Debate da Fiocruz reúne intelectuais indígenas e lança chamadas públicas

Ricardo Valverde, Agência Fiocruz de Notícias

Por meio do Observatório Covid-19, a Fiocruz promoveu o debate virtual Povos indígenas na produção de conhecimento: por uma saúde não silenciada. O encontro, que pode ser assistido no canal da Fundação no YouTube, reuniu pesquisadores da Fiocruz e intelectuais indígenas. Estes apresentaram suas trajetórias acadêmicas e no mundo da pesquisa e comentaram os muitos percalços que ainda precisam superar. A atividade teve o apoio da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz) e integra o projeto Vozes Indígenas na Produção do Conhecimento, que se originou a partir de um diálogo entre intelectuais indígenas de diversas regiões do Brasil e pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). O objetivo é dar visibilidade ao conhecimento produzido por pesquisadoras e pesquisadores indígenas, envolvê-los nos eventos tecno-científicos, estimular trabalhos conjuntos e a circulação de ideias e reflexões.

O evento marcou o lançamento de duas chamadas públicas voltadas para pesquisadores indígenas de toda a América Latina que sejam autores principais dos trabalhos. Co-autores podem ser não-indígenas. As chamadas também buscam contribuições que versem sobre a vivência dos povos indígenas no contexto da Covid-19. O objetivo das chamadas é reunir contribuições que deem visibilidade às múltiplas especificidades inerentes às realidades sócio-territoriais de cada povo, com ênfase nas complexas inter-relações sócio-culturais e políticas com a saúde dos povos indígenas.

Em ambas as chamadas podem ser enviadas contribuições em português e línguas indígenas (maternas, nativas ou originárias), desde que contem com a tradução para o português. Além das chamadas, durante o evento houve ainda o lançamento de uma série de curtas sob o título Vozes indígenas do território à academia, produzido em uma parceria da VideoSaúde/Fiocruz com a Canoa Produções que apresenta as trajetórias de indígenas acadêmicos e suas carreiras na universidade e na docência.

A pesquisadora da Ensp e coordenadora do GT de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) Ana Lúcia Pontes, que faz parte da coordenação da iniciativa, abriu o evento virtual lembrando que o projeto surgiu entre pesquisadores da Fiocruz e da Abrasco, em articulação com profissionais de outras instituições que também atuam nas áreas de antropologia e saúde indígena. O intuito é valorizar e dar visibilidade à produção do conhecimento de pesquisadores indígenas e abrir caminhos para que participem de eventos científicos na área de saúde coletiva.

Em seguida ela apresentou o primeiro dos vídeos exibidos durante o debate, no qual a pesquisadora Braulina Aurora Baniwa conta a sua trajetória no mestrado na UnB e na produção de conhecimento. Ela narrou os muitos obstáculos que os indígenas precisam superar para chegar (e permanecer) na academia. “Ainda somos vistos por muitos como inúteis. Não reconhecem o nosso potencial. Também não somos apenas uma sociedade indígena, mas várias. Somos 300 povos e 380 línguas. Apesar das dificuldades, estamos abrindo portas”.

O pesquisador Ricardo Ventura Santos, da Ensp e do Museu Nacional/UFRJ, disse em seguida que é importante amplificar as vozes dos povos indígenas. Ele louvou a iniciativa, que permitiu pensar em chamadas que terão a participação de intelectuais indígenas, algo improvável até poucos anos atrás. Segundo ele, na última década houve um importante avanço, no ensino superior, de alunos vindos de povos indígenas, o que agora começa a se refletir em dissertações de mestrado e teses de doutorado. “Diante desse avanço podemos começar a olhar para o futuro com altivez e esperança”.

A vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado, afirmou em sua intervenção que “o tema é necessário e relevante e reúne pesquisadores de variadas unidades da Fundação que trabalham em articulação com os povos indígenas”. Ela elogiou a qualidade dos vídeos produzidos e disse que “esses povos precisam ser sujeitos e vocalizar seus direitos, além de manifestar suas especificidades, como o direito ao território, a defesa da natureza, a luta pelas florestas e pela preservação da sua história e da sua memória. Sem dúvida eles têm muito a nos ensinar, sobretudo neste momento de crise sanitária e humanitária sem precedentes pelo qual o planeta vem passando”.

Logo após a participação da vice-presidente houve a exibição de um novo vídeo, com a mestranda em sociologia Urawive Suruí. Segundo ela, seu projeto acadêmico tem como proposta contar a experiência dos suruí para as próximas gerações, refletindo o conhecimento social desse povo. Após o vídeo, Inara do Nascimento Tavares, do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, disse em sua intervenção que a universidade, para os indígenas, é mais um espaço de luta, para o qual os povos indígenas levam seus corpos, seus sonhos e suas cores.

O doutorando em direito Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, observou que reunir as lideranças intelectuais indígenas é fundamental para que alcancem o objetivo de democratizar o espaço acadêmico. “E nossas pesquisas também contribuem para a divulgação e maior disseminação dos saberes tradicionais. É necessário quebrar o paradigma de que apenas o conhecimento europeu é válido e científico. No mundo de hoje é inadmissível que se duvide da capacidade intelectual dos nossos povos. Infelizmente, mesmo na universidade, que deveria ser mais aberta e inclusiva, ainda percebemos esse preconceito”.

A psicóloga Nita Tuxá, da Articulação Brasileiras dos (as) Psicólogos (as) Indígenas, disse que a discriminação aos povos indígenas “gera sofrimento e nos faz lutar diariamente por nossos direitos”. Para ela, “a escolarização é uma arma de luta, visando transformar uma ciência colonizadora e abrir espaço para a diversidade de conhecimento. Precisamos de uma ciência acolhedora e inclusiva. E o nosso desafio é também o de traduzir para os nossos povos o conhecimento que adquirimos”. Nita listou alguns dos problemas enfrentados pelos indígenas, como a violação de direitos, a invasão de terras, o garimpo e o desmatamento ilegal. “Os indígenas passaram muito tempo silenciados. Não mais. Esse tempo ficou para trás”.

Mário Nicácio, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), afirmou estar havendo uma contaminação em massa de indígenas pela Covid-19. “E esse cenário desolador está destruindo grande parte de nossas enciclopédias vivas, os anciãos indígenas. É uma perda incalculável e irreparável”. Segundo Nicácio, os povos indígenas buscam não ser mais identificados como objetos, e sim autores, sujeitos soberanos que pensam, refletem, criam, pesquisam, lecionam.

A última intervenção foi de Joziléia Daniza Kaigang, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela disse que o evento representa “nós falando por nós”. A professora afirmou que tem aumentado significativamente a qualidade da pesquisa feita por indígenas, que muitas vezes está ligada à ancestralidade e à conexão com o território. “Somos diversidade e pluralidade e temos múltiplas possibilidades para caminhar na produção de conhecimento”, disse. Junto com a intervenção de Joziléia ocorreu a exibição do vídeo da advogada Simone Terena, pesquisadora na área de violência contra a mulher indígena.

Chamadas

Para participar das chamadas, os autores indígenas precisam submeter os trabalhos até 30 de agosto, pelo e-mail [email protected], seguindo as orientações dos editais:

Chamada 1: “Corpo, Território, Saúde e Existência/Resistência dos Povos indígenas da América Latina”

Chamada 2: “Diversidade de Vozes dos Territórios Indígenas: Saúde Silenciada”

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