Saberes tradicionais de quilombolas protegem meio ambiente no Vale do Ribeira, em SP

Comunidades da região estão dispensadas de licença para plantar e colher produção agroecológica devido à pandemia

Redação Brasil de Fato 

Comunidades quilombolas localizadas na região do Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo, estão dispensadas do licenciamento prévio para o manejo da mata e plantação de roças tradicionais em meio à pandemia do novo coronavírus.

A conquista junto ao governo do estado visa garantir a segurança nutricional dos povos tradicionais. A reivindicação foi atendida em abril pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, após envio de um ofício assinado por 23 associações quilombolas da região. 

O documento solicitava a expedição prévia de licenças justamente porque o processo burocrático de análises e relatórios estão travados em meio à pandemia. Com a decisão, os quilombolas estão liberados para realizar o plantio até o fim de 2020.

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Benedito Alves da Silva, liderança da Associação Quilombo Ivaporunduva, afirma que as comunidades locais estão plantando variedades de legumes e grãos, o que ajuda na não contaminação pela covid-19.

“Estamos com medo de ir na cidade. A tendência é que a gente consiga produzir aqui o alimento para evitar ir na cidade. Favoreceu muito a licença. Vai ajudar a comunidade também nesse sentido”, relata Benedito. 

Segundo monitoramento das prefeituras dos municípios, 1.779 casos de infecção foram confirmados na região do Vale do Ribeira, onde 53 óbitos foram registrados em decorrência da doença respiratória.

Durante a entrevista, o líder quilombola ressaltou que a produção agroecológica carrega saberes ancestrais que atravessam gerações. 

“Não é um modelo só para nós aqui da comunidade. É também contribuir com a proteção do meio ambiente. A água, a floresta, os animais. [Os saberes quilombolas] Ajudam naquilo que o mundo está pedindo, a proteção ambiental”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato: Qual a importância dessa decisão que facilitou o plantio das hortas tradicionais em meio à pandemia? 

Benedito Alves da Silva: Somos uma comunidade quilombola, onde existem várias comunidades que conseguiram essa licença ambiental para fazer a roça. Nós trabalhamos e uma boa parte da nossa alimentação vem da roça. Feijão, legumes, verduras, cheiro verde, milho. Estávamos com grande dificuldade por conta da pandemia. A licença do jeito que era feita era difícil porque tinha um levantamento técnico que o Itesp fazia para nós que demorava muito. Às vezes até dois anos e ficávamos sem plantar nada.

Essa licença foi legal porque as pessoas já estão fazendo, já fizemos muita plantação de feijão. A época de plantar feijão aqui só vai até setembro, a partir de diante já começamos a fazer a roça para plantar milho, plantar arroz. A licença foi muito importante porque vai favorecer toda as comunidades aqui da região do Vale do Ribeira, para poder fazer a sua roça.

Na questão da pandemia, graças a Deus, aqui nos quilombos ainda não chegou. Estamos nos precavendo, evitando ir na cidade para poder não chegar até aqui. Na cidade de Eldorado, todo dia que passa está aumentando. Vemos que está aumentando. Iporanga que é uma cidade distante que não tinha caso, já tem um confirmado e outro suspeito também.

Estamos com medo de ir na cidade. A tendência é que a gente consiga produzir aqui o alimento para evitar ir na cidade. Favoreceu muito a licença. Vai ajudar a comunidade nesse sentido. 

Quais são as técnicas utilizadas por vocês? Quais são os saberes colocados na terra?

Vou falar um pouco de Ivaporunduva mas serve pra todas as comunidades. Aqui nós plantamos prezando os aprendizados dos nossos ancestrais. Por exemplo, não usamos nada químico, nem adubo, nem nada. A produção é orgânica. Então utilizamos os saberes dos nossos antepassados. Por exemplo: se plantarmos a semente na lua crescente, sem dúvida, quando der a produção, vai estragar. A lua é ruim pro plantio. Agora a lua minguante é a favorável. Plantamos o feijão e depois que colhemos, podemos guardar até dois anos porque não tem perigo de estragar o feijão. 

E pra fazer a roça, usamos a lua crescente, porque a vegetação tá mais mole para cortar e ai queima na entrada da minguante para podermos plantar. A cinza da queima serve como calcário e ajuda no melhoramento da semente, para impedir alguns bichinhos de cortar a planta quando ela nasce. Isso aprendemos com os nossos antepassados.

Qual a importância de proteger esses ensinamentos?

O Quilombo de Ivaporunduva está aqui há mais de 400 anos. E essa terra, não perdemos. Vem passando dos nossos antepassados pra nós, os mais jovens também já estão aprendendo a importância do nosso modelo de trabalho. Utilizamos o modelo da comunidade. É muito importante para quem trabalha e utiliza a produção orgânica. 

O trabalho que fazemos aqui na área de produção orgânica tem muita importância para a nossa saúde, a importância de comer uma comida saudável e na questão do meio ambiente. As regras que colocamos é em defesa do meio ambiente. Não limpamos a mata auxiliar, a mata virgem está protegida. Os animais que vivem aqui comem produto da roça e estão saudáveis por conta desse modelo que trabalhamos. Não é um modelo só para nós aqui da comunidade. É também contribuir com a proteção do meio ambiente. A água, a floresta, os animais. [Os saberes quilombolas] ajudam naquilo que o mundo está pedindo, a proteção ambiental.

Como é feita a comercialização dessa produção?

O Ivaporunduva participa das chamadas públicas das escolas e se ganhar, começamos entregar a merenda escolar. Entregamos para Santo André. Paramos agora por conta da pandemia do coronavírus. Ganhamos uma licitação de Itu e estávamos entregamos também para a prefeitura de São Paulo. 

Existe uma grande cooperativa chamada Cooper Central, e as cooperativas da região do Vale do Ribeira, participam das chamadas públicas das prefeituras da capital e do entorno. Ganhando essa licitação, leva-se a produção e entrega na Cooper Central em São Paulo, e ela faz a distribuição. Nós pagamos um valor e já é descontado quando recebemos da Prefeitura.

É um trabalho que não fazíamos, é novo para nós. Está com dois anos que começando aqui na Associação Ivaporunduva. Estávamos trabalhando ser a parceria com a Cooper Central, entregando para Campinas e vários outros municípios. E é importante porque conseguimos produzir e entregar uma mercadoria de qualidade para que essas crianças comam o produzido aqui.

No caso da Conab, trabalhamos desde 2004. E geralmente o Ivaporunduva entregava em Campinas, no banco de alimentos, no Ceasa. Mas a partir do golpe em cima da Dilma, começaram a cortar o Programa [Programa de Aquisição de Alimentos]. Vínhamos pressionando desde essa época que a Conab voltasse porque produzimos sabendo que o comércio já está garantido.

Ano passado anunciaram de novo que iam começar de novo os pequenos projetos. Apresentamos e estamos entregando pela Conab. É legal porque muita gente em Campinas, na cidade, recebe essa mercadoria. É uma compra para a doação simultânea. Quem recebe essa mercadoria não paga, quem paga é o governo federal. Para quem precisa é muito importante e para quem produz também é, porque está gerando trabalho na roça, com a garantia que o produto será comercializado.

O Ivaporunduva trabalha também com outra fonte de renda que é turismo étnico-cultural. Não é um turismo que é de um grupo, de uma pessoa, mas da Associação. Todas as famílias daqui participam. Seja trabalhando como monitor ou trabalhando em uma pousada que temos. Produzimos e vendemos lá na associação para os turistas comprem o produto da roça. Também é importante porque gera renda para a comunidade. Uma forma de distribuir o dinheiro que entra. Agora estamos parados por conta da situação no Brasil e no mundo inteiro, mas estamos vivendo. Todos estamos nos alimentando, vamos ver. Se Deus quiser essa coisa passa logo para podermos voltar à normalidade. 

Acredita que esse tipo de política como o PAA e a doação simultânea deveria ser intensificado? E no pós-pandemia?

Nós esperamos que continue. Agora tem a chamada pública do segundo projeto. Teve a primeira, de um projetinho pequeno, e agora tem outro. Não é grande mas ajuda.

A ideia é que pressionemos, que a agricultura familiar do Brasil inteiro pressione o governo. O Congresso Nacional, as pessoas que cuidam disso, para que não acabe. É uma forma de ajudar a agricultura familiar. As pesquisas mostram que 70% do alimento da mesa das pessoas do Brasil inteiro vem da roça da agricultura familiar. 

É importante que o governo tenha esse olhar, de favorecer, de fazer com que as pessoas produzam e vendam a produção. O governo deve se responsabilizar por comprar uma parte. Se o Estado comprar uma parte e trabalharmos com as Prefeituras pela merenda escolar, ajuda as comunidades a sobreviver e fazendo a manutenção da coleta onde vivem.

A manutenção da comunidade depende de uma boa alimentação, de mostrarmos para as crianças como são as coisas, como que se vive. Contando a história da comunidade para as crianças, fazendo com que eles entendam e assumam sua negritude também. É muito importante… entendendo que nós, povo negro, temos um valor importante na sociedade.

Temos que fazer aqui, entendendo que o governo tem que criar mecanismos para nós. Tendo mecanismo, somos capaz e podemos continuar vivendo aqui, fazendo a manutenção da comunidade. Que é importante não só para nós, mas para a história do Brasil. São histórias, quilombos que o Brasil não conhece. Histórias que muitas vezes não são contadas.E se são contadas, são contadas de maneira que não corresponde à realidade.

É também uma forma de se apropriar e ter protagonismo histórico?

Exatamente. Formando pessoas que possam ajudar, como professores, por exemplo, pessoas que ajudem no campo acadêmico a divulgar nossa história e fazer com que mais pessoas tenham acesso a essa história. Trabalhamos nossa história, com as pessoas da cidade, por meio do turismo. Trabalhamos com escola de São Paulo e de vários estados. Mas a maioria das escolas é de São Paulo.

O objetivo do turismo aqui não é só renda. É falar de nós para essas crianças que são o futuro. Isso é muito importante. Fazemos uma palestra pra essas crianças, falando da comunidade quilombola, da história, do meio ambiente, da forma de conduzir, da forma de fazer a casa de pau a pique. São vários processos que fazemos aqui, ensinando as crianças que vêm de fora que não têm acesso à nossa verdadeira história. Também é uma forma de trabalharmos nossa história, não só para nós. São sementes que estamos plantando e esperamos que no futuro pelo menos meia dúzia dessas sementes nasça e dê bons frutos.

Edição: Rodrigo Chagas

Foto: Marina Santos Morais K.

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