Surto de coronavírus que matou Lucas Trindade em presídio superlotado de Minas poderia ter sido evitado

Unidade-modelo com capacidade para 84 presos foi inaugurada há um ano, mas segue vazia

Por Alice Maciel, Laura Scofield, Agência Pública

“Nenhum presídio é indicado para qualquer tratamento de saúde devido à estrutura precária e aglomeração de pessoas, e o risco de contágio por Covid-19 existente nesta unidade é altíssimo devido a esses fatores.” A conclusão é do diretor-geral do presídio de Manhumirim, Leonardo Proba Sena, em ofício enviado no dia 15 de julho à Vara de Execução Penal do município mineiro.

O surto de coronavírus na unidade, que contaminou 75% dos presos e no dia 4 de julho matou Lucas Morais de Trindade, de 28 anos, poderia ter sido evitado ou pelo menos mitigado. Duzentos e dezessete detentos ocupam o espaço com capacidade para 193. Há um ano, no entanto, foi inaugurada na cidade uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), modelo de humanização do sistema carcerário, com 84 vagas. Mas ela permanece vazia.

Segundo a presidente da instituição, Renata Elisa Portes Freitas Rocha, as transferências não ocorreram porque a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) não assinou o convênio que firma a parceria. Ela relata que a Apac “está prontinha” para receber os detentos. “A realidade é essa: estragando, poeira para todo lado”, lamenta.

Inaugurada no dia 7 de junho de 2019, a unidade contou com investimento de R$ 2 milhões do governo do estado para a construção. Outros R$ 900 mil vieram da aplicação de penas de prestação pecuniária e de transações penais.

Depois que o vírus contaminou 162 detentos e tirou a vida de Lucas, a Apac “deve entrar em funcionamento nas próximas semanas”, informou a Sejusp à reportagem. A secretaria não justificou o motivo da demora em assinar o convênio.

“O presídio de Manhumirim possui celas completamente inabitáveis, escuras, úmidas, sem entrar ar”, relata Mariana*. Servidora pública desde 2015, ela trabalhou na unidade prisional até junho – quando a equipe de saúde começou a fazer os primeiros testes para a Covid-19 nos presos.

A falta de estrutura do local para evitar o surto e a negligência do governo de Minas com a saúde e a vida dos reeducandos ficaram evidentes durante reunião entre representantes do presídio com profissionais da Secretaria de Saúde do município, realizada dia 24 de junho. A reportagem teve acesso ao relatório do encontro.

Funcionários da unidade relataram que, devido à estrutura física do prédio, não seria possível separar os presos com sintomas respiratórios. Contaram ainda que eles não usavam máscara dentro das celas e a instituição não possuía equipe de saúde completa para avaliação dos detentos.

O presídio está sem médico e o reforço para atender os presos veio da cidade e dos municípios vizinhos. Por meio de nota, a Sejusp informou à reportagem que o processo para a contratação de novos médicos está em fase final.

Apesar de a saúde dos presos ser de responsabilidade do estado, foi a prefeitura de Manhumirim que determinou a triagem no presídio e forneceu os testes rápidos, feitos entre os dias 25 e 28 do mês passado.

Do total de 217 presos – todos testados –, 162 tiveram resultado positivo para o vírus e 55, negativos. Após as testagens, eles foram divididos seguindo os critérios: positivos assintomáticos, positivos sintomáticos, negativos assintomáticos, negativos sintomáticos. A unidade possui apenas um pavilhão, ou seja, um corredor para todas as celas. Nove servidores foram afastados por terem sido contaminados.

De acordo com a Sejusp, atualmente não há nenhum preso com diagnóstico positivo para a Covid-19 no presídio de Manhumirim, mas familiares dizem que sim. “Na unidade, enfermeiros monitoram custodiados constantemente, aferindo temperatura, oxigenação e observando eventuais manifestações da doença”, acrescenta a secretaria.

Informações sobre a falta de estrutura do presídio e sobre a saúde dos presos foram repassadas à Secretaria de Estado de Saúde durante visita técnica feita pelo Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde de Minas Gerais (Cievs-MG) à unidade prisional no dia 30 de junho, mas nada mudou. “A Sejusp está numa política de completo descaso e negligência com os presídios. O governo Zema não fez absolutamente nada diante daquela situação”, observa Carolina Lemos, advogada popular e membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas.

Todos os documentos citados na reportagem vieram à tona depois que, no dia 6 de julho, a Frente e a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade do Estado entraram com pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de Minas Gerais solicitando a prisão domiciliar dos detentos contaminados pela Covid-19. Conforme contou Carolina, o desembargador, em sua decisão, solicitou à Vara de Execução Penal informações detalhadas sobre a unidade e a situação processual de cada detento, com objetivo de fazer uma análise individualizada.

Departamento Penitenciário divulgou informação incorreta sobre saúde dos presos

Os documentos revelam que o Departamento Penitenciário de Minas (Depen-MG) divulgou informação incorreta ao dizer, em nota publicada em suas redes sociais no dia 29 de junho, que todos os presos diagnosticados com a doença estavam assintomáticos.

De acordo com relatório encaminhado pela equipe de saúde do presídio à Superintendência Regional de Saúde de Manhuaçu – órgão vinculado à Secretaria de Estado de Saúde – no dia 24 de junho, de 26 detentos avaliados, 19 foram identificados como sintomáticos.

“Nos dias 25/06/2020 e 26/06/2020 continuamos a triagem dos reeducandos, onde verificamos um número cada vez mais crescente de sintomáticos […]”, informam no relatório ao qual a Agência Pública também teve acesso.

Reprodução/Depen MG

Pelo menos 50 presos apresentaram sintomas da Covid-19, de acordo com levantamento feito com base nos laudos médicos realizados pelos autores do habeas corpus coletivo.

“Cabe salientar que há variações nos sintomas da Covid-19, no decorrer do tempo e de pessoa a pessoa. A ciência ainda busca explicações para os efeitos da doença. Todas as informações prestadas são verídicas e relacionadas ao dia da publicação”, justifica a Sejusp.

Ainda de acordo com o relato da equipe de saúde do presídio, alguns presos foram encaminhados ao pronto-socorro da cidade e dois foram internados no hospital de Manhuaçu, cidade vizinha a Manhumirim.

É o caso, por exemplo, do filho de Marta*, que foi para o hospital “umas quatro, cinco vezes”. “Ele estava no hospital com diarreia, dor de cabeça, pressão alta”, conta. Ela diz que nunca foi avisada das internações. “Eu só fico sabendo quando o advogado vai atrás ou um conhecido me liga e me fala que ele estava lá [no hospital]”, diz. É ela quem teve que comprar a medicação do filho. Na receita, azitromicina, ivermectina e cloroquina – medicamentos sem comprovação científica de combate à Covid. “Ele só não tomou cloroquina porque eu não achei aqui para comprar e fiquei na dúvida também se deveria dar.”

Segundo a advogada Carolina, além de divulgar informação falsa, o Depen-MG demorou para emitir um comunicado público. “Só foi feito depois das primeiras manifestações dos familiares, ou seja, depois de pressão feita ao Depen. É extremamente preocupante não haver um canal público que diga a quantidade de testes realizados, a quantidade de pessoas contaminadas no sistema. É uma coisa mínima de transparência, que a gente não tem aqui em Minas e que existe em outros estados onde tem um portal público que qualquer pessoa pode acessar”, destaca.

Familiares reivindicam mais transparência

Apenas em 2 de julho, sete dias após o início das testagens, foi divulgada a lista com o nome de todos os detentos contaminados. Os parentes ficaram sabendo do surto de Covid por meio de um vídeo postado na página da prefeitura na noite de 26 de junho, mas o governo de Minas continuou omitindo informações para as famílias dos detentos.

Gabriela*, mãe de um jovem preso provisoriamente por tráfico de drogas, lembra que no mesmo dia havia ligado pela manhã para a unidade prisional depois de ter ficado sabendo do caso de um doente, mas negaram a ela que ali havia um surto de Covid-19. “Ligamos na unidade e eles disseram que era mentira. Quando foi à noite, veio uma nota que tinham 43 presos confirmados para Covid-19”, relata. Segundo ela, no dia seguinte alguns familiares foram para a porta do presídio cobrar informações sobre o estado de saúde dos presos. “Nem o diretor nem a assistente social saíram para nos dar uma satisfação”, lembra.

Lucas Trindade, preso preventivamente desde 2018 pelo porte de menos de 10 gramas de maconha, teve três pedidos de habeas corpus negado. Ele faleceu em decorrência do coronavírus no presídio de Manhumirim – Arquivo pessoal

De acordo com a Sejusp, “todas as informações disponíveis sobre o estado de saúde dos detentos de Manhumirim vêm sendo repassadas às famílias com máxima transparência”. A pasta informou que a assistente social faz contato com os familiares e o setor de enfermagem busca atender as ligações recebidas, respondendo às dúvidas e aos questionamentos.

A reportagem, no entanto, conversou com familiares de oito presos e todos reclamaram da dificuldade de conseguir informações sobre seus entes queridos.

A tia do ex-detento Lucas Trindade, Marilda Matias Morais, por exemplo, contou que não foi contatada pelo presídio para informar que seus sobrinhos haviam sido contaminados. O irmão de Lucas, Leonel de Morais Fialho, de 31 anos, detido na mesma unidade, também foi diagnosticado com a Covid-19 no dia 26 de junho.

Ela relata que a lista com os nomes dos presos doentes foi repassada a ela por uma amiga, pelo WhatsApp. Dois dias depois, em 4 de julho, Lucas faleceu.

O jovem foi diagnosticado com a Covid-19, por meio do teste rápido, no dia 25 de junho. A doença consta no atestado de óbito como causa da morte, mas a Sejusp alega que o motivo da morte ainda está sendo investigado pela Polícia Civil.

Lucas estava preso preventivamente desde 2018. Ele foi condenado por tráfico de drogas por menos de 10 gramas de maconha encontrados no bolso de sua calça e teve negado três pedidos de habeas corpus.

No relatório da equipe de saúde do presídio de Manhumirim, há o relato de dois médicos do momento em que o jovem passou mal.

Trecho do relatório da equipe de saúde

Temendo mais uma tragédia na família, após a morte de Lucas, Marilda telefonou diversas vezes para saber como estava Leonel. Ela só conseguiu contato com o sobrinho na última sexta-feira, dia 24.

Detido em abril, em meio à pandemia, Leonel foi diagnosticado com Covid-19 em 26 de junho, mas no resultado do seu exame consta que ele já estava com sintomas da doença desde o dia 18. Ele apresentou dores no corpo, falta de ar, tosse, além de ter tido picos de pressão depois que o irmão morreu.

Pública teve acesso aos laudos médicos de Leonel dos dias 4 e 6 de julho, entregues à Justiça após o pedido de habeas corpus coletivo, acompanhado de todos os laudos dos outros presos. Marilda afirma, no entanto, que em momento algum foi informada disso.

“Eles não respeitam as famílias, não passam a informação correta”, indigna-se Mônica*, mulher de outro detento que foi contaminado. Segundo ela, a informação que sempre chega aos familiares é que “está tudo bem, que está tudo sob controle”. “Mas a gente sabe que não está porque, se tivesse sob controle, não estava indo preso para o hospital todo dia. Eles falam que todos que tiveram a doença estão curados, mas não tem exame novo que eles fizeram. E a gente fica sabendo por fora de presos que ainda estão doentes, indo para hospital”, ressalta.

Em ofício encaminhado à Vara de Execução Penal de Manhumirim, a Secretaria Municipal de Saúde informa que o prazo final de acompanhamento dos detentos se encerrou no dia 12 deste mês, com base na orientação da nota técnica do Centro de Operações de Emergência em Saúde de Minas, que determina isolamento e monitoramento de 14 dias para pacientes com teste rápido positivo para a Covid-19. “Informamos que iremos lançar no Boletim Epidemiológico Municipal, os casos como recuperados”, escreve o órgão. Os presos, no entanto, não fizeram novos testes para confirmar a recuperação.

Preso transferido em meio à pandemia foi o primeiro diagnosticado com o vírus

O primeiro reeducando identificado com Covid-19 no presídio de Manhumirim chegou transferido no dia 19 de maio, com autodeclaração de que estava sem sintomas, mas não foi testado. Em 23 de junho, ele foi diagnosticado com exame positivo feito no Hospital César Leite, em Manhuaçu, onde ficou internado.

O Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (Ceresp) de Ipatinga, de onde ele veio, registrou 35 casos até 21 de julho, de acordo com boletim epidemiológico do Cievs-MG.

A transferência de presos entre as instituições penais em Minas cresceu 60% nos meses de abril e maio, em relação à média habitual. Os dados são da Comissão de Assuntos Penitenciários da Ordem dos Advogados do Brasil, que pediu esclarecimentos ao governo sobre os motivos dessa movimentação em plena vigência das medidas protetivas contra o coronavírus.

No presídio de Manhumirim, o último preso transferido chegou em 18 de junho, e já havia registro de detentos com sintomas desde o dia 16.

De acordo com a Sejusp, cerca de 98% das transferências feitas no sistema prisional mineiro são para cumprir protocolo para controlar e prevenir a disseminação da Covid-19. O protocolo prevê o isolamento de 15 dias para os novos presos em unidades selecionadas para funcionarem como centros de triagem.

“Outras transferências, durante a pandemia, são excepcionalidade e são realizadas por questões de segurança e para garantir a ordem e estabilidade do sistema prisional”, acrescentou a Sejusp por meio da assessoria de comunicação.

*Usamos nome fictício de familiares dos presos e profissionais que solicitaram o anonimato temendo retaliações.

Crédito da foto: APAC

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