fora que o volume de mortes sem diagnóstico fechado não para de crescer, apesar de que, segundo Marcário, “essa demora já foi muito maior no passado, e agora a gente consegue ter uma celeridade nessas investigações”. Acontece que neste momento há 3,5 mil óbitos em investigação. No dia 5, eram 1,5 mil.
Quanto ao número de casos, o Ministério da Saúde tem uma teoria interessante para explicar por que a curva brasileira está crescendo de forma mais acentuada do que aconteceu nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Itália, na França e na Espanha (sempre comparando com o dia da entrada do vírus em cada país): é que agora o Brasil estaria correndo atrás de eliminar a subnotificação, com o “aumento na capacidade laboratorial”. De acordo com Macário, estamos “identificando uma curva bem próxima do número de casos real”. O Brasil ainda é um dos países que menos testam no mundo. É preciso muito boa vontade para crer nessa explicação.
Em tempo: sempre ganhando manchetes com farfalhadas, o presidente Jair Bolsonaro disse em sua live de ontem que no Brasil morre “muito mais gente de pavor” do que de covid-19. “No meu entender, houve uma propaganda muito forte em cima disso. Trouxe o pavor para o seio da família brasileira“, insistiu.
O FIM DO QUE NÃO COMEÇOU
Em comparação com outros países e regiões, vários estados brasileiros começaram a adotar medidas de restrição relativamente cedo, em meados e março, quando o país registrou a primeira morte em São Paulo. Ainda assim, as curvas de contágio e morte hoje parecem incontornáveis. Isso tem sido combustível para a ira bolsonarista em suas redes, onde tomou corpo o boato de que o isolamento não têm muita serventia.
Mas as restrições foram quase sempre insuficientes, e, conforme a situação piorava, elas demoraram a ser enrijecidas. Mesmo nos lugares onde se declarou o lockdown, o que seria o confinamento mais duro possível, não necessariamente as medidas são ou foram dignas desse nome. Uma reportagem da Piauí explica como cada estado e município usa uma estratégia diferente e a bagunça que isso gera.
No Maranhão, primeiro estado a determinar o lockdown (o que foi feito quando a ocupação das UTIs estaduais destinadas a pacientes com coronavírus na região metropolitana de São Luís, chegou a 100%), as aulas foram suspensas, o uso de máscaras se tornou obrigatório, os serviços não essenciais foram fechados. Porém, embora tenha sido vetada a aglomeração de pessoas em espaços públicos, a movimentação nas ruas não foi proibida, nem a circulação de carros particulares. Vale dizer que, ainda assim, o quadro melhorou. Mas as medidas foram interrompidas numa situação ainda muito pouco confortável, com mais de 80% das UTIs cheias. Com o mesmo nome – ‘lockdown‘ –, as restrições no Pará foram muito mais pesadas, abrangentes e duradouras. Na capital cearense, também.
O Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste recomendou ontem que mais governadores da região adotem o lockdown em algumas grandes cidades da Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Bahia, onde há curvas ascendentes de casos e mais de 80% de ocupação dos leitos hospitalares. Resta saber que ‘lockdown‘ será este, se for acatado. Em Pernambuco, mesmo com confinamento iniciado no sábado, a taxa de isolamento segue baixa: na quarta, ficou em 54% na capital e na casa dos 53% em Olinda.
“O nosso isolamento social é muito meia-boca. Estamos fazendo uma coisa pela metade. E o que é pior, a gente é como aquele paciente que toma metade do antibiótico, não cura da infecção, mas tem dor de cabeça, dor de estômago e todos os efeitos colaterais”, resumiu, na Piauí, o epidemiologista e professor da USP Paulo Lotufo. E completou: “Nós estamos aprendendo, ninguém sabe exatamente o que tem que ser feito. A questão é achar alguns marcadores. Defendo dois principais: ver se houve alteração no excesso de mortes e aumentar a capacidade hospitalar. Quando você reduzir as mortes e aumentar a sua capacidade de atendimento a quem precisa, tiver mais leitos e dando conta da situação, aí você pode pensar no afrouxamento da medida”.
Como bem sabemos, não é o que acontece. Nem poderia: mesmo onde as curvas diminuem, não dá para saber direito se é por redução nas contaminações ou pela falta de testes e atraso nos registros. Simplesmente não há dados para determinar reaberturas.
O estado do Rio, que tem 32 mil casos e 3,4 mil mortes, anunciou ontem seu protocolo de flexibilização. As decisões vão se basear justamente em dados falhos. Conforme as curvas da doença e as taxas de ocupação de leitos, haverá bandeiras verde, amarela e vermelha indicando a liberação ou fechamento das atividades. Só que se trata do estado com o mais baixo índice de processamento de exames de covid-19. Só 42% das amostras colhidas foram processadas – e isso sem contar os testes que sequer foram feitos.
Na capital fluminense, grande foco das contaminações e mortes do estado (18 mil casos e 2,3 mil mortes), o prefeito Crivella almoçou com Bolsonaro ontem e logo em seguida anunciou já ter pronto um “plano completo” de reabertura do comércio nos próximos dias. Segundo ele, a proposta vem num momento de achatamento da curva. Mas… há mais de 400 pessoas na fila por vagas em leitos de UTI na cidade. Duque de Caxias, segundo município com mais mortes (167, em 1,1 mil casos), já anunciou a abertura do comércio a partir de segunda-feira. Por lá, nunca houve restrições à circulação de pessoas. Em ambas as cidades, a taxa de mortes é altíssima, o que só comprova que há muitas, muitas infecções não registradas.
Já Niterói, com 1,9 mil casos e 65 mortes, começou ontem sua flexibilização do lockdown, após menos de duas semanas do bloqueio. O município tem sido cuidadoso no controle da crise, e o plano foi desenvolvido por técnicos da prefeitura, pesquisadores da UFF e da UFRJ (e também empresários). Algumas atividades não essenciais começam a ser realizadas, mas ainda com restrições.
O presidente Jair Bolsonaro falou a apoiadores sobre a retomada. Comemorou a conversa com Crivella, mas disse que a abertura das escolas vai precisar ser feita “com calma”. Não porque seja perigoso, mas porque as famílias ainda não se despiram do seu ‘pavor’: “A população tem que ir entendendo aos poucos o que é este vírus, que ele realmente é muito perigoso para quem tem certa idade, para quem tem alguma doença. Para a juventude não tem este perigo todo. Estamos analisando aí… Os pais [têm que] afastar aquela ideia de pavor que tinha no tocante ao vírus para a gente poder abrir”, disse.
Em tempo: Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, disse ontem que não planeja suspender atividades da economia de novo caso os Estados Unidos sejam atingidos por uma nova onda de covid-19 (não, a primeira não acabou). A verdade é que se houver testagem suficiente para localizar todos os focos e tecnologia para rastrear todos os contatos, talvez bloqueios abrangentes não sejam tão necessários, mas não se sabe o que vai acontecer. De qualquer forma, lá como aqui, não depende do presidente essa decisão. Um estudo da Universidade de Columbia calculou que, nessa primeira ‘leva’, 35 mil vidas poderiam ter sido salvas caso as medidas de distanciamento social no país tivessem sido adotadas apenas uma semana antes.
ERRO GROSSEIRO É NÃO SEGUIR OMS
A medida provisória 966 foi editada por Jair Bolsonaro no dia 13 de maio. Partidos e Associação Brasileira de Imprensa entraram com ações destacando inconstitucionalidades do texto que dá uma espécie de salvo-conduto para agentes públicos durante a pandemia. Mas o Supremo Tribunal Federal agiu bem rápido: ontem, uma semana depois da publicação da MP no Diário Oficial, os ministros decidiram cortar suas asas.
Oito ministros acompanharam o voto do relator das ações, ministro Luís Roberto Barroso, impondo uma restrição ao conceito de “erro grosseiro” presente na redação original. Assim, não seguir a ciência – como tem feito o governo federal, estimulado pelo presidente – pode ser enquadrado como tal.
Na votação em plenário, os ministros deram vários recados. Luiz Fux argumentou que o erro grosseiro, do qual fala a MP, “é o negacionismo científico voluntarista”. “Temos diversos órgãos que afirmam o que é eficiente e aquilo que não é eficiente”, lembrou.
“A Constituição não autoriza ao presidente da República ou a qualquer outro gestor público a implementação de uma política genocida na questão da saúde”, disse de forma bem direta e dura o ministro Gilmar Mendes, que frisou a importância de seguir as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive nas diretrizes para tratamento do novo coronavírus: “Não podemos é sair aí a receitar cloroquina e tubaína”, disse, em referência à declaração que tanto divertiu Jair Bolsonaro.
Já Alexandre de Moraes lembrou que, embora haja muita coisa que ainda não se sabe sobre o novo coronavírus, o cenário de incerteza total pintado pela MP não faz sentido. “Em que se pese a situação nunca vista nos últimos cem anos, há conceitos científicos que estão sendo trabalhados. A ciência pesquisa para balizar os gestores públicos”, constatou, concordando que desrespeitar orientação da OMS “constitui indício de erro grosseiro”.
O único ministro que não acompanhou o relator foi Marco Aurélio Mello, que queria derrubar o texto por completo ao invés de melhorá-lo. Celso de Mello não participou porque está dedicado à redação da decisão sobre liberação (ou não) do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, citada por Sergio Moro como uma das provas da interferência do presidente na Polícia Federal. A aguardadíssima decisão do decano do Supremo deve sair hoje.
NUVENS CARREGADAS
A depender da decisão de Celso de Mello, esta será mais uma sexta-feira daquelas para Jair Bolsonaro. Ontem, na sua tradicional transmissão ao vivo no Facebook, o presidente voltou a pedir que o ministro divulgue apenas trechos da gravação.
E se a atividade nas redes sociais continua, os quebra-queixos – aquelas entrevistas rápidas dadas antes ou depois de deslocamentos e agendas – minguaram desde que o empresário Paulo Marinho veio a público denunciar que o senador Flávio Bolsonaro, recebeu informação privilegiada sobre a operação da PF que desvendaria o esquema de rachadinhas e traria à cena o personagem Fabrício Queiroz. “A última vez que Bolsonaro parou para responder perguntas de repórteres em frente ao Palácio da Alvorada foi na sexta-feira (15), portanto antes da publicação da entrevista”, nota a Folha.
Até o ideólogo do governo Olavo de Carvalho anda se enrolando para defender Jair Bolsonaro: “Casos pequenininhos de corrupção podem acontecer em qualquer governo”, disse à BBC Brasil.
Também ontem, partidos de oposição e cerca de 400 entidades da sociedade civil apresentaram na Câmara dos Deputados o que está sendo chamado como “megapedido” de impeachment. Os pontos destacados na conduta de Bolsonaro são o apoio – e participação –a manifestações antidemocráticas, a tentativa de intervir na PF, que está sendo investigada no inquérito aberto pela PGR, e, claro, seus atos durante a pandemia. O processo afirma que o presidente tem sido “antagônico e contraproducente ao esforço do Ministério da Saúde”. Bom, agora que ele colonizou a pasta com militares, a crítica já precisa se ampliar. É o 36º pedido de afastamento encaminhado ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O historiador José Murilo de Carvalho comentou a situação: “Desde o início, ele [Bolsonaro] se preocupa fundamentalmente com a reeleição. É por isso que sua política é contrária ao que a Organização Mundial da Saúde recomenda em relação ao tratamento da epidemia: porque isso tem sérias consequências para a economia, como em todos os países. E aqui, seguindo Trump, ele vai contra as recomendações dos médicos e de seus próprios ministros: ele já perdeu dois ministros da Saúde porque está em confronto com eles, devido a medidas que a OMS e todos os governadores aqui no Brasil seguem. Ele está antagonizando os governadores, com o sistema de saúde, com a ciência… Isso o coloca em uma situação muito frágil no momento e ninguém pode prever quando essa crise terminará. Acho que está ficando cada vez mais difícil imaginá-lo chegando ao fim de seu mandato, que ainda tem dois anos e meio.”
PRA FICAR BEM NA FOTO
Depois de passar meses investindo suas baterias no confronto com governadores e outros poderes, Jair Bolsonaro se reuniu com todos ontem. Pediu apoio dos chefes dos Executivos estaduais e dos presidentes do Senado e Câmara para que o veto que fará ao reajuste dos vencimentos de todos os servidores públicos até o fim de 2021 seja mantido. Lembremos: o PL aprovado pelo Congresso previa exceção para algumas categorias, por exemplo policiais – com o aval do próprio Bolsonaro. Mas o presidente resolveu apoiar Paulo Guedes nessa parada.
O pacote de auxílio a estados e municípios estava até ontem encalhado na mesa de Bolsonaro há mais de duas semanas. Os governadores e prefeitos, portanto, estavam com boa disposição para convencer o presidente da urgência da liberação das verbas no valor de R$ 60 bilhões. Pedem que o pagamento da primeira parcela seja feito até 30 de maio. Bolsonaro prometeu sancionar.
O clima de harmonia da reunião foi destaque. “Vamos em paz presidente, vamos pelo Brasil, e vamos juntos. É o melhor caminho e a melhor forma de vencer a pandemia”, declarou o governador de São Paulo João Doria (PSDB), alvo maior de Bolsonaro, que depois comemorou que o ambiente de civilidade “refletiu até na Bolsa”. Não foram discutidos assuntos “polêmicos” (e urgentes, necessários) como o isolamento social e o atraso do Ministério da Saúde na entrega de insumos e equipamentos.
Mas há um impasse, uma questão em aberto. Trata-se da regra que diz que se um estado deixar de pagar parcelas de dívidas com bancos internacionais e o Tesouro cobrir essas parcelas, a contrapartida esperada pelo governo federal é o congelamento de repasses do FPE, fundo através do qual a União transfere recursos para as unidades da federação. No pacote de ajuda aprovado pelo Congresso, esse mecanismo foi suspenso. Mas a equipe econômica defende que, mesmo na pandemia, a regra continue em vigor. Ou seja, quer o veto de mais esse acordo feito no Congresso. Ontem na reunião, o governador do Mato Grosso do Sul Reinaldo Azambuja (PSDB), pediu que Bolsonaro não vete. O presidente disse que ia analisar. Mas caso siga novamente a orientação da equipe econômica, Bolsonaro deve ver seu veto derrubado no Congresso. Os governadores prometeram trabalhar para isso.
O governador do Maranhão, Flávio Dino, expressou publicamente o desconforto com a falta de respostas de Bolsonaro para as perguntas dos governadores que saíram da reunião sem saber quando o dinheiro cai nas contas dos seus estados e sem saber sobre aquele veto que acabamos de falar.
PRIMEIRA TIPARTITE
O general Eduardo Pazuello fez o seu debut ontem em uma reunião da comissão Intergestores tripartite, a CIT. Como sempre fazemos questão de explicar por aqui, a CIT é uma das peças-chave da governança do SUS, que é um sistema interfederativo onde os entes devem buscar pactuações sobre os mais variados assuntos.
O encontro, que acontece mensalmente na sede da Organização Pan-Americana (Opas), em Brasília, vinha sendo adiado por divergências entre os conselhos estaduais e municipais de secretários de saúde com o Ministério. Parece que tudo também correu em clima de harmonia – porque, novamente, os envolvidos evitaram algumas das discussões mais prementes do momento: isolamento social e cloroquina. O presidente do Conass, Alberto Beltrame, fez uma crítica sem muitos detalhes endereçada ao governo federal. “Nós não temos o direito de não transmitirmos uma mensagem firme e clara dos gestores do SUS em prol da saúde, da vida de todas as pessoas”.
O destaque da reunião foi o reconhecimento de que o coronavírus se interiorizou. Pazuello recomendou que os gestores reforcem questões logísticas de transporte de pacientes de pequenas cidades sem infraestrutura para municípios com leitos de internação e UTI e mencionou a possibilidade de abertura de unidades de tratamento intensivo em hospitais do interior. Também afirmou que Sul, Sudeste e Centro-Oeste devem se preparar para o agravamento da situação, segundo ele por conta da chegada do inverno.
CORPO ESTRANHO
Um fato um pouco antigo virou notícia ontem. Trata-se de outro mistério no Ministério da Saúde, com o perdão da piada. Ainda na gestão Teich, o advogado Zoser Hardman de Araújo foi nomeado como assessor especial do ministro. O criminalista ficou conhecido por atuar na defesa de milicianos no Rio de Janeiro, o mais célebre deles Cristiano Girão, primeiro vereador a ter mandato cassado na história da Câmara carioca, e também do ex-policial militar Daniel Benitez, condenado pelo assassinato da juíza Patrícia Acioli. Ninguém responde quem é o padrinho político do advogado – nem que diabos um criminalista está fazendo no gabinete mais importante do Ministério da Saúde. Zoser é filiado ao PRTB, partido do vice-presidente Hamilton Mourão.
Já em relação às críticas sobre o acelerado processo de militarização da pasta, Eduardo Pazuello saiu-se com o clichê de que militares estão preparados para lidar “com esse tipo de crise”. Como se quadros técnicos que já enfrentaram outras pandemias e epidemias não estivessem… De toda forma, o ministro interino prometeu que os fardados vão ficar na pasta “só 90 dias” – o que não deixa se ser revelador do baixo reconhecimento do governo da dinâmica em ondas de contágio que tem marcado a pandemia de covid-19 em outros países em estágios mais avançados de introdução do vírus. Mas pode ser o prazo de validade do próprio Pazuello como responsável pela pasta. “É temporário e vou ter que substituí-los ao longo dos 90 dias por pessoas que vão sendo escolhidas e apresentadas, e a gente vai selecionando e colocando já no momento de mais normalidade”.
A propósito: profissionais que o Ministério deveria estar pagando, mas não recebem há 50 dias, protestaram ontem na frente da sede da pasta, em Brasília. médicos residentes, contratados para atuar 60 horas por semana.
ENFIM, ASSINADA
O general Eduardo Pazuello mandou todos os sete secretários do Ministério da Saúde assinarem o documento que dá sinal verde para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina aos menores sintomas da covid-19. Malandramente, ele próprio não assinou a “nota informativa”.
Sem perder tempo, a Secretaria de Comunicação da Presidência começou ontem a propaganda das substâncias. Mentindo, a Secom disse no Twitter que o medicamento “é considerado o mais promissor no combate à covid-19” e afirmou que o Brasil “ganhou mais uma esperança no tratamento do coronavírus”.
Enquanto isso, quem precisa da cloroquina para tratar doenças que comprovadamente se beneficiam da droga não a encontra nas farmácias, como narra Juliana Coin, que, em plena região metropolitana de Porto Alegre, embarcou numa saga para comprar os comprimidos para a avó de 80 anos, que tem artrite reumatoide.
E tem desinformação para todos os gostos. O médico Francisco Cardoso atuou no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, um dos grandes centros de excelência do SUS, três anos atrás. Convidado para depor num julgamento da Justiça Federal do Piauí, Cardoso usou do prestígio da instituição, se identificando falsamente como membro dela, para dar a seguinte declaração: segundo ele, os profissionais que não prescrevem cloroquina aos pacientes “lavarão as mãos com sangue das vítimas”. O episódio deixou de olhos arregalados e bocas abertas os profissionais do Emílio Ribas. E tem tudo para puxar boatos de WhatsApp.
AS MORTES NA LINHA DE FRENTE
Desde o primeiro caso de coronavírus confirmado no país, a doença já tirou a vida de 143 enfermeiros e 113 médicos no Brasil. Nós, aliás, somos o país onde mais se morrem enfermeiros nessa pandemia.
Pois ontem, a Câmara dos Deputados votou um projeto de lei que prevê pagamento de indenização de R$ 50 mil pela União aos familiares de todos os trabalhadores de saúde mortos por conta da covid-19. Se deixarem dependentes, um valor adicional de R$ 10 mil será pago por ano a cada um deles até que atinjam 21 anos. E como a doença tem dado sinais de que pode deixar sequelas variadas, os deputados também decidiram que o governo federal deve pagar R$ 50 mil aos profissionais incapacitados permanentemente para o trabalho como resultado da infecção.
ABUSO
Tentando pegar carona na pandemia, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou uma mudança no plano de saúde dos deputados, servidores e familiares. De acordo com o projeto, o pagamento desses convênios será vitalício. Ou seja, mesmo que o deputado perca o mandato, continuará tendo seu plano privado pago com dinheiro público.
REQUISIÇÃO DE LEITOS
Ontem, a votação do projeto que garante o uso de leitos da rede privada pelo SUS durante a pandemia foi mais uma vez adiado. O motivo dessa vez é um sinal dos tempos: o secretário-geral da mesa do Senado foi diagnosticado com o novo coronavírus. A sessão, que também ia discutir outros assuntos, foi adiada para semana que vem.
E ontem o Ministério da Saúde deu uma sinalização no sentido da requisição de leitos, mas com linguagem ambígua. Uma nota técnica da pasta, que deve virar portaria, recomenda um passo a passo para os gestores ampliarem as capacidades das suas redes de saúde. Primeiro, devem instalar mais leitos de internação e UTI nos hospitais que já existem. Em seguida, devem dedicar unidades inteiras ao tratamento da covid-19. Na sequência, devem analisar a viabilidade de contratação de vagas na rede privada. Só depois devem implantar hospitais de campanha. Contudo, ainda não fica clara a posição da pasta sobre situações em que o gestor encontra dificuldades do outro lado e, ao invés de contratos assinados em comum acordo – como acontece em São Paulo –, tem como única saída a requisição da infraestrutura particular.
É o caso do Tocantins, que na semana passada confiscou 70% dos leitos de UTI de oito hospitais particulares do estado. A decisão aconteceu depois que o governo ficou sabendo que as empresas estavam levando para o estado de avião pacientes do Pará. Para o secretário estadual de Saúde, Luis Edgar Tollini, esse movimento poderia causar o colapso da capacidade de atendimento no Tocantins, já que quando se esgotassem os leitos do SUS, que são apenas 43, os privados poderiam já ter sido ocupados. “Como temos dificuldades de expandir a oferta de leitos de UTI na rede pública de saúde, devido à indisponibilidade no mercado de equipamentos necessários à montagem dos mesmos em curto prazo, nós estamos requisitando leitos na rede particular, pois não queremos chegar à situação de estados vizinhos, em que a rede de saúde já entrou em colapso”, afirmou Tollini.
Para ler com calma no final de semana: uma reportagem longa da Agência Pública explica tim-tim por tim-tim esse grave problema, do qual sempre falamos. Há muito levantamento de dados e gráficos.
QUANDO É PRECISO OBRIGAR
A Câmara aprovou ontem a criação e um plano emergencial para os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais durante a pandemia. Algo que, convenhamos, já deveria ter sido feito há meses pelo governo federal, que tem Funai, Sesai, dentre outros.
O PL prevê a garantia do básico: acesso à água potável, leitos, testes e medicamentos; distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção. E, no caso dos povos indígenas, que dispõem de um subsistema de saúde próprio, que se respeite a quarentena para evitar que profissionais infectem índios.
O texto precisa ser aprovado pelo Senado. E, como rezam os ritos republicanos, sancionado por Jair Bolsonaro. Se o presidente vetar, o Congresso sempre pode suspender o veto. O problema é que tirar esse plano do papel depende, sim, do Executivo.
Dito isso, há um importante destaque nessa história: o Centrão inseriu um jabuti no PL. O corpo estranho legaliza a permanência de missões religiosas em territórios de indígenas isolados. Isso é proibido hoje. A emenda foi apresentada pelo deputado Wellington Roberto (PL-PB).
Falando em índios isolados, a Justiça precisou suspender a nomeação de um pastor evangélico para o cargo mais importante nessa seara, a Coordenação-Geral de Proteção a Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. A decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região foi publicada ontem, atendendo ao pedido do Ministério Público Federal. Mas ainda cabe recurso. O nomeado em questão – Ricardo Lopes Dias – fez carreira como “missionário” evangelizando indígenas, o que é proibido por lei. Além de brecar a nomeação, o desembargador federal Souza Prudente suspendeu a mudança no regimento interno da Funai que a permitiu.
GUERRA AOS POBRES
Já falamos aqui sobre como as operações policiais em favelas não estão dando trégua na pandemia. As últimas perversidade foram tiroteios que interromperam a distribuição de cestas básicas na Cidade de Deus e no Morro da Providência, no Rio, na quarta-feira. Em ambos os casos, quem estava distribuindo comida não era o Estado, diga-se, mas voluntários da própria comunidade. O ambulante Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, trabalhava em uma barraca quando foi morto na Providência. Já João Vicor da Rocha, de 18, tinha acabado de sair de casa. Dois dias antes, João Pedro Pinto, de 14 anos, foi baleado na casa de um primo.
AS CONTAS DO GOVERNO
O Congresso aprovou ontem um projeto de lei que permite ao governo descumprir a chamada regra de ouro em 2020. A regra proíbe o endividamento do Estado para pagar despesas fixas, como salários; sem ela, abre-se um crédito de R$ 343,6 bilhões para isso. Segundo o governo, a quebra é necessária para manter os pagamentos do Bolsa Família e outros programa sociais.
E, durante a pandemia, o teto cresceu. Cerca de R$ 516 bilhões já foram usados além do Teto dos Gastos. Em março, Paulo Guedes defendia que R$ 5 bi seriam suficientes para contornar a crise.
Será preciso muito mais. Na primeira quinzena de maio, os pedidos de seguro-desemprego aumentaram 76,2%, comparando com 2019, e 4,9% comparando com a segunda quinzena de abril: foram mais de 500 mil solicitações. Desde janeiro já foram 2,8 milhões de pedidos, quase 10% a mais que no ano passado.
NOVO TESTE
O Hospital Albert Einstein desenvolveu um novo teste que promete facilitar a testagem em massa da população. Ele identifica a presença do vírus, como o RT-PCR, mas é capaz de processar 1.536 amostras por vez, contra 96 do RT-PCR. A especificidade é de 100%, ou seja, sem casos de falso-positivo. O Einstein não definiu o preço, mas informou que vai ser também mais barato que o PCR (que hoje custa R$ 250).