Especialista relata retrocessos que foram potencializados pela pandemia do novo coronavírus
Por: Nara Lacerda, em Brasil de Fato
Frente ao desafio do combate à covid-19, que atinge comunidades em todo o planeta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstra especial preocupação com as populações indígenas das Américas. Para o governo brasileiro, no entanto, essa preocupação não parece incentivar políticas específicas.
As medidas, segundo especialistas e entidades, deveriam levar em consideração aspectos como a distância entre parte das aldeias e estruturas hospitalares adequadas, a resposta imunológica diferenciada dessas populações e a falta de recursos em geral, que atinge as comunidades tradicionais.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena ( SESAI) informa que realiza uma série de ações interministeriais, como envio de testes e equipamentos de proteção, doação de cestas básicas e preparo de equipes de saúde nas regiões. Mas a leitura é de que elas não são suficientes. Em 15 de julho, entidades indígenas usaram a palavra genocídio para resumir as consequências da falta de um planejamento específico para conter o coronavírus nas aldeias.
Em entrevista para o programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, o antropólogo Paulo Santilli, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que a inação não surpreende, frente ao desrespeito que Jair Bolsonaro demonstra aos povos indígenas desde a campanha eleitoral. Ele vai além, ressalta que o tratamento dado a essas comunidades afronta a constituição.
“A saúde indígena, nas últimas décadas, chegou a estruturar um serviço diferenciado, que levasse em consideração os conhecimentos, as práticas de cura dos povos indígenas. Durante essas últimas décadas tivemos avanços decisivos”, diz ele.
“Em tão pouco tempo, uma questão de meses, chegamos a esse descalabro. Não só da completa deterioração desses serviços, como também de modo geral com o Sistema Único de Saúde.”
Santilli diz que essas populações mais vulneráveis é que vão sofrer os maiores impactos e que “o mínimo que se pode esperar de um candidato que foi eleito nas urnas é o cumprimento da Constituição, conforme o juramento da posse”.
A Constituição de 1988 determina que compete à União proteger e respeitar as comunidades indígenas, com demarcação de terras, respeito a costumes e culturas, entre outras obrigações. As discussões para elaboração dessas normas representaram uma mudança profunda no tratamento dado às comunidades tradicionais no Brasil.
Em sua mais recente decisão sobre esses povos, Jair Bolsonaro sancionou o Plano Emergencial para Enfrentamento à covid nos territórios. Dezesseis pontos foram vetados, entre eles a obrigação do governo de oferecer acesso a água potável e garantir a distribuição de produtos de higiene e limpeza, a elaboração de ações específicas para ampliar os leitos hospitalares, a liberação de verba emergencial para a saúde indígena, projetos de instalação de internet nas aldeias, distribuição de cestas básicas e o acesso facilitado ao auxílio emergencial.
Paulo Santilli avalia que a postura do governo tem semelhanças com políticas assistencialistas e que remetem ao Brasil colonial.
“Quinquilharias, questões perfuntórias ou de aparência e que se tornam muito graves nesse momento. Não só porque foram superadas essas políticas escancaradamente paternalistas, tutelares, de um momento anterior à Constituição, em que os índios eram considerados como crianças e loucos incapazes, eram tutelados. Em um contexto desse, de epidemia, as medidas protetivas estão desvirtuadas. Então sim, o termo é esse: genocídio.”
Ainda nas palavras do antropólogo, não é possível mensurar a proporção dos estragos que vêm sendo causados às comunidades indígenas.
“Num período desde a constituição, se reverteram antigas práticas também genocidas. Durante mais de 400 anos, a população indígena, que era estimada em torno de 4 a 6 milhões de habitantes, chegou ao final dos anos 1970 com algumas dezenas de milhares.
“Foi a partir de então, com políticas públicas de vacinação, medicina preventiva, reconhecimento de direitos territoriais, que esse declínio foi revertido. Diante do brutal retrocesso atual, não há como pensarmos em remendar, não há como fazer retoques.”
Números questionados
Como se não bastassem as políticas consideradas equivocadas, os números de mortos e infectados pela covid entre indígenas apresentados pelo Ministério da Saúde também são questionados. De acordo com dados da Secretaria Secretaria Especial de Saúde Indígena da pasta, até o dia 29/07 foram confirmados 15.012 casos e 276 mortes nas aldeias.
No entanto, os números levantados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mostram cenário mais grave, contabilizam 19.773 infectados e 590 óbitos.
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Ações do governo não protegem aldeias contra a covid. – Reprodução