Ministério da Saúde revoga decisão sobre serviço para detentos com transtorno mental; presidência da CDHM reúne governo, ministério público e sociedade civil para reestruturar atendimento

Por Pedro Calvi / CDHM

No dia 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial, o Ministério da Saúde extinguiu, através da Portaria 1.325, o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Após mobilização da sociedade civil e de instituições do sistema de Justiça que resultou em uma Nota Técnica enviada ao Ministério, a portaria foi revogada no último dia 15. As EAPs existem em sete estados, onde trabalham 11 equipes. Nesta sexta-feira, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) promoveu uma reunião com representantes dos segmentos envolvidos nesse tema. A retomada do serviço das EAPs foi o ponto de partida do debate.

A Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) informa, através de nota, que em 2019, de acordo com relatório mais atualizado do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias  organizado pelo Ministério da Justiça, o total da população carcerária era de 748.009, das quais 4.358 pessoas estão submetidas a medidas de segurança, sendo que 4.109 cumprem na modalidade de internação e 250, na modalidade de tratamento ambulatorial.

Raquel Oliveira e Silva, coordenadora de Saúde no Sistema Prisional do Ministério da Saúde, afirma que “queremos construir uma nova política a partir de critérios técnicos e vamos rever nossos mecanismos de atenção e monitoramento das EAPs. Precisamos também fazer, internamente, uma análise do nosso processo de trabalho para otimizar o fluxo e melhorar”.

A Secretária da Atenção Primária à Saúde-Substituta do Ministério da Saúde, Daniela Ribeiro, avaliza essa nova posição da pasta. “Com a decisão de revogar a portaria, o Ministério entendeu a importância de pensar em um novo caminho, avaliar o potencial dessas políticas junto às pessoas com transtorno mental. Hoje, os gestores estaduais ou municipais podem solicitar equipes de EAP e o Ministério custear esse trabalho. Mas temos observado uma dificuldade desses gestores na manutenção desses serviços. Queremos ouvir a sociedade e avaliar o que é feito. Um trabalho com os conselhos de saúde para propor uma nova política de atenção à saúde mental para quem está privado de liberdade”.

“Reconhecemos o empenho do Ministério da Saúde em revogar a portaria, e também a mobilização social em torno dessa ação. Assim, vamos fortalecer as políticas públicas”, destaca Leonardo Pinho, vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Zozer Hardman de Araújo, assessor do ministro interino Eduardo Pazuello, ressalta a forma como o ministério respondeu aos questionamentos da sociedade civil. “Esse tema tem que ser tratado com muita cautela. Logo após a Nota Técnica, nos reunimos com o CNDH e agimos prontamente para revogar a revogação. Isso demonstra a importância do diálogo com todos os envolvidos e sempre estaremos abertos para isso”.

Para o presidente da Anadep, Pedro Paulo Coelho “a sociedade civil deve ter uma participação efetiva na escuta prévia anterior às decisões, e chamo a atenção para os diversos projetos de lei tramitando no Congresso que criminalizam a participação dos movimentos sociais”.

“Uma questão importante é definir quem vai acompanhar as EAPs a partir dessa mudança que deve acontecer, para monitoramento e avaliação. O Ministério da Saúde tem que conhecer o que foi feito nos estados, porque cada um foi construindo de acordo com a sua realidade. “As pessoas com transtorno mental, encarceradas ou não, demandam cuidado”, pondera Janete Serra, da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME).

Marisa Helena Alves, do Conselho Nacional de Saúde, ressalta que “as dificuldades para implantação devem ser superadas e qualquer mudança nessa política pública deve ser aprovada pelo Conselho, não podemos passar por cima das instâncias de participação social”.

Hospitais com grades

Daniel Caldeira de Melo, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), relata o que tem visto nos hospitais de custódia. “São estruturas precárias, celas com grades para tratamento, faltam roupas de cama, banheiros, não são ambientes que prezam pela condição humana. Além da ausência de projetos terapêuticos, medicação excessiva e déficit profissional”. Ele avalia que é nesse contexto que deve ser pensado o trabalho das EAPs. “Que a nova roupagem seja amparada pela legislação e pelo diálogo permanente do Ministério da Saúde com todas as instituições da sociedade civil. E devemos pensar em fazer uma inspeção conjunta nacional”.

“A execução penal associada à loucura existe desde 1903. Esse descompasso é significativo. Ficamos perplexos com a revogação da portaria, mas felizmente mudaram o rumo da questão. Os hospitais de custódia mudaram de nome, mas as práticas continuam as mesmas. Porém, temos boas experiência em Goiás, que é o único estado que não tem manicômio judiciário, Minas Gerais e Piauí. Seria bom que todos conheçam essas experiências. Também sugiro uma inspeção nacional nos manicômios  judiciários”, informa Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.

O presidente da Comissão de Saúde do Colégio Nacional de Defensores Públicos, Hiram Santana, reitera que nos delitos que envolvem a saúde mental, cabe ao Estado permitir que essas pessoas sejam inseridas de volta na sociedade. “Devemos incentivar, em um país com tantas desigualdades, o serviço das EAPs. Lutar contra a maré daquilo que a sociedade preconiza, que é o esquecimento dessas pessoas”.

Orçamento

Alexandre Rauber, defensor público Federal, avalia que “a revogação da portaria despertou a necessidade de um novo olhar sobre a saúde pública para essa população, que é pouco ou mal atendida. Um dos motivos que pedia a revogação era a ausência de orçamento próprio, as EAPs compartilhavam o orçamento destinado para as ações básicas de saúde. Sugiro a regulamentação desses serviços, que poderia ser através de um projeto de lei com sugestões de fontes de custeio. Dessa forma, não seria novamente questionado”.

“Todos sabemos da relevância das EAPs e percebemos que, enquanto a Portaria esteve vigente, deveria haver um mecanismo de acompanhamento e troca das boas práticas. Proponho a criação de um grupo de trabalho com a participação de todos presentes, para qualificar as redes de EAP e eliminar desvios de finalidade. Problemas complexos pedem soluções complexas, mas todos os atores do processo devem se comunicar”, afirma Ana Carolina Khoury, Defensora Pública de Pernambuco.

“Males que vêm para o bem”

O subprocurador-geral da República, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Vilhena, afirma que “há males que vêm para o bem, parabenizo o Ministério da Saúde pela revogação da portaria, ainda que impulsionado pela pressão social. Temos alguns questionamentos, como a baixa adesão dos estados a essa política pública e a falta de orçamento específico, porque não parece ser muito cara ao Estado, ao contrário, são custos baixos. Vamos agir em prol das pessoas que possuem transtorno  mental, tanto livres como privadas de liberdade. Concordo com uma nova rodada de inspeções e com a criação de um grupo de trabalho”. Vilhena destaca ainda que “com a atitude do Ministério da Saúde, ele passa a ser um parceiro para unir as 27 unidades da federação, ombreadas com a sociedade civil, para fazer algo melhor do que já foi feito”.

Para Francisca Cabral, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, o diálogo vai fortalecer as políticas públicas. “Nosso movimento tem mais de 30 anos de luta, surgiu em 1987 com uma série de denúncias de violências nos hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários. E nasceu dessas demandas populares, por uma sociedade sem manicômios. Esse tema não se esgota aqui, precisa continuar”.

Também acompanharam o encontro os membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Rogerio Gianinni e o presidente Renan Sotto Mayor. Para Renan, o trabalho do Serviço de Avaliação e acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei “atinge dois grandes preconceitos dos brasileiros, um é a loucura e outro, o conflito com a lei, ambos fora das condições de humanidade”.

Helder Salomão (PT/ES), presidente da CDHM, informa alguns dos encaminhamentos do encontro desta sexta. “O Ministério da Saúde promoverá uma reunião, até meados de agosto, das EAPs e também vai criar um Grupo de Trabalho, com apoio de todas as instituições que estavam aqui e outras também para fazer uma avaliação e levantamento de como atuam as EAPs, organizar inspeção nos locais de custódia,
credenciar novas equipes e articular a implantação de EAPs nas diversas unidades federativas, por exemplo”. Também será feita uma pesquisa para avaliar medidas legislativas de garantia orçamentária para as EAPs e sua implementação nos estados. “Esperamos que esse diálogo seja permanente, porque é através dele que encontraremos respostas para todos os enfrentamentos”.

Edição: Mariana Trindade / CDHM​

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