Na pandemia, governo acelera trem de minério sobre povos das regiões mineradas. Entrevista especial com Tádzio Coelho

Pesquisador destaca que a atividade foi considerada como essencial e não só seguem com a atividade a pleno como também agilizam pesquisas e projetos que estavam parados

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Quando, na reunião ministerial de 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que era preciso aproveitar que a atenção da mídia estava voltada para a pandemia para fazer ‘passar uma boiada’ – fazendo com que projetos polêmicos relacionados a regulações ambientais passem sem ser percebidos – não estava se referindo apenas ao agronegócio. “Além da boiada, o governo Bolsonaro espera passar um trem de minério por cima dos povos das regiões mineradas”, observa o professor Tádzio Coelho, que pesquisa os impactos da atividade. Isso porque, em plena pandemia de covid-19, o governo baixou uma portaria determinando que a atividade de mineração passe a ser considerada essencial. “A essencialidade da manutenção da atividade mineradora se faz em detrimento de vidas”, completa o professor, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Tádzio explica que o argumento para a portaria é assegurar a extração de minerais para a indústria farmacêutica. “Os minerais utilizados na produção de medicamentos representam uma parte ínfima do total de minerais extraídos no país e teriam sua extração mantida. No entanto, a maior parte da mineração no Brasil (ferro, cobre, níquel, ouro etc.) pode e deve ser paralisada para combate à covid-19”, explica. O pesquisador ainda destaca que, além de poder gerar aglomerações, muitos dos trabalhadores da mineração já têm problemas respiratórios em decorrência da atividade. “Faz parte dos direitos dos trabalhadores do setor e das populações dessas regiões participar do isolamento social”, destaca.

Enquanto seguem, e até intensificam as atividades, as empresas ainda usam da imprensa para propagandear sua benevolência doando equipamentos e materiais para hospitais que estão no combate à covid-19. “As grandes empresas do setor, principalmente a Vale, têm aproveitado a pandemia para tentar melhorar sua imagem pública doando equipamentos médicos e de proteção. Ao mesmo tempo, a Vale segue colocando em risco a saúde de seus trabalhadores e negociando pesado com os atingidos pelos rompimentos de barragens e evacuados pelo risco de rompimento”, revela.

Na entrevista a seguir, o professor ainda analisa o projeto da Mina Guaíba, que visa instalar uma mina de carvão mineral na região metropolitana de Porto Alegre, ao lado do estuário do Rio Guaíba. Para ele, essa portaria que considera mineração atividade essencial e toda a crise econômica gerada pela pandemia podem fazer com que projetos como esse sejam implementados mais rapidamente. Na sua visão, um risco para a população da região metropolitana e todo ecossistema. É, no discurso da crise, o fortalecimento da minério-dependência. “A minério-dependência vai além da dimensão econômica, e significa uma situação de hegemonia política das mineradoras nas regiões mineradas, que coage alternativas econômicas, constrange as opções de vida das pessoas, centraliza os interesses das grandes mineradoras no processo deliberativo e reproduz o próprio ciclo de dependência”, explica.

Tádzio Peters Coelho é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa – UFV, pesquisador do grupo de pesquisa e extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade – PoEMAS, membro do Grupo de Trabalho Fronteras, Regionalización y Globalización en América do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais – CLACSO e do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração – CNDTM. Possui doutorado e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialização em Engenharia de Petróleo e Gás pela Universidade Estácio de Sá. Entre os livros publicados destacamos Projeto Grande Carajás: trinta anos de desenvolvimento frustrado (Marabá: Editorial Iguana, 2015) e, escrito em parceria com Charles TrocateQuando vier o silêncio: o problema mineral brasileiro (São Paulo: Expressão Popular, 2020).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em meio à pandemia de covid-19, a mineração foi classificada como atividade essencial. O que está por trás dessa mudança e quais as consequências?

Tádzio Coelho – A mineração foi considerada como atividade essencial por Portaria do Ministério de Minas e Energia, de 28 de março de 2020, o que foi reafirmado pelo governo federal por meio do Decreto 10.329/2020. Define ainda que a “pesquisa e lavra de recursos minerais, bem como atividades correlatas; beneficiamento e processamento de bens minerais; transformação mineral” são atividades essenciais. Sendo assim, a mineração está autorizada a manter suas operações.

À primeira vista, pode se pensar que a mineração é base de qualquer cadeia produtiva de bens, o que é uma tautologia. Essa afirmação superficial esconde o fato de que é possível paralisar partes específicas do setor, tal como a pesquisa, os licenciamentos de novas áreas e a lavra em diversas minas. Os minerais utilizados na produção de medicamentos representam uma parte ínfima do total de minerais extraídos no país e teriam sua extração mantida. No entanto, a maior parte da mineração no Brasil (ferro, cobre, níquel, ouro etc.) pode e deve ser paralisada para combate à covid-19. Faz parte dos direitos dos trabalhadores do setor e das populações dessas regiões participar do isolamento social.

Realidade dos municípios com mineração

Sobre a situação dos municípios minerados é conhecida a alta incidência de doenças respiratórias devido à emissão de poluentes e poeira nas operações de mina (disposição de estéril, explosões para desmonte de rocha, tráfego de caminhões etc.), o que é ainda pior no caso de minas subterrâneas com doenças do trabalho causadas pelo pó da sílica em suspensão, causando as pneumoconioses, particularmente a silicose. Um dos fatores de risco para o agravamento da covid-19 é a preexistência de doenças respiratórias. Por outro lado, em geral, trata-se de municípios com infraestrutura de saúde deficitária.

De acordo com dados do Datasus, Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, terceiro município com maior valor de operações de mineração em 2020, simplesmente não possui respiradores, e não há cidades nas proximidades que poderiam prover o tratamento devido. Os municípios minerados contam também com parcela relevante de população flutuante, ou seja, pessoas que trabalham nesses municípios e vivem em outros municípios, o que aumenta a disseminação da doença nacionalmente graças à maior circulação.

IHU On-Line – Como tem sido a atividade de mineração mesmo nesse período de pandemia?

Tádzio Coelho – No dia 10 de junho, a tonelada do minério com teor de 62% de ferro, no porto chinês de Qingdao, chegou a US$ 105,67, maior preço nominal desde julho de 2019. Portanto, no caso do minério de ferro, o impacto menor da pandemia na economia chinesa em comparação ao resto do mundo, os investimentos previstos pelo Estado chinês, a diminuição dos estoques das siderúrgicas chinesas e o temor de desabastecimento causado pela emergência do Brasil enquanto epicentro da pandemia, o que poderia afetar a produção da Vale, elevaram os preços, o que ocorreu também nos contratos futuros de minério de ferro na Bolsa de Mercadorias de Dalian. Entretanto, em médio prazo, esse cenário de alta nos preços dificilmente se manterá tendo em vista a crise da economia global, mesmo que a China se mantenha em uma situação mais favorável do que as outras grandes economias.

Na mesma semana do aumento dos preços do minério de ferro, o Ministério Público do Trabalho – MPT impetrou mandado de segurança pela interdição parcial das unidades integrantes do complexo de Itabira, em específico nas minas de ConceiçãoCauê e Periquito, da Vale. A causa do mandado de segurança foi a “confirmação, até o dia 21 de maio, da existência de 81 (oitenta e um) trabalhadores afetados pela pandemia global, o que teria elevado o total de infectados no Município de Itabira em aproximadamente 500%”. Em 25 de maio, a Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais – SRT/MG realizou inspeção nessas unidades da Vale referidas, e concluíram “pela necessidade de interdição parcial da empresa, decorrente do risco grave e iminente à saúde dos trabalhadores”. O MPT também começa a investigar casos de covid-19 em Carajás, por meio de portaria da Procuradoria Geral do Trabalho do Pará.

As empresas

As grandes empresas do setor, principalmente a Vale, têm aproveitado a pandemia para tentar melhorar sua imagem pública doando equipamentos médicos e de proteção. Ao mesmo tempo, a Vale segue colocando em risco a saúde de seus trabalhadores e negociando pesado com os atingidos pelos rompimentos de barragens e evacuados pelo risco de rompimento.

Outra grande mineradora, a Anglo American se mantém omissa em relação àquelas comunidades que querem o reassentamento, pois vivem a jusante de barragem de rejeitos. O medo causado pelo risco de rompimento impede que essas pessoas exerçam o direito de realizarem o isolamento social em suas casas. Essas empresas estão doando máscaras sanitárias ao mesmo tempo em que se potencializam a disseminação e as mortes pela doença. Portanto, essas empresas falsamente humanitárias entoam um discurso contraditório à postura adotada na relação com os trabalhadores e as comunidades.

No Brasil, diversas organizações se posicionaram contra a manutenção das atividades de mineração: o Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM, o Comitê em Defesa dos Territórios e a Associação dos Docentes da Ufop – Adufop. Organizações internacionais e brasileiras publicaram o relatório “Vozes da Terra – Como a indústria da mineração global está se beneficiando da pandemia de COVID-19”.

IHU On-Line – O que essa mudança revela sobre o governo Bolsonaro, a atividade de mineração e a pandemia de covid-19?

Tádzio Coelho – Sua preocupação está direcionada a se manter no posto de chefe do Executivo a qualquer custo. Por isso, busca manter a economia como se a morte de milhares não fosse uma realidade no país e que pode piorar. Fica evidente que Bolsonaro não se preocupa com as vidas perdidas.

Com a saída de Sérgio Moro, abriu-se uma fissura no bloco no poder e mais uma frente de conflito do governo, juntando-se às já existentes com outras instituições, como o Supremo Tribunal Federal – STF. Mesmo que tenha conseguido mobilizar grande parte das Forças Armadas e incentivado a expansão da extrema direita na população, diversos grupos e frações de classe se mobilizam contra seu governo, mesmo que de maneira fragmentada. Nesse cenário, um dos fatores para se manter na presidência é a necessidade de chegar ao fim de 2020 e declarar que o PIB não diminuiu tanto assim.

Além disso, tenta se descolar da crise econômica gerada pela pandemia e pela própria inação do governo federal, que nada faz em termos de políticas econômicas que subsidiem os setores afetados pela crise, lembrando que o auxílio emergencial foi uma iniciativa do Legislativo. A situação econômica e sanitária fica ainda pior com as medidas e declarações do presidente. Se a pandemia era inevitável, as mortes vêm sendo potencializadas pelo próprio governo federal. Caso não consiga desvencilhar sua imagem das crises sanitária e econômica, no limite, o autogolpe é uma saída, o que pode ocorrer antes pelas investigações da Polícia Federal e da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI das Fake News, que incriminam o presidente e sua família. Em suma, o regime democrático está ameaçado no Brasil, assim como a vida das pessoas está ameaçada pela forma como o governo federal trata a covid-19.

Setor mineral

Em relação ao setor mineral, o governo Bolsonaro repetidamente atua a favor desses interesses, passando por cima das regulações ambientais e dos direitos dos trabalhadores e das comunidades. Esta atuação já ocorria a favor dos mineradores ilegais, que invadem Terras Indígenas e agora, na pandemia, transmitem a covid-19 para essas populações. Com o Decreto 10.329/2020, o governo atende aos interesses do setor como um todo, principalmente das grandes mineradoras. A mineração é uma das principais plataformas econômicas do governo Bolsonaro.

IHU On-Line – Na reunião ministerial de 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que era preciso aproveitar a pandemia para ‘passar uma boiada’ no que diz respeito à flexibilização das questões ambientais. Como analisa essa fala em perspectiva à liberação de mineração como atividade essencial?

Tádzio Coelho – Além da boiada, o governo Bolsonaro espera passar um trem de minério por cima dos povos das regiões mineradas. A essencialidade da manutenção da atividade mineradora se faz em detrimento de vidas.

IHU On-Line – Como podemos compreender o papel social, econômico e ambiental da extração mineral ao longo do processo de desenvolvimento econômico no Brasil?

Tádzio Coelho – Essa atividade que acorda os minérios de seu sono milenar é um dos pilares da história econômica do Brasil. Em algumas regiões, a mineração teve um papel histórico na formação do povo brasileiro, e particularmente do povo mineiro, tornando-se mais que uma atividade econômica, condicionando costumes e normas sociais. O medo de que a descoberta de ouro motivasse a intervenção da metrópole colonial, a migração, o trabalho nas minas e lavras garimpeiras, os desabamentos nos túneis subterrâneos, o contrabando de minerais, a Derrama, a morte no coração da montanha, tudo isso influenciou diretamente a sociedade brasileira. Esta é a dimensão histórica da mineração na formação do país.

A dimensão econômica da mineração é qualificada por “lixo ocidental”, um país que ocupou, e continua ocupando, a função no comércio internacional de exportador de bens minerais e agrícolas, que serviram de base para o desenvolvimento industrial dos países centrais, restando aos países periféricos o lixo-rejeito. Na trajetória de longo prazo, a mineração colaborou para a formação de assimetrias econômicas e concentração de renda nos níveis do Brasil de hoje. Países exportadores de matérias-primas tendem a apresentar sociedades mais desiguais. Um estudo (Hartmann et. al, 2016) [1] liga o conjunto de bens produzidos por um país à desigualdade de renda, sendo que os países que exportam bens tecnologicamente menos complexos são em geral os mais desiguais.

Por outro lado, a mineração é o lugar de grandes tragédias. Os mortos sepultados pelo deslizamento e pela silicose na antiga Mina de Morro Velho, os mortos da Vale, os mortos da Samarco e os mortos de todas as minas entoam essa triste história. O silêncio de Minas Gerais frente à atividade mineradora é efeito de um trauma histórico, do ouro e da tragédia. É preciso romper esse silêncio.

IHU On-Line – O que o projeto de construção e operação da Mina Guaíba e a intenção de criação de um Polo Carboquímico no Rio Grande do Sul revelam sobre as lógicas do desenvolvimento econômico e social baseado num desenvolvimentismo de megaempreendimentos, ainda muito presente atualmente no país?

Tádzio Coelho – Caracterizaria de outra forma essa trajetória econômica. O desenvolvimentismo é a corrente teórica que defende a industrialização como carro-chefe para incrementar a produtividade da economia, e principalmente mediante a ação estatal. Esse projeto foi deixado para trás há muitos anos. Nem mesmo nos anos de governo petista podemos falar em desenvolvimentismo, tendo em vista a progressiva desindustrialização da economia brasileira, ocorrida pelo menos nos últimos quarenta anos.

Dito isso, a via econômica baseada em megaempreendimentos extrativistas busca aproveitar supostas vantagens comparativas em setores primário-exportadores. No entanto, o que não é dito é que estas vantagens para a competição internacional no mercado de commodities têm como base a intensificação da exploração do ser humano, dos territórios e dos bens naturais. Não se trata de vantagem gerada por investimentos em ciência e tecnologia, mas de vantagens geradas pela supressão de direitos e pressão sobre modos de vida.

Envereda-se a economia dessas regiões, e do próprio país em um caminho de diminuição do conteúdo tecnológico dos bens produzidos, aumento da vulnerabilidade do país às pressões externas e às flutuações do mercado internacional e incremento da dependência pela exportação de produtos básicos. É um caminho que quanto mais tempo trilhado, menos saídas ele apresenta.

IHU On-Line – Passada a pandemia, o Brasil deve mergulhar numa crise econômica profunda. Corre-se o risco de, sob a emergência de superação da crise, haver uma aceleração na liberação de empreendimentos como o da Mina Guaíba?

Tádzio Coelho – Uma resolução da Agência Nacional de Mineração – ANM, em maio, alterou o regime de requerimentos de pesquisa mineral e determinou que eles sejam aprovados automaticamente, sem análise ou avaliação de órgão do governo federal ou outra instituição.

Ainda, no dia 10 de junho, o governo federal criou um comitê interministerial, coordenado pelo MME e que conta com a participação do Ministério da Agricultura e pelo Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, que tem como objetivo acelerar o licenciamento de projetos minerários considerados por esse comitê prioritários. O foco se volta para os minerais preciosos e estratégicos, como o ouro, o urânio, as terras raras, fertilizantes, dentre outras.

Outras iniciativas que alteram a regulação do setor reforçam essa perspectiva, que não é nova, mas ganha nova roupagem sendo justificada pelo governo federal e setor mineral como combate à crise econômica.

IHU On-Line – É possível romper com esse desenvolvimentismo de megaempreendimentos?

Tádzio Coelho – Certamente. É preciso, primeiramente, se dedicar à formulação de propostas. Este exercício foi sendo deixado de lado pelo campo progressista em nome dos diagnósticos da realidade, que tem importância, mas que isolados não encadeiam iniciativas e mobilizações. Atualmente, diversas organizações não governamentais, redes, movimentos sociais, sindicatos e grupos de pesquisa têm se dedicado ao constante exercício de formulação de propostas alternativas.

Gostaria de citar a iniciativa do Projeto Brasil Popular, onde se constituiu um grupo de trabalho sobre mineração com o objetivo de criar propostas. Tem sido discutido com diversas organizações, que apresentam uma visão crítica acerca da atividade mineradora, os detalhes de um Novo Modelo de Mineração pautado pela soberania popular, participação pública, bens comuns e igualdade.

A partir destes paradigmas, são elaboradas proposições concretas para a organização da atividade mineradora. Rapidamente, cito alterações no sistema de monitoramento e fiscalização da mineração, redistribuição da renda mineira, mudança no sistema tributário do setor, dentre outras. Esta proposta se contrapõe ao modelo atual de mineração que prioriza os interesses das grandes mineradoras e de fundos especulativos de capitais internacionais.

IHU On-Line – Como está o processo de instalação da Mina Guaíba?

Tádzio Coelho – O licenciamento ambiental da Mina Guaíba foi suspenso, em fevereiro, por liminar da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, que tem como objeto uma Ação Civil Pública impetrada. A razão é a exclusão no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental – EIA/Rima da comunidade indígena Aldeia TeKoá Guajayvi. No entanto, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam e a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura – Sema seguem se dedicando a encaminhar a aprovação do projeto de mineração.

IHU On-Line – Que riscos a Mina Guaíba representa?

Tádzio Coelho – Consta no EIA/Rima que a Mina Guaíba contará com 263 hectares de pilhas de estéril que atingirão 30 metros de altura. O estéril é o material separado do minério que é descartado diretamente da operação de lavra, sem passar pelo processo de beneficiamento, e as pilhas de estéril são uma das formas de depositar este material. Pouco tem se debatido sobre os problemas gerados por essas estruturas no Brasil. Um dano potencial das pilhas de estéril é o carreamento do material particulado em direção a rios, igarapés e fontes de água, sendo que até mesmo lençóis freáticos podem ser poluídos.

Em Godofredo Viana (MA), existem pilhas de estéril próximas às casas da comunidade de Aurizona, resultantes da extração de ouro realizada pela mineradora canadense Equinox Gold. Parte desse material, mesmo sendo depositado dentro da área de mina, é levada pelo vento à comunidade, o que pode estar causando doenças respiratórias, oftalmológicas e dermatológicas. Segundo funcionários do posto de saúde do município, são comuns nos frequentadores do posto problemas respiratórios, tosse, problemas intestinais, vômito e dermatite alérgica.

Ainda como efeito da disposição de pilhas de estéril na mina da empresa, houve deslizamento de material em novembro de 2018 atingindo uma região de mangues e igarapés e a estrada de acesso a diversas comunidades. Até hoje não houve qualquer explicação acerca das causas do deslizamento e se houve algum tipo de contaminação dos igarapés.

Em 2014, estive em Moçambique, no município de Moatize, onde a disposição de material estéril, em pilhas, é feita ao lado das residências e ocasionava diversos problemas devido à circulação aérea do material, principalmente em momentos de vento forte na região. As pilhas de estéril depositadas ao lado do bairro também alteravam o curso d’água e represavam a água durante as chuvas. Em setembro de 2014, duas crianças morreram afogadas em uma vala aberta pela Vale S.A. e que se encontrava repleta de água.

IHU On-Line – Por que ainda se aposta em minas de carvão?

Tádzio Coelho – Como se sabe, o carvão mineral foi o combustível da Revolução Industrial. Até meados do século XX, o carvão mineral foi a principal matriz energética das economias centrais. A partir de 1950, a utilização de mineradores contínuos possibilitou o aumento do ritmo de extração do carvão mineral, sem a utilização de explosivos (CURI, 2014, p. 14) [2]. Porém, devido aos graves problemas ambientais e ao advento de combustíveis mais eficientes, a extração de carvão foi sendo gradualmente deixada de lado pelos países com a economia centrada no setor de serviços. A Inglaterra, por exemplo, fechou sua última mina de carvão em 2015.

Por outro lado, o carvão metalúrgico e o carvão térmico são bastante utilizados por países asiáticos, com extensas plantas industriais, respectivamente, na produção de aço e ferro metálico em altos fornos siderúrgicos e em usinas termelétricas. Como efeito dessa utilização, o consumo mundial de carvão aumentou em média 5,2% por ano entre 2002 e 2011 (BAIN, 2013) [3]. Entre 2013 e 2016, o consumo mundial de carvão caiu, mas subiu novamente em 2017 e 2018. A China responde por quase metade do consumo mundial de carvão (PAIXÃO, 2017) [4]. Além de ser um grande importador, a China possui vastas reservas minerais de carvão.

Portanto, o processo de industrialização chinês é a principal variável que explica a utilização em larga escala do carvão mineral na economia global. Este consumo tem sofrido pressões por parte da comunidade internacional devido à emissão de gases estufa e ao câmbio climático, mas ainda é a base energética da economia chinesa.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Tádzio Coelho – Gostaria de destacar uma característica dos municípios minerados, que é a Minério-Dependência. As mineradoras buscam ressignificar esta categoria, que conseguiu em algum grau adentrar o debate público nos últimos anos, tentando traduzir o termo como simples e automática dependência da população pela atividade mineradora, como se dependessem da mineração para obter o desenvolvimento econômico. Segundo esta interpretação, a postura a ser adotada pela população das regiões mineradas, então, seria a de reafirmar a atividade, pois se trata do único caminho viável para o desenvolvimento. Entretanto, a categoria utilizada em trabalhos anteriores por grupos de pesquisa é bastante diferente dessa compreensão.

Um primeiro ponto é que a minério-dependência vai além da dimensão econômica, e significa uma situação de hegemonia política das mineradoras nas regiões mineradas, que coage alternativas econômicas, constrange as opções de vida das pessoas, centraliza os interesses das grandes mineradoras no processo deliberativo e reproduz o próprio ciclo de dependência.

Um segundo ponto é que as condições dessa situação pressionam setores econômicos populares, como a agricultura familiar e a pesca, gerando danos para esses setores – por meio do inchaço populacional, alteração da oferta e da dinâmica hídrica, ocupação de territórios, poluição aérea, sonora e de águas superficiais e subterrâneas – e sabotam o nascimento de alternativas econômicas. Dessa forma, fragiliza-se a mobilização de questionamentos e resistências, pois as pessoas se veem crescentemente sem opções para o trabalho e para viver.

Um terceiro ponto é que esta é uma situação complexa, tal como exposto nos pontos anteriores, que exige de nós, pesquisadores, organizações e militantes, uma postura apta a compreender a complexidade dessa realidade. Simplesmente negar a situação de dependência, tal como exposta aqui, é rejeitar o depoimento de milhares de moradores dessas regiões, negando, assim, a própria realidade social. Imaginar cenários sem considerar o depoimento dessas pessoas como algo central é sujeitá-las, mais uma vez, à subordinação.

Referências

[1] HARTMANN, Dominik. GUEVARA, Miguel. JARA-FIGUQEROA, Cristian. ARISTARAN, Manuel. HIDALGO, Cesar. Linking Economic Complexity, Institutions, and Income Inequality. World Development. Vol. 93, pp. 75–93, 2017. Disponível aqui.

[2] CURI, Adilson. Minas a Céu Aberto: planejamento de lavra. Oficina de Textos: São Paulo, 2014.

[3] BAIN, Caroline. Guide to Commodities. The Economist. 2013. Ebook.

[4] PAIXÃO, Michel. O crescimento econômico da China e o consumo de carvão para geração de energia. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Ciências, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2017. Disponível aqui.

Foto: Sebastian Betancourt CC

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