Nota do Cimi Regional Goiás/Tocantins sobre medida preconceituosa contra povo Javaé em Formoso do Araguaia

Medida que proibiu exclusivamente a circulação de indígenas no município do Tocantins só reforça o preconceito que estes povos historicamente enfrentam

Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Goiás/Tocantins manifesta preocupação e estranheza com a reunião realizada no dia 30 de junho na cidade de Formoso do Araguaia/TO, bem como com as decisões tomadas de fazer barreira e proibir exclusivamente a entrada do povo Javaé na cidade. A decisão da reunião resultou em comunicado que está sendo veiculado em grupos de WhatsApp na região.

O referido comunicado de propor barreiras sanitárias e isolar os indígenas, impedindo-os de entrar na cidade, constitui medida sem amparo na legislação, conforme expressa o texto: “Atenção senhores caciques, presidentes de associação, lideranças indígenas e toda a comunidade indígena da etnia Javaé, a Secretaria de Saúde de Formoso do Araguaia, através de sua assessoria jurídica, vem comunicar a todos, que em razão do grande número de indígenas infectados do vírus coronavírus (covid-19), após reunirmos com o Ministério Público Estadual, Coordenação do Disei de Palmas,  Câmara de Vereadores, Coordenação do  Polo de Saúde indígenas de Formoso do Araguaia e CDL, resolve suspender a entrada de indígenas na cidade de Formoso do Araguaia, por sete dias”.

Embora a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 23, II, defina que é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, a Constituição assegura uma série de outros direitos que não estão sendo devidamente observados pelas autoridades locais que tomaram as decisões de restringir a circulação de indígenas nas cidades.

A Carta Magna de 1988 assegura a todo o povo brasileiro o direito de ir e vir, o bem-estar, a igualdade, a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, plural e sem preconceito. Os direitos indígenas também estão definidos de forma proeminente nos art. 20, XI, art. 22, XIV, art. 109, XI, art. 129, V e artigos 231 e 232 da Constituição Federal, bem como em tratados internacionais que o Brasil acolheu, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Conforme se observa, a Constituição Federal de 1988 definiu como competência da União as tratativas sobre direitos indígenas, nos três Poderes da República, limitando as ações dos Estados e dos Municípios sobre a matéria. Deste modo, a coordenação das ações de combate ao coronavírus que refletem nas comunidades indígenas devem ser obrigatoriamente da União. Caso contrário, as decisões podem ser consideradas viciadas em sua origem.

Ademais, causam estranheza as definições das autoridades do Estado do Tocantins e da cidade de Formoso do Araguaia, quando decidem “suspender a entrada de indígenas na cidade de Formoso do Araguaia” e emitem um comunicado sem consultar os indígenas.

“A decisão das autoridades locais que limita a circulação de indígenas nas cidades é açodada e pode ser compreendida, inclusive, como medida preconceituosa, pois se limita a restringir direitos de um grupo social específico”

A decisão das autoridades locais que limita a circulação de indígenas nas cidades é açodada, pois não contou com a coordenação da União e pode ser compreendida, inclusive, como medida preconceituosa, pois se limita a restringir direitos de um grupo social específico. Isso é ilegal e não encontra amparo na Constituição Federal brasileira. Esta posição só resulta no aumento de preconceito que, historicamente, os povos indígenas enfrentaram e continuam enfrentando, simplesmente por serem indígenas.

Cabe a estas instituições de representação local propor ações cautelosas para toda a população do município, pois o vírus está em toda parte e não somente nos territórios indígenas. Fechar as entradas da cidade de Formoso do Araguaia para os povos indígenas, supostamente uma iniciativa para diminuir a contaminação por covid-19, como se fossem eles os únicos transmissores e portadores do vírus, consiste em medida falaciosa.

O momento atual da pandemia é de ações urgentes, concretas e articuladas entre os poderes públicos, com a coordenação da União, instituições e sociedade civil, para que, de forma organizada, atuem no enfrentamento ao coronavírus. E não de ações que promovam e incentivem o preconceito e o racismo contra os indígenas e qualquer outro grupo social.

A pandemia ataca a toda a população, porém, a vulnerabilidade é maior nas classes sociais com menos recursos de moradia, alimentação, e de saúde; e que, normalmente, estão à margem das possibilidades de tratamento adequado. Também ameaça fortemente o modo de vida dos povos indígenas, grupo em situação de maior vulnerabilidade ao vírus. Inúmeros fatores determinam essa condição: a covid-19, as invasões nos territórios e os sucessivos ataques aos direitos dos povos indígenas são situações que contribuem para o agravamento da ameaça à vida dos povos indígenas.

Os povos estão presenciando e sofrendo pelas mortes das lideranças, das crianças, dos anciões, dos homens e mulheres pela covid-19. Essas mortes ameaçam interromper a memória, a história e a resistência dos povos indígenas, causando uma perda imensurável para a vida e o futuro dos povos indígenas.

O Cimi tem reforçado às lideranças indígenas a importância de ficar nos territórios e seguir as medidas protetivas, pois a covid-19 é grave. Nos solidarizamos, também, com todas as pessoas, principalmente as mais pobres, que não têm o básico, como água tratada, uma barra de sabão e álcool em gel para se proteger contra este vírus, e por isso ficam totalmente expostas. E o mais grave, excluídas das políticas públicas do Estado brasileiro.

Neste tempo de pandemia, a solidariedade, a partilha e a união devem ser norteadoras das ações frente às condições de isolamento social, evitando, de todas as formas, ações que geram conflitos, violência e preconceitos. A restrição para conter a proliferação do vírus tem que ser para todos, indiscriminadamente, e não exclusivamente para um determinado grupo social.

O isolamento social é para todos, porém não pode passar desapercebido que setores do agronegócio não estão respeitando esta medida e continuam promovendo desmatamento, utilizando indevidamente as águas e destruindo a todo vapor o que resta da natureza. Estas ações estão alterando e promovendo o total desiquilíbrio no planeta. Em consequência, pode haver surgimento de novos vírus e pandemias quase que incontroláveis, provocadas pelo desequilíbrio ambiental.

É necessário e urgente que o órgão federal responsável pela atenção às políticas da saúde indígena realize a testagem nos povos que apresentam casos já confirmado da covid-19, para detectar preventivamente o vírus, evitando aumento dos casos e fazendo o tratamento adequado nos indígenas; que investigue a causa da contaminação por coronavírus no povo Javaé, pelo alto índice de contaminação em um curto período de tempo; e que a Funai reforce a fiscalização nos territórios e faça cumprir a portaria 419, a qual proíbe a entrada de pessoas não autorizadas nas terras indígenas, pois são essas pessoas que podem levar o vírus para dentro dos territórios.

O Cimi Regional Goiás/Tocantins repudia qualquer ação ou atitude que promova a discriminação e a intolerância. O racismo e o preconceito são crimes que devem ser combatidos e afastados de nossa sociedade. Não podemos incitar e promover a discriminação contra os povos indígenas e nenhum outro segmento da sociedade. Precisamos promover o respeito à diversidade e à pluralidade como pilares essenciais de uma sociedade democrática e fraterna.

03 de julho de 2020

Cimi Regional Goiás/Tocantins

Aldeia Boto Velho, do povo Javaé, na Terra Indígena Inãwébohona, Ilha do Bananal. Foto: Cimi Regional Goiás/Tocantins

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