Pandemia compromete Educação, amplia desigualdade e dificulta estudantes periféricos na Universidade

por Jaqueline Suarez, em RioOnWatch

A pandemia do novo coronavírus escancarou o cotidiano desigual vivido por boa parte dos brasileiros. A política de distanciamento e isolamento físico, principal método de contenção da doença, tem afetado drasticamente a renda das famílias mais pobres. Para muitos, continuar trabalhando, mesmo diante dos riscos, é uma questão de sobrevivência. Os jovens dessas famílias, alunos da rede pública de ensino em sua maioria, também são afetados. O fechamento das escolas ameaça os sonhos para o futuro e amplia o abismo que separa os estudantes periféricos de uma vaga na universidade.

Desde que o isolamento físico foi decretado no Estado do Rio, na segunda semana de março, Juliana Avelar, de 19 anos, está sem aulas. A estudante cursa o ensino médio técnico no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Além das aulas regulares, ela também faz pré-vestibular comunitário em Nova Iguaçu, no mesmo município onde mora. Sem computador e wifi em casa, manter uma rotina de estudos virtualmente é quase impossível: “Fica muito difícil estudar nesse momento sem um ambiente favorável e sem equipamento. Assim como eu, tem diversos alunos passando por essa dificuldade”, conta Juliana.

Na Região Metropolitana do Rio, 32% dos estudantes não têm computador em casa. Desse grupo, a maioria, 75%, são alunos na rede pública de ensino. O levantamento foi feito pela Casa Fluminense, a partir dos microdados do Enem 2018, preenchidos no ato de inscrição no exame. Os números são ainda piores entre os estudantes do Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) da Vila Operária, onde Juliana estuda. A cada dez alunos, sete não possuem computador em casa. Assim como Juliana, a maioria utiliza o celular para estudar.

A mais de 60km de Nova Iguaçu, no bairro Jardim Catarina, em São Gonçalo, a situação é parecida. Sem computador em casa, o celular é o único meio pelo qual Lorrayne Muniz, de 17 anos, acessa o conteúdo enviado pela escola. As atividades no Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras estão sendo realizadas à distância, desde o início de abril: “A gente não está tendo videoaula ou videoconferência. O que tem é um material que eles colocam na plataforma e esperam a gente responder no dia que eles [professores] determinam. Eles passam a correção, mandam um comentário do exercício e é isso. Nada que seja muito parecido com aulas”, avalia Lorrayne.

Para a estudante, o ensino virtual nesse momento não é a solução. Lorrayne conta que estudando em casa é difícil estabelecer uma rotina isolada dos afazeres domésticos ou alheia às preocupações da família. “Por mais que a gente esteja em casa, tem muitas outras coisas para fazer, tem muita coisa acontecendo e a nossa mente fica cheia. Para mim, realizar todas as tarefas estava sendo bem complicado, então eu tive que escolher entre o meu ano letivo e o pré-vestibular. Eu acabei, entre aspas, abrindo mão do pré-vestibular”, explica a estudante.

A preocupação com as demandas financeiras da família, a necessidade de ajudar nas tarefas de casa ou no cuidado de algum familiar, a dificuldade de acesso à internet e ao computador são algumas das dimensões de exclusão dos estudantes periféricos. Essas questões sempre existiram, mas no período de pandemia elas se intensificaram, como avalia Yasmin Monteiro, coordenadora da articulação Juventude Popular nas Universidades, da Casa Fluminense: “São alunos que estão observando o avanço da Covid-19 de forma extremamente devastadora no bairro em que eles moram. Eles mesmos estão ficando doentes, a família está ficando doente e a notícia de óbito no entorno desses alunos é muito maior do que no entorno de um aluno que mora em bairro de classe média, por exemplo”.

Esse mesmo grupo, segundo Yasmin, também experimenta os piores impactos econômicos do isolamento social: “se antes da pandemia, entre os alunos de escola pública, o número que se dedicava a atividades profissionais já era muito grande, hoje, apesar do isolamento, o número de alunos que estão tendo que se desdobrar, junto com a família, para garantir a comida e a dispensa cheia é muito maior”.

“Dinheiro sempre foi preocupação por aqui”, conta Renam Xavier, de 19 anos, morador da comunidade do Cesarão, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio. A pandemia, no entanto, agravou ainda mais a situação. Além de perder o trabalho informal de garçom, o cenário para quem busca um emprego parece ainda pior. Ele também vê com preocupação a situação da mãe, que trabalha como faxineira e teve a renda duramente afetada. O auxílio emergencial tem sido fundamental para pagar as contas e garantir a alimentação.

Renam concluiu o ensino médio no ano passado, mas segue tentando uma vaga em uma universidade pública. O jovem, que pretende cursar História, tem estudado por conta própria por uma plataforma virtual. O curso é pago, mas foi disponibilizado gratuitamente à Renam por meio do pré-vestibular comunitário que ele faz parte. Já as atividades próprias do preparatório, que têm ocorrido pelo WhatsApp, ele não têm conseguido acompanhar por conta de problemas no celular.

Conciliar trabalho e estudo é uma realidade que Juliana Avelar, de 19 anos, já conhece desde muito cedo. Com a chegada da pandemia, o movimento na feira livre onde a jovem trabalha diminuiu drasticamente. Ganhando menos, ela precisou aumentar os dias de trabalho, passando de um para quatro por semana. Além de ser a responsável financeira da casa, ela também precisa fazer as atividades domésticas e cuidar da mãe, que tem a saúde psicológica comprometida. O avanço da Covid-19 no estado é motivo de preocupação: “Tenho medo sim, por questões financeiras, de não sabemos quando isso vai acabar e se vou conseguir manter as contas em dia. E se eu ficar doente, o que será da minha casa? Sou eu que faço tudo. O que será?”, questiona.

Já na casa de Lorrayne Muniz, do Jardim Catarina, a maior preocupação é o aluguel. Os pais da estudante são autônomos—a mãe manicure e o pai mecânico—e tiveram uma queda significativa na renda. São eles os responsáveis financeiros da casa, onde vivem seis pessoas. Mesmo com o decreto de isolamento, eles precisaram continuar trabalhando. O bairro onde vivem é o recordista em casos de Covid-19 no município de São Gonçalo até então. Segundo dados oficiais da Secretaria Municipal de Saúde, são ao menos 67 casos confirmados, em 29 de maio. Considerando a subnotificação, esse número pode ser até 15 vezes maior.

Além do avanço da doença, a violência está voltando a ser uma fonte de preocupação. As operações policiais no Jardim Catarina eram frequentes, mas com o início da pandemia elas diminuíram, segundo Lorrayne. No entanto, na última semana recomeçaram: “Ontem [20/05] teve operação mais para dentro do [Jardim] Catarina e hoje [21/05], aqui mais perto da minha casa, teve ação com helicóptero. Nesses dias seguintes à morte do João [Pedro] está tendo operação”. João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, citado por Lorrayne, foi executado dentro de casa no Complexo do Salgueiro, comunidade próxima ao Jardim Catarina, no último dia 18.

“Sem dúvida o isolamento agravou as desigualdades que já existiam entre alunos da escola pública e da escola particular”, argumenta Yasmin Monteiro, coordenadora do projeto Juventude Popular nas Universidades, articulação que reúne oito cursos comunitários de pré-vestibular na Região Metropolitana do Rio. “A gente falou da dimensão de saúde, da dimensão econômica e a gente está adicionando uma terceira dimensão, segurança pública, que impacta diretamente na saúde mental desses alunos. Impacta na capacidade desses alunos de se dedicarem plenamente a uma atividade que exige concentração, calma e atenção”, explica Yasmim.

Adiamento do Enem

Nesse contexto, o adiamento do Enem é visto como uma pequena vitória. O exame, que ocorreria em novembro, foi suspenso pelo Ministério da Educação (MEC) no último dia 20, após forte pressão popular. No entanto, os responsáveis pela prova falam em um adiamento de 30 a 60 dias, o que, na visão de Yasmin, seria “completamente insuficiente”. Com as aulas presenciais suspensas há mais de dois meses e sem previsão de retorno, não há bases para estabelecer uma nova data: “hoje, a maior parte das escolas e dos pré-vestibulares comunitários não têm metodologia, nem professores, nem ferramentas ou experiência suficiente para a gente considerar que, de fato, o que a gente está fazendo é educação à distância. Não é. É um tipo de tapa buraco”, defende Yasmin.

Doutoranda em antropologia pela UFF, Yasmin lembra ainda que as universidades públicas estão, em sua maioria, com o calendário suspenso. Isso significa que estudantes aprovados no último Enem de 2019 ainda não iniciaram a universidade. Se até o final do ano a situação não for normalizada, serão duas turmas de calouros na fila de espera. Nesse cenário, ela não vê motivos para que o Enem seja realizado às pressas ainda esse ano: “a gente precisa que esse calendário seja suspenso enquanto a gente não conseguir retomar as atividades presenciais”.

Sem o funcionamento regular de escolas e pré-vestibulares comunitários a equidade do exame fica comprometida e a desvantagem na linha de partida dos estudantes da rede pública se amplia. Yasmin lembra que a educação e, especialmente o Enem é um instrumento de justiça social e, por isso, é tão fundamental que se garanta chances minimamente iguais entre todos os estudantes que vão realizar o exame: “apesar de todos os abismos sociais, o acesso ao ensino superior ele está muito ligado a uma possibilidade maior de mobilidade social para esses jovens de origem periférica que vêm de escolas públicas”.

Jaqueline Suarez é jornalista e estudante de mestrado na UFF. É também comunicadora popular e vídeo-documentarista independente. Vive na comunidade do Fallet, em Santa Teresa, Zona Central do Rio.

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