Luíza Carlota: PL que ameaça Resex Chico Mendes já desmata e incentiva a grilagem no Acre

Por Fábio Pontes, na Casa Ninja Amazônia

Vice-presidente da associação de moradores, Luíza Carlota diz a simples apresentação do projeto que prevê a redução da área da unidade vem aumentando o desmatamento e a venda ilegal de lotes de terra

O senador bolsonarista Márcio Bittar (MDB-AC), líder da bancada da motosserra do Acre, tem usado como principal argumento para seu projeto de lei que reduz o tamanho da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes o de que a criação da unidade de conservação federal, em 1990, colocou centenas de famílias acreanas na miséria ao impedi-las de ampliar suas áreas de produção e criação de gado.

Responsável por liderar um movimento que reúne os moradores tradicionais da reserva contra o PL 6024 – apresentado em novembro de 2019 pela deputada Mara Rocha (PSDB-AC) na Câmara – a extrativista Luíza Carlota da Silva, de 49 anos, diz que Bittar mente ao fazer tal afirmação.

“Pobreza a gente tinha quando vivia na época do patrão. A gente só recebia mercadoria se estivesse com a borracha pronta. Aí sim existia pobreza porque a gente era escravo”, diz ela ao lembrar os tempos difíceis que as famílias seringueiras viviam. “Na reserva não existe miséria. Eu nasci e me criei na floresta, e a gente tem muita fartura. Só não tem quem não trabalha.”

No dia 12 de março último, quando a Resex Chico Mendes completou 30 anos, Luíza esteve à frente do movimento formado por extrativistas que ocupou a sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Brasileia contra o PL 6024.

De acordo com ela, em momento algum os membros da bancada da motosserra fizeram reuniões com os núcleos de base para saber se apoiavam a medida. Luíza afirma que o grupo de pessoas que se apresenta como moradores da Resex e defende o projeto atua em causa própria. Essas pessoas se verem ameaçadas de serem expulsas e terem o gado apreendido por já desmatarem acima do tolerado pelas regras da unidade.

A simples apresentação da proposta, afirma ele, aumentou a prática de crimes ambientais no interior da reserva, incluindo a venda de lotes de terra dentro das colocações – como são chamadas as propriedades dos moradores, herança dos tempos dos seringais. O desmatamento, que já vinha em alta, também acelerou. A floresta vem sendo derrubada para virar pasto. Dados do Inpe apontam que no primeiro semestre deste ano a Resex Chico Mendes teve devastada quase sete quilômetros quadrados de mata, sendo 80% na região do Alto Acre.

Luíza Carlota é vice-presidente da Associação de Moradores e Produtores da Resex Chico Mendes de Brasileia e Epitaciolândia (Amopreabe) Ela é moradora do seringal Guanabara, colocação Santa Rosa, no município de Brasileia.

Por telefone, ela concedeu a seguinte entrevista:

Semanas atrás houve uma reunião em Brasília, liderada pela bancada da motosserra, na sede do ICMBio para pressionar o presidente do órgão a avançar com o projeto que trata de reduzir o tamanho da Resex Chico Mendes. O que a senhora achou disso?

Luiza: Eu fiquei muito triste porque os nossos extrativistas estão isolados por conta da pandemia, por conta do coronavírus, então as pessoas não estão saindo. Fizemos uma manifestação aqui em Brasileia no dia 12 de março, com mais de 400 pessoas contra a desafetação da reserva. E hoje os políticos continuam fazendo essa reunião e pressão. Nós nos reunimos com representantes do ICMBio aqui do Acre e pedimos que as bases fossem ouvidas. Não é questão de a Luíza não querer que desafete. É a questão do povo. Quantas pessoas vão ser prejudicadas em suas colocações? Qual é o interesse em desafetar a reserva? Por que o senador não vem conversar com a gente enquanto liderança? A gente já deu nosso grito de não. No nosso conhecimento tudo tem o que for mudado na reserva tem que ter a participação dos moradores, de 10% dos moradores. Agora eles criarem um projeto, sem nos consultar, sem nos responder por que ele é importante, qual é o real objetivo que não fala. Enquanto a gente está se cuidando em nossas casas, em nossas comunidades, eles, ao invés de estarem tentando, em primeiro lugar, salvar a vida dos brasileiros, estão tentando fazer aprovar uma coisa que a gente não concorda. 80% da Reserva Chico Mendes não concordam com esse projeto de lei. Eles não estão parando para nos ouvir.

A senhora já chegou a ler projeto 6024. O que achou dele?

Luiza: Eles pegaram pontos do GPS pelo computador de onde estão as colocações que eles pretendem avançar com o projeto deles. Isso é muito difícil. Tem muitas famílias lá dentro que não querem nem pensar em assentamento. Tem famílias que nasceram e cresceram ali e querem continuar na colocação deles. A gente sabe como é a vida em assentamento. É muito diferente da cultura na reserva. Se virar assentamento a floresta vai se acabar, e a floresta é a nossa vida, a nossa saúde. A gente precisa da floresta em pé. Com assentamento vai trazer destruição. Avança na produção da pecuária? Avança, mas nunca foi proibido criar gado na reserva, mas tem uma quantidade que pode criar dentro da unidade. Todos os planos de uso da reserva já previam a criação de animais. Mas tem que saber preservar, saber qual é a área que vai usar para a pastagem, a área do roçado sustentável e a área da preservação. Eu defendo a qualidade de vida dos moradores. Então, tem que discutir com os moradores. Não aceito a política de goela abaixo. Precisa sentar com os moradores para saber, deixar bem claro o projeto para saber se é bom ou ruim para a gente. Fomos nós que construímos a reserva, que crescemos lá, que vivemos lá.

Se o senador Márcio Bittar e a deputada Mara Rocha não conversaram com as verdadeiras lideranças de base da reserva, quem são estes moradores que os políticos usam para defender o projeto de lei?

Luíza: Não posso falar em nome do presidente [da associação], mas posso afirmar que não aconteceu nenhuma consulta aos moradores. Eles [os extrativistas] ficaram sabendo do projeto porque eu fui na reserva e comuniquei. Mas nós, enquanto morador ou como integrante da diretoria, nunca fomos consultados. Teria que ter tido reunião da diretoria, planejar reuniões de base, com os núcleos de base. São 36 núcleos de base. Se tem dois núcleos de base que querem, não são os 36 que querem em Brasileia. Tem Xapuri que também não aceita. Assis Brasil também não aceita. Tem áreas aí que nem tem conhecimento deste projeto. Nós só visitamos 13 núcleos.

Em outubro do ano passado, a bancada da motosserra levou um grupo de moradores da Reserva Chico Mendes para uma reunião com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para legitimar o pedido de desafetação da unidade. Quem são estes moradores?

Luiza: Pelo que vi pela reportagem, em algumas fotos, tem um rapaz por de nome Rodrigo, filho do Zé Baixinho, que responde a um processo judicial junto ao ICMBio com pedido de desocupação. Então eu posso considerar que não são moradores legais da unidade. Não são descendentes [dos primeiros seringueiros]. Eles não têm o direito de fazer um pedido em nome dos demais moradores da Resex Chico Mendes. Se eles querem que peçam numa área só deles, e não envolver toda a reserva como se a comunidade tivesse sido consultada.


Este projeto 6024 apresenta as áreas que serão desafetadas por polígonos. Não há uma área contínua de terra a ser desmembrada. São vários pontos espalhados em diferentes zonas. A quem esse tipo de desafetação vai beneficiar?

Luíza: Tem pontos que atingem a família do Rodrigo, que é um dos representantes da Mara [Rocha] que fez o projeto. Beneficia a área de um vereador de Xapuri que foi notificado pelo ICMBio para desocupar a reserva também. Um senhor de Brasileia que foi multado por criar gado em excesso. E dentro disso aí tem moradores tradicionais vizinhos que também serão afetados, moradores legalizados que podem deixar de ter suas colocações dentro da unidade por serem vizinhos a esses polígonos.

Ou seja, essas pessoas que defendem o projeto estão atuando em causa própria? Querem se ver livres dos processos do ICMBio?

Luiza: Exatamente. São pessoas que não respeitam a unidade, são pessoas que ultrapassaram seus limites [de derrubadas], que não deveriam estar lá dentro. São pessoas que não constróem para que a unidade permaneça.

Esses moradores correm o risco de perder o direito de morar dentro da reserva?

Luiza: Se a Justiça fosse mais rápida já teriam saído. Os processos são muito lentos. O ICMbio faz toda a documentação, notifica e vai para a Justiça. Alguns processos já saíram, mas outros estão muito lentos. Baseado em questões legais eles podem ser expulsos, a criação de gado deles pode ser leiloada. O ICMBio até dá um prazo para retirar o gado. Se não tirar é apreendido. Então, de certa forma, eles têm umas benfeitorias lá dentro das colocações que podem perder a qualquer momento.


O senador Márcio Bittar é o principal porta-voz deste grupo de moradores. Ele afirma com frequência que a criação da Reserva Chico Mendes colocou centenas de famílias do Acre na pobreza, na miséria. O que você acha dessas declarações?

Luíza: Essa declaração não é verídica. Ela é mentirosa. Na reserva não existe miséria. A família está vivendo bem. O que não tem de qualidade é o acesso. Os ramais não têm qualidade. Mas pergunte lá a uma daquelas famílias: você quer ficar com sua colocação de 200 hectares dentro da reserva ou você quer 700 hectares num assentamento? Elas vão dizer não, eu prefiro a minha colocação do jeito que ela está. Eu tenho minha galinha, o meu porco, o meu gadinho, a minha castanha, eu tenho minha seringa, minha casa e minha terra. Fome não existe. O que existe é que nenhum governo federal até hoje abraçou a Reserva Chico Mendes como deveria. Ela é do governo federal, mas as políticas não chegam lá. Se tem ramal de qualidade, energia, saúde, preço para a produção extrativista de qualidade, escoamento desta produção, as famílias não vão querer vida melhor do que a tranquilidade na floresta. Eu nasci e me criei na floresta, e a gente tem muita fartura. Só não tem quem não trabalha. A reserva não trouxe pobreza para ninguém. Pobreza a gente tinha quando vivia na época do patrão. A gente só recebia mercadoria se estivesse com a borracha pronta. Aí sim existia pobreza porque a gente era escravo.

Quais seriam os impactos para a Reserva Chico Mendes caso este projeto seja aprovado?

Luíza: O impacto já aconteceu. A quantidade de famílias que estão vendendo pedaços da colocação porque ouviram dizer que [a reserva] vai ser cortada você não tem noção. A quantidade de famílias que estão aumentando suas áreas de pasto pensando que vai virar assentamento também está grande. Eles nem entendem o que é o projeto direito. Eu passei mais de uma hora explicando para eles o que é o projeto. Quais as áreas serão cortadas pelo projeto. Mas daí as pessoas saem falando para as outras coisas sem saber de fato. Está entrando muito pessoas [novos moradores], e o desmatamento vai aumentar muito mais do que você possa imaginar. Escuto com frequência as pessoas falando que vão comprar um pedaço [de terra dentro da reserva] porque Fulano falou que vai ser cortado. Eu sinto muito em ter que dizer isso, mas o senador deveria parar um pouco e ir para as comunidades e falar com as pessoas, ouvir as pessoas. Assim como na época das eleições que sai por aí em tudo o que é canto. Se não pode agora por causa da pandemia, espera passar, mas escuta a comunidade. Tudo o que eu peço é que escute em primeiro lugar a comunidade. Para chegarmos até aqui, para sair da escravidão dos patrões até a nossa liberdade, teve briga, teve morte, teve guerra, teve sangue.

Foto: Fabio Pontes

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