Morre o grande educador Higino Tenório, líder do povo Tuyuka, vítima do novo coronavírus

Por: Elaíze Farias, no Amazônia Real

Manaus (AM) – Educador, é o que bastaria para falar de Higino Pimentel Tenório, liderança indígena do povo Tuyuka, da região do Alto Rio Negro, no Amazonas. Professor, mestre, conhecedor de vários saberes da Amazônia e referência para pesquisadores, Higino Tuyuka foi mais uma vítima da Covid-19. Ele morreu, aos 65 anos, às 23h35 de quinta-feira (18), depois de 22 dias internado na ala indígena do Hospital Nilton Lins, em Manaus.

O corpo de Higino Tenório Tuyuka deve ser enviado para o município de São Gabriel da Cachoeira neste domingo (21) e enterrado no Cemitério Parque da Saudade, na sede do município. Indígenas mortos pela Covid-19 têm sido sepultados longe de seus povos, sem os rituais tradicionais. Procurado pela reportagem, o coordenador do Distrito Especial Sanitário Indígena (Dsei) Rio Negro, Franklin Quirino, não informou sobre os procedimentos do traslado. A Amazônia Real apurou que a organização ambiental Greenpeace se prontificou a levar o corpo de Higino para São Gabriel da Cachoeira em sua aeronave. A informação foi confirmada à reportagem pela assessoria de imprensa da organização.

O Dsei Rio Negro, segundo boletim de sexta-feira (19), registrou 248 casos de Covid-19 e 9 óbitos. Mas o número de casos da doença é muito maior, pois a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, ao qual o Dsei é vinculado, não contabiliza indígenas que moram fora das aldeias. O Dsei Rio Negro abrange os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.

A Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, onde 90% da população é indígena, confirmou 2.538 casos da doença e 43 óbitos, até a data de sexta-feira (19). 

Em 19 de maio, Higino foi internado no Hospital da Guarnição em São Gabriel da Cachoeira, duas semanas após sentir os primeiros sintomas da Covid-19, ainda em sua comunidade, Curicuriari, conforme relata a antropóloga Lorena França, sua amiga. Ele foi transferido para Manaus no dia 29 de maio e internado no Hospital Nilton Lins, segundo informações da Secretaria Estadual de Comunicação (Secom), do governo do Amazonas.

“No dia 10 de junho fez a traqueostomia porque já estava há mais de 20 dias entubado. Na sequência, além dos sintomas de pulmão, começou a ter infecção nos rins”, disse Lorena, à Amazônia Real.

Em nota oficial, o governo do Amazonas informou que Higino “não apresentava registros de comorbidades, teve o quadro agravado por uma insuficiência respiratória aguda, que evoluiu para pneumonia viral aguda, com hipoxemia (baixo nível de oxigênio no sangue)”. A morte de Higino foi decorrente de complicações causadas pela Covid-19, disse a nota.

Fundador da pioneira Escola Tuyuka

Higino Tenório Pimentel nasceu na aldeia São Pedro, no Alto Rio Tiquié, mas nos últimos anos morava na comunidade Curicuriari, à margem do rio Negro. Pioneiro na educação indígena, ele ajudou a fundar, na década de 1990, uma instituição de ensino diferenciada – a Escola Utapinopona-Tuyuka – que implantou importantes mudanças no magistério: priorizou os conhecimentos indígenas, aproximou os jovens dos mais velhos, valorizou a língua nativa e rompeu com o ensino religioso mantido por décadas pelas missões salesianas. Essa escola serviu de modelo para várias outras iniciativas no País.

“Travamos junto muitos debates de forma intensa e progressiva no processo de concretização da educação escolar indígena do Rio Negro a partir de nossas experiências. Ele, a partir da Escola Tuyuka, e eu, a partir da Escola Baniwa. Enfrentamos resistências e superamos desafios”, descreveu, em sua rede social, o líder, conhecedor e escritor André Baniwa, também do Alto Rio Negro.

Sem formação escolar convencional ocidental, Higino destacou-se pelo diálogo intercultural, por sua generosidade em ajudar pesquisadores que lhe procuravam e pela colaboração com vários estudos da ciência, contribuindo para mudanças de visões de mundo do saber ocidental.

“Mestre das relações com o mundo exterior, trouxe os mais diversos pesquisadores – antropólogos, matemáticos, linguistas, educadores, arqueólogos, biólogos – para construir um modelo inovador de educação indígena no Alto Rio Tiquié e depois se tornou consultor especialista do assunto”, registrou, em nota, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

Higino Tenório era professor da rede municipal de ensino em São Gabriel da Cachoeira e aguardava desde 2019 pela aposentadoria. No fim de 2018, sofreu um acidente de barco que causou deslocamento da retina de um dos olhos.

Com dificuldade de receber atenção médica por parte do Dsei Rio Negro, ele contou com ajuda de amigos para se tratar e passar por uma cirurgia, em São Paulo. Para se recuperar, morou um período na casa da antropóloga Lorena França e do marido dela, Gilton Mendes, também antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus. Lorena contou à Amazônia Real que conheceu Higino em 2014, quando ela iniciou pesquisas sobre o sistema agrícola do Rio Negro.

“Ele já era famoso por seus grandes conhecimentos tradicionais e sua capacidade de interlocução com o mundo acadêmico e discussões sobre educação diferenciada. Ele era interlocutor da Foirn, esteve em vários debates importantes para mostrar como esse conjunto de conhecimento deveria ser, de fato, levado a sério e perpetuado a gerações futuras.”

A antropóloga afirma que Higino sempre valorizou as incursões no Alto Rio Negro e mostrava os conhecimentos que ele dominava da região do Tiquié e dos Tuyuka. “O Higino queria voltar a enxergar bem para poder voltar a ler, prática que tanto aguçava a mente inquieta dele. Ele sempre apoiou ideias inovadoras, que valorizassem a cosmologia em formatos diferenciados. A gente pensava em escrever um livro do Higino, da mesma forma como Ailton Krenak e Davi Yanomami tiveram a chance de publicar. O Higino era um pensador dessa envergadura, que merecia ter as suas palavras disseminadas num livro. É um dia muito difícil ter que aceitar essa perda”, lamentou.

Higino também contribuiu e incentivou iniciativas pioneiras de parentes do Alto Rio Negro, como a criação do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus, criada pelo antropólogo João Paulo Barreto, do povo Tukano, que postou em sua página na rede social: “Hoje, o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi perde um parceiro de sua trajetória. O Higino Tenório Tuyuca, professor, liderança indígena, kumü, defensor de nossa cultura parte deixando-nos muitas lições de vida. As pessoas são insubstituíveis em sua existência, e quando são especiais, além da falta que fazem àqueles que as amam, deixam o mundo mais pobre”.

No dia 31 de setembro, Higino foi um dos convidados da Amazônia Real para o lançamento do curta-metragem “Kumuã: os especialistas de cura do Alto Rio Negro”, no centro cultural Casa das Artes, em Manaus. Ele participou como um dos palestrantes, durante o evento.

Conhecimentos ancestrais

O padre e antropólogo Justino Sarmento descreve Higino como um “irmão maior”, conforme a hierarquia de parentesco do povo Tuyuka. Justino relata que, ainda jovem, Higino chegou a morar na Colômbia, de onde descendem os Tuyuka, mas retornou no fim da década de 1970 ao Brasil, com seu irmão, Guilherme. Higino e Justino só voltaram a ter contato a partir de 1994.

“Em 2 de junho de 1994 foi a minha ordenação sacerdotal em Pari-Cachoeira. No dia da Ordenação o grupo da dança que meu pai organizou estava lá. Na palhoça da festa fizeram uma bonita apresentação. Uma semana depois, o Higino programou uma grande festa com todos os Tuyuka, do Brasil e da Colômbia, e os nossos primos Tukano, Bará, Yebamasa. Realizaram grandes rituais tradicionais, além da missa celebrada por mim”, disse. Justino afirma que após a morte de seu pai, Higino convidou os irmãos do padre para morarem na sua comunidade.

“Tivemos desentendimentos e ele chegava até dizer que os nossos títulos de mestrados e doutorados não valiam nada até que comprovassem o contrário do seu pensamento. Ele dizia que, para revolucionar um campo, não bastam os títulos, tem saber e concretizar o que quer fazer. No campo da educação escolar indígena, ele fez isso, lembrou Justino Sarmento. “Quando se trata das tradições Tuyuka de discursos, narrativas cerimoniais com os mestres cerimoniais, aí não tem discussão: ele sabia. Ele e outros mestres de danças cantavam e dançavam dois dias e uma noite. São pessoas acostumadas a grandes cerimônias rituais.”

antropólogo Dagoberto Azevedo, do povo Tukano, conta que viu Higino pela primeira vez quando era “jovenzinho no final de 90”, em Pari-Cachoeira, durante as festas cívicas e religiosas, e que voltou a reencontrá-lo adulto, na vida acadêmica.

“Ele já era professor, líder e baya. Além disso, era atleta. Pelo  a’kasuose  (consideração/parentesco) é yuu peñu (cunhado). Com língua tuyuka é teñu. Nunca pensei que ele ia ser amigo e companheiro de trabalho em algumas circunstâncias”, relata Dagoberto.

“Foi pessoa simples e humilde. Acolhedor e aconselhador nos momentos de dificuldades, angústias e sofrimentos. Com ele, aprendi gaguejar algumas palavras e frases na língua tuyuka e incentivou-me a ingressar na pós-graduação.”

Dagoberto conta que Higino tinha capacidade, como autodidata, de atuar em várias áreas de conhecimentos dos Tuyuka e dos não-indígenas. “Antropologia, arqueologia, educação. Ele tinha ferramentas de lançar uma leitura relacionando os conhecimentos ancestrais com os demais conhecimentos do não-indígena”, lembra.

Segundo Dagoberto, Higino tinha esperança de fundar e implementar o Instituto de Pesquisa e Conhecimentos Indígenas do Rio Negro, junto de lideranças da Foirn e outras instituições.

“O projeto político pedagógico foi formado e estava pronto. Mas devido a alguns impasses políticos, não foi concretizado. Higino partiu para outra casa junto dos nossos ancestrais dos povos  indígenas. Creio que as lideranças e os parceiros externos em sua memória e de outros parentes especialistas intelectuais (mulheres e homens) tragam à tona aquela proposta da implementação e fundação do instituto”, afirmou.

Pesquisador de arte rupestre

Raoni Valle, professor do Programa de Antropologia e de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém, desenvolvia, desde 2013, com Higino e o professor Jairo Saw Munduruku, pesquisas interculturais sobre arte rupestre na bacia do Rio Negro.

“A importância do professor Higino Pimentel Tenório, o mestre Higino Tuyuka, para os estudos arqueológicos da arte rupestre no Brasil são imensas. Sobretudo as suas contribuições para a decolonização desses estudos no Brasil e América do Sul, ainda hegemonicamente pensados a partir de uma academia demasiadamente branca e ocidental”, afirmou Raoni Vale.

Conforme o arqueólogo, os impactos do conhecimento de Higino são “meteóricos”, pois “ao furar o bloqueio epistemológico das ciências ocidentais, o Mestre [Higino] provocou uma ruptura irreversível, uma divisão de águas”.

Em debates no Brasil e internacionalmente, Raoni lembra que Higino mostrou que “o conhecimento arqueológico, ao se limitar em leituras essencialmente materialistas, restringia o potencial de conhecimento e de entendimento das essências dos seres que os desenhos nas pedras, mais do que representar, de fato, eram”.

Para Higino, segundo Raoni Valle, classificar as formas entre tipos parecidos com bichos e gentes, era um exercício de profunda desinteligência e perda da perspectiva fundamental da arte rupestre. “Se trata de seres vivos integrados às mentes-corpos de outros seres, dos lugares, e às mentes-corpos dos filósofos Kumuã, formando uma grande rede neural estendida”, lembrou Raoni, lembrando os ensinamentos do líder Tuyuka.

Em 2018, Higino Tenório foi reconhecido como o primeiro pesquisador Indígena de Arte Rupestre no Brasil e foi convidado para ser sócio honorário da Associação Brasileira de Arte Rupestre (ABAR).

Outras repercussões

“Mais uma manhã muito triste! Triste! Triste! Um grande educador, lutador e guerreiro de raiz partiu. Higino Tenório Tuyuka, defensor radical das culturas, dos Saberes, das línguas e dos direitos indígenas! Um dos esteios fundadores da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro”, postou em sua rede social o antropólogo e professor da Ufam, Gersem Luciano, do povo Baniwa.

Em nota de pesar pelo falecimento de Higino Tenório, o governo do Amazonas rendeu homenagens ao líder indígena: “Conhecido como doutor da educação escolar indígena, Higino era professor indígena e fazia questão de repassar às novas gerações tradições indígenas, como línguas, cantos, histórias e cerimônias”, afirmou a nota do governo do Amazonas.

Higino inspeciona pedral de sítio arqueológico no Parque Nacional do Jaú, no Amazonas (Foto: Raoni Valle)

Comments (1)

  1. Caro arqueólogo Raoni Valle, lamento profundamente o falecimento do Mestre Higino Tenório. Acompanhava de longe os importantíssimos trabalhos dele como também do artista Feliciano Lana Desana. Pesquiso também arte rupestre e pre-história e o Mestre higino era instigante. Tínhamos muito o que aprender com eles e com os tantos que tem falecido em função da Covid19. Envio meu abraço a vc e a todos os seus amigos e parentes. Fiquem em paz e com saúde.

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