“Além das vidas ceifadas, os indígenas seguem com outros desafios paralelos à crise pandêmica: buscam reverter as invasões de suas comunidades com barreiras sanitárias pois estão em estado crítico. Um alerta foi dado no dia 10 de junho 2020 e depois no dia 25 do mesmo mês. Marãiwatséde é a terra A’uwe mais invadida e desmatada, o que impacta no seu cuidado frente à pandemia especialmente na desconfiança em relação às intenções do Estado, mesmo sabendo do seu direito à saúde”, escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
A pandemia pelo corongo [1] (novo coronavírus, covid-19 etc.) tem dizimado milhares de vidas humanas e não-humanas ao redor do mundo. O normal transfigurou-se, o direito de ir e vir passou a ser limitado para todos: desde as pessoas e mesmo os meios de transportes estão restritos para necessidades vitais. Fomos impedidos temporariamente de nos deslocarmos até para nossos locais de trabalho, e até mesmo barcos de cargas estão em alto mar impedidos de aportar por causa de restrições portuárias. Voltar aos países exportadores muitas vezes traz grandes prejuízos. Para além das questões econômicas refletidas em todo o globo, vivemos períodos de intensificação das desigualdades sociais, e aqui levantamos questionamentos sobre as condições sócio-culturais políticas e econômicas que predispõem populações de maior vulnerabilidade e de riscos evidentes, de uma forma mais dramática como os povos indígenas, moradores de rua, presídios e periferias das grandes cidades no Brasil.
Tais condições escancaram as estruturas socioeconômicas perversas que se agravam nos tempos atuais. Um dos lugares onde os casos de infectados pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) cresceu substancialmente é no sistema prisional brasileiro: o que foi visto foi um número de 82% a mais de infectados em 30 dias, pois o sistema registrou 19.683 casos e 150 óbitos pelo corongo, conforme noticiado em 07/08/2020 [2]. No sistema socioeducativo, o número de contágio e mortes entre servidores registrou um crescimento de 54,8% desde o início do período. Entretanto, esses dados são relativos uma vez que em São Paulo, por exemplo, o registro de ocorrências foi ampliado devido a inclusão de testes rápidos nos processos de contagem – fato este que não ocorreu em todos os Estados do país.
De acordo com a Prefeitura de São Paulo, a população negra e parda da capital tem 62% mais chances de chegarem a óbito do que a população branca. Das mortes, 5.938 são pessoas brancas, 913 são pessoas negras, 220 são amarelas, 2.326 se consideram pardas e sete são indígenas (O Estado de S. Paulo, 06/08/2020). [3]
O mestre antropólogo Doutor João Pacheco de Oliveira Filho, mostrou que entre os pardos uma boa porcentagem refere-se aos indígenas que, por uma série de circunstâncias, não estão entre as cifras dos residentes em Terras Indígenas. Os dados mostram também que essa população tem um índice de letalidade de 3 a 4 vezes maior que outra parcela da população brasileira, mas também variando enormemente de etnia para etnia e de aldeia para aldeia.
Sabemos que a doença chegou na nação brasileira por meio da chamada elite brasileira que viajavam para o exterior e retornavam para o país acompanhados, muitas vezes, do corongo a tira colo. Esta mesma elite responsável pelo transporte do vírus, quando precisa de tratamento facilmente tem condições de contratar uma UTI móvel e, dessa forma, consegue viajar para centros de excelência para o tratamento de infectados graves pelo corongo. Por outro lado, os pobres e desfavorecidos só possuem o SUS. Evidenciado esse contexto, conclui-se que a pandemia de modo algum é democrática, pois atinge de modo diferenciado as mais diversas camadas das populações, sempre com uma relação pessoal com cada pessoa, uma vez que as reações são muito diferenciadas, conforme pode ser observado nos noticiários. Além da crise biológica causada pelo vírus, o que tem sido evidenciado no nosso cenário é uma clara crise étnico-racial, uma crescente etnofobia [4].
A incorporação de novas tecnologias como formas de vigilância não é um assunto comum a todos os países, autoridades ou instituições. No Brasil, a descrença por parte da população, especialmente os indígenas que estão sendo violados nos seus direitos mais fundamentais, em relação ao governo que trocou de ministro da saúde três vezes desde o início oficial da pandemia no país e estamos sem essa figura central na condução de uma agenda eficiente no combate ao corongo, sugere que poucas medidas estão sendo, de fato, eficazes: não há controle, não há vigilância, e tudo o que se percebe é uma população movida pelas (in)certezas diante do que ainda virá.
O “coronavírus” foi identificado, inicialmente, em Wuhan, província de Hubei, China (HUANG et al, 2020), logo, a culpa é do povo de olhos puxados do lado de lá, mas parece que querem penalizar também os do lado de cá. Diversos casos de etnofobia foram registrados ao redor do mundo. No Japão, a hashtag #ChineseDon’tCometoJapan (Chineses não venham ao Japão) esteve entre as mais comentadas na rede social Twitter no mês de fevereiro. Claro que essas formas de racismo proliferam em terreno fértil, pois as relações entre China e Japão são tensas de longa data. Em contrapartida, uma reação foi vista por parte dos descendentes de chineses que vivem na França: uma campanha com a hashtag #JeNeSuisPasUnVirus (“Eu não sou um vírus”) foi iniciada no mesmo mês, para que as pessoas pudessem compartilhar as barbáries vividas em decorrência de sua etnia oriental.
Aqui no Brasil essas reações contra os chineses ganham conotações diferentes pois está no governo pessoas que chegaram lá com forte campanha contra o comunismo e a China é vista como tal por grande parte dos que apoiam o governo. Em geral aparecem também justificações nada comprovadas que o corongo foi elaborado em laboratório para que a China pudesse ser a economia capitalista hegemônica no mundo.
Um importante contorno de etnofobia encontramos em relação às já mencionadas populações indígenas que têm sido severamente castigadas pelo corongo nas mais diferentes formas. A falta de ação do governo brasileiro frente à crise de Covid-19 que assola os povos indígenas levou a um apelo para uma intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF) visando prevenir o extermínio indígena, nomeado por muitos como genocídio [5]. Até o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi acionado para prevenir que a pandemia extermine povos indígenas com o apoio da professora de Harvard, Kathryn Sikkink.
Certo é que o poder executivo se utiliza da pandemia para alargar as prerrogativas da incompetência, talvez uma política de Estado proposital: percebemos que o governo age de forma eficaz apenas quando se trata da reforma da Previdência, no auxílio aos bancos ou mesmo no reforço dos privilégios dos militares. Os 16 vetos no Projeto de Lei para auxílio aos indígenas é um evidente exemplo desse descaso com outras questões latentes agravando sua importância. Pode-se citar ainda, a distribuição de cloroquina e o incentivo do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
Sebastião Salgado [6] e outras pessoas de renome nacional e internacional fazem campanha A’uwe Tsari (SOS Xavante) e apelam ao STF por ações em favor dos povos originários do Brasil. No dia 29 de julho de 2020, os dados oficiais eram 15 mil indígenas contaminados e 276 óbitos. A subnotificação é gritante pois nessa data a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) registrou 19,7 mil casos infectados e 590 óbitos. Ademais, acrescentam que eles sabem exatamente quem são: são pessoas que possuem nomes, famílias, etnias por eles registradas, e não meramente mais um número na tabela.
Aqui queremos observar mais de perto o caso dos A’uwe (Xavantes) com 51 óbitos [7]. A pandemia está atingindo essa etnia de modo mais dramático, pois além de ser a maior etnia – com cerca de 22 mil pessoas – é também o maior número de perdas de vidas para o corongo no Mato Grosso.
Além das vidas ceifadas, os indígenas seguem com outros desafios paralelos à crise pandêmica: buscam reverter as invasões de suas comunidades com barreiras sanitárias pois estão em estado crítico. Um alerta foi dado no dia 10 de junho 2020 e depois no dia 25 do mesmo mês [8]. Marãiwatséde é a terra A’uwe mais invadida e desmatada, o que impacta no seu cuidado frente à pandemia especialmente na desconfiança em relação às intenções do Estado, mesmo sabendo do seu direito à saúde.
Diante da pressão internacional, o governo criou uma Força Tarefa através do Ministério da Defesa, Saúde, Justiça e apoio da Prefeitura de Barra do Garças nas aldeias indígenas dos polos São Marcos e Campinápolis, o que foi chamado Missão Xavante que não foi para Marãiwatséde no dia 03/08/2020, pois uma parcela da população não aceitou essa “invasão” militarizada. Duas Unidades Básicas de Saúde construídas pela Prefeitura de Barra do Garças nas aldeias serviram de base de apoio para médicos e demais agentes de saúde. Vale recordar que a população não-indígena da cidade de Barra do Garças estava indignada com os indígenas que ocupavam os leitos os leitos disponíveis para tratamento de covid-19, um caso claro de racismo, como se os indígenas não tivessem direito ao atendimento, não fossem cidadãos do mesmo país.
Os A’uwe são precisos na Terra Indígena São Marcos, a mais atingida: “informa que apenas aceitará a realização das atividades mediante testagem para covid diante os indígenas. […] Informamos ainda que não aceitaremos prescrição e distribuição do medicamento cloroquina / hidroxicloroquina.” Bem informados, os A’uwe (Xavantes) impuseram uma agenda no trabalho já realizado, pois estavam cientes de que a hidroxicloroquina é um medicamento sem eficácia cientificamente comprovada, e possui efeitos colaterais difíceis de controlar, ainda mais se a pessoa fica na aldeia e os médicos voltam para suas cidades. Contudo, os dados oficiais no relatório dessa primeira etapa da Força Tarefa falam do atendimento médico e distribuição de 11 mil medicamentos, sem informar quais, mas com um recado claro “sendo a maioria para diabetes e hipertensão”. A equipe de 24 profissionais de saúde das Forças Armadas levara atendimento especializado e reforçara a atuação da saúde nas aldeias. Ao todo, foram 1.578 atendimentos da etnia A’uwe realizados com o apoio de equipes do DSEI Xavante e Secretarias Municipal e Estadual de Saúde. Durante a ação, foram realizados testes de COVID-19. Cerca de 149 A’uwe realizaram o exame rápido, que é feito com a coleta de sangue no dedo, e desse total, 94 resultados foram negativos, 27 foram testados positivos e 26 resultaram em IGM negativo e IGG positivo para o “novo coronavírus”, o que significa que a pessoa já esteve infectada com o vírus, mas já está curada.
As próximas etapas foram abortadas. Estava previsto acontecer de 3 a 9 de agosto o trabalho na área do Polo Base Marãiwatséde, mas foi enviado esse documento mostrando uma postura clara diante dessas ações que são complexas e tem pouca efetividade na continuidade dos trabalhos. Depois de três dias reunidos, os A’uwe decidiram e escreveram o comunicado que segue:
Os A’uwe tinham pedido auxílio urgente e providências já em Maio, no pico da pandemia, quando uma criança ficou infectada no Hospital, e houve dificuldade de comunicação com o DSEI Xavante, mas não veio. Por isso os avós e parentes abriram o caixão e muitos ficaram infectados. Quem auxiliou a SESAI local foram as prefeituras, a OPAN e o CIMI através dos salesianos. Um dos motivos certamente é o medo do remédio de “branco” que vai causar a morte; uns falam que a “vacina” vai matar os A’uwe (Xavantes); outros falam que o presidente quer matar os Xavantes com a cloroquina. Contudo, séria foi a notícia que saiu no dia 31 de julho de 2020: Produtores rurais pedem na Funai anulação de demarcação de terra Xavante homologada em 1998 [9]. A demarcação da Terra Indígena Marãiwatséde, nos municípios de Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia (MT), foi homologada em 1998, o que forçou a mudança no traçado da BR 158, pois não vai passar mais por dentro dessa Terra Indígena Marãiwatséde. Os produtores rurais querem a anulação do decreto presidencial que homologou a Terra Indígena e a indenização dos invasores que construíram imóveis ali [10]. Outro motivo que parece relevante, pois está dando bons resultados, é que os indígenas estão fazendo uso da medicina tradicional e de homeopatia para reforçar sua imunidade.
As ações da SESAI em parceria com o Ministério da Defesa e outros, conforme anunciado pelo governo federal, após determinação do STF, foram feitos de forma ostensiva “para inglês ver”. No dia 27 foram chegando aviões da FAB com equipes de saúde e medicamentos às terras A’uwe e com equipe de divulgação para os meios de comunicação. Do dia 27 ao dia 02, estarão atuando nas regiões de Campinápolis e de São Marcos. Do dia 03 ao 08 de agosto seria na T. I. Marãiwatsédé, mas dirigiram-se ao Araguaia para atender aos Iny (Karajás), pois os A’uwe ali dispensaram. No retorno, de 10 a 16, seria nos municípios de Alto Boa Vista e General Carneiro e nas regiões de Sangradouro, Maribu e Meruri (povo Bóe-Bororo), no Polo Base Sangradouro do DSEI Xavante, mas estão solicitando que o secretário da SESAI, Robson Santos da Silva acompanhe os trabalhos porque tem confiança nele. Ele fez um apelo no dia 3, via vídeo para os A’uwe de Marãiwatséde aceitarem a Força Tarefa, dizendo que não podia estar presente, pois iria para Dourados (MS).
O impasse está dado, pois existem rumores que a Força Tarefa vai tentar entrar na Terra Indígena Marãiwatséde nesse retorno. Parece que a postura explícita dos A’uwe não convenceu quem acha que o certo é continuar a colonização, pelo “convencimento” ou pela imposição da força das armas e da lei. O Procurador do Ministério Público Federal de Barra do Garças, “Everton”, fez dois despachos e criou uma “bronca” com os A’uwe, chamando-os de “irresponsáveis”, trocando os pés pelas mãos, pois deduz que os A’uwe estariam negando essa Força Tarefa por causa dos arrendamentos que possuem na Terra Indígena para o gado de fazendeiros vizinhos. Mas, isso não procede, pois esse “ajustamento de conduta” foi uma negociação entre as partes, quando os fazendeiros saíram da Terra Indígena, na presença do MPF. Certo é que esse povo guerreiro está no “olho do furacão”, procura decidir e manter-se de pé quando a política do governo federal é de clara invasão das Terras Indígenas, liberá-las para o agronegócio, mineração e pecuária.
Os rituais tradicionais culturais A’uwe, sobretudo de cura e afastamento dos maus espíritos, foram intensificados. O Padre salesiano Eloir Inácio de Oliveira informou que os A’uwe da aldeia Telavive, na T. I. Parabubure, adiaram o torneio de futebol que tinham programado para julho e fizeram um almoço comunitário para os habitantes da própria aldeia no dia marcado para o torneio.
Os Xavante dessa aldeia foram os primeiros e os únicos, até agora, que construíram recentemente uma cerca com folhas de babaçu, com um portão de controle da entrada. Não estão deixando entrar nem mesmo a equipe de saúde, porque desconfiam que os membros desta podem estar contaminados; só a deixam entrar em alguns casos.” (Nova Xavantina, 28 de julho de 2020).
Outros detalhes etnográficos interessantes estão relacionados com os sepultamentos e as percepções dos caixões dos falecidos pelo corongo que vale a narrativa:
Há comentários e suspeitas entre os Xavante de que órgãos internos do casal Xavante Eduardo Tseremeywa Orebewe e Ângela Ro’otsitsimro Tsupto, pais do Crisanto Rudzö Tseremeya, da aldeia Três Marias, na T. I. Parabubure, falecido por COVID-19, teriam sido retirados no hospital antes de serem despachados para o sepultamento na aldeia. (Nova Xavantina, 28 de julho de 2020).
Outros casos estranhos teriam acontecido na aldeia Córrego da Mata, na T. I. Parabubure e na aldeia central de Marãiwatséde:
Os Xavante que carregaram o caixão perceberam que o mesmo estava muito pesado. Teriam aberto o caixão e encontrado muita água junto com o corpo. Também na aldeia Marãiwatsédé, os Xavante que carregavam o caixão da anciã Mônica até à cova teriam estranhado o exagerado peso do mesmo, diferentemente dos outros que já tinham carregado. Não o abriram, mas desconfiaram que poderia haver outras coisas no caixão e não o corpo. Esses comentários e desconfianças estão acontecendo entre os Xavante, com relação aos falecidos por COVID-19. (Nova Xavantina, 28 de julho de 2020).
Certo é que o fato dos caixões virem lacrados e haver a interdição de abertura e do velório conforme a tradição, gera grande desconforto e muitos impasses, resultado da forte dimensão sagrada mantida pelos A’uwe. Contudo, para saber que os órgãos foram retirados ou que havia água dentro do caixão, certamente esses caixões foram abertos.
Existem manifestações depois da publicação de áudio e vídeo preconceituosos e racistas contra os indígenas divulgados por WhatsApp contra os Bóe (Bororos) e A’uwe na região do Distrito de São José do Couto, município de Campinápolis [11] e General Carneiro. Libério Uiagumeareu (Bóe), formado em Direito pela UFMT, denunciou essa difamação, calúnia e discriminação junto ao Ministério Público Federal e à Procuradoria Geral da República.
O ex-ministro da Saúde e deputado federal, Alexandre Padilha (PT), falou dos dois pilares centrais que aumentaram o número de mortes, as fakes news e a falta de uma direção unificada do governo no enfrentamento da crise sanitária, e acrescentou: “Dentre essas 100 mil mortes, com certeza muitas eram evitáveis [12]”. Chegando aos 100 mil mortos, o governo minimiza a contaminação pelo corongo e só quer “tocar a vida” sem uma análise mais aprofundada: por isso o governador Doria é enfático: “Na pandemia, o presidente está sendo um fracasso”.
Os indígenas tomam várias iniciativas e o sistema tradicional de diagnóstico e tratamento das doenças é acionado e produz ótimos resultados. Os estudantes indígenas na UFMT fazem o programa Áudiozap Povos da Terra como um meio de divulgação mesclando o português e as línguas de cada etnia para alertar de forma criativa a respeito da importância de ficar em casa e lavar as mãos e como fazer de forma adequada com sabão e água como prevenção, além de evitar o costume de colocar as mãos na boca, nariz e olhos.
Em março, eram vistas postagens críticas sobre a polifonia no mundo, e especialmente aqui no Brasil, algo tão elementar, mas que nem hoje, no dia 8 de agosto de 2020, ainda conseguimos resolver. Estava difícil rastrear a origem de muitas das imagens que chegaram até nós de diversas formas, a maioria via WhatsApp sem fontes e sem autoria clara para que pudéssemos indicar as fontes, tudo parecendo fake news. Temos a mesma dificuldade para rastrear o corongo, para saber se essa espécie de vírus foi criada em laboratório (hipótese que já foi descartada pelos cientistas, mas que continua nos fake News atormentando os brasileiros) ou foi uma mutação de um vírus que veio dos morcegos em Wuhan (China). Além disso, esses vírus que produzem epidemias encontram novas variantes inusitadas, agora em 2020, mas ficaram conhecidos durante os anos duros no Brasil: do tempo dos Bandeiras para apresar índios e levá-los como escravos, da Marcha para Oeste dos Governos de Vargas e da ditadura militar (1964 a 1985) que levaram à morte grande parte da população indígena.
A primeira morte causada pelo corongo ocorreu em 11 de janeiro de 2020. Com uma população que ultrapassa a casa dos bilhões, a China tem que cuidar dos seus e a doença atingiu mais de 2700 pessoas até 30/01/2020 e chegou ao número de 80 mortes por conta da pandemia. As informações que temos seis meses depois é que na China os infectados chegaram a cerca de cem mil e as mortes a 4.643. Parece evidente que aqui temos um comportamento diferente na condução dos dois países, fato que foi criativamente ressaltado em um vídeo onde o corongo brasileiro fala ao telefone com o corongo chinês [13].
Após a primeira morte oficial em decorrência da Covid-19, no dia 12 de março, a cada dia mais famílias dizem adeus sem velórios e com enterros apressados porque estamos em isolamento social, o que deixar feridas abertas que não sabemos se poderão ser suturadas para essas milhões de pessoas que atravessam, ao mesmo tempo, esse intenso processo de perdas no Brasil sem os ritos que fazem o suporte religioso, social e cultural para as 100 mil pessoas morreram até o dia de hoje. E choca os dados de que a cada 100 mortes por corongo, 14 são de brasileiros.
A naturalização desse número tão alto de vítimas no Brasil está misturada com dados equivocados sobre a pandemia e 100 vezes que Bolsonaro minimizou essa pandemia [14]. As sequelas físicas e emocionais são imensuráveis para os que passam pela intubação nas UTIs e sobrevivem.
Isso também está relacionado à subnotificação de números. Ao momento em que alguém ritualiza essas mortes numa praia, por exemplo, e outra pessoa vai lá e destrói. Tem formas no nosso tecido social de desmentir que houve mortes ou que a dor é significativa que são brutais, gritantes e eu diria criminosas. [15]
O Brasil saiu do mapa da fome em 2014, mas as estimativas da Oxfam, até o fim de 2020 é que entre 6,1 mil e 12,2 mil pessoas poderão morrer diariamente de fome no planeta e um sinal de alerta é que nós estamos aumentando drasticamente o número de moradores de rua. O Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) estimam o aumento da fome no planeta, 270 milhões de pessoas estarão em situação de crise de fome antes do fim do ano, pois o corongo está lançando milhões de pessoas na pobreza extrema.
Notas do autor
[1] Este jeito popular de falar corongo ficou popularizado (outros falam mamonavírus) depois que uma pessoa em situação de rua assim se expressou e viralizou na internet, como se tivéssemos dado um apelido para o “bicho” que nos assola. Para mais informações acessar aqui. Alguns áudios que não mostram as pessoas são grosseiros e hostis aos chineses, com a desculpa de fazer humor: #2 Áudios Engraçados do WhatsApp sobre o Coronavírus (em 27/03/2020), ver aqui.
[2] Fonte disponível aqui.
[3] Capital de São Paulo tem, sozinha, 10 mil óbitos; 1 em cada 10 mortes do País. Disponível aqui. População preta e parda tem 37,5% mais chance de óbito em São Paulo, diz Covas. Disponível aqui.
[4] Além de vivermos em um mundo que passa por uma crise aguda grave (Boaventura de Souza Santos, 2007), entendemos que a doença pode ser descrita como “um fenômeno biocultural, uma mistura de elementos independentes da vontade humana e de elementos elaborados pelos homens” (Löwy, 2006 p. 19). Dessa forma, para além de uma doença meramente biológica, nos vemos diante de um vergonhoso cenário de crises étnico-raciais.
[5] STF pode prevenir extermínio indígena. Disponível aqui.
[6] Sebastião Salgado apela ao STF por expulsão de invasores de terras indígenas contra Covid-19. Disponível aqui.
[7] Dado indicado por Lúcio Xavante, em 09/08/2020.
“O cacique Domingos Mãhörõ, de 60 anos, foi a 36ª vítima do coronavírus entre os povos indígenas xavantes. A liderança foi sepultada na terça-feira (6/7), na Terra Indígena Sangradouro, em Mato Grosso”. Disponível aqui.
[8] Artigos de Aloir Pacini na revista IHU online. Bem morrer é um alerta para o Bem viver, disponível aqui. E Em tempo de pandemia, obedecer aos médicos, disponível aqui.
[9] O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) pede providências ao Ministério Público porque chegou a denúncia de que tramita, na Procuradoria Federal Especializada da Funai, um procedimento administrativo que tem um requerimento da Associação dos Produtores Rurais da Suiá Missú de Alto Boa Vista (APROSUM), endereçado ao presidente da República, Jair Bolsonaro, questionando pontos da demarcação, uma forma de incentivar o presidente a pressionar o STF contra o Povo A’uwe. Ver Nota Jurídica nº 00001/2019/PFE JUD TO/PFE-FUNAI-TO/PGF/AGU, de 22/03/2019 e o PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE DECRETO DEMARCATÓRIO DE TERRITÓRIO INDÍGENA, de 09/08/2019, contra o Povo Xavante da T. I. Marãiwatséde. Nesse ano o Ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu todos os procedimentos sobre territórios indígenas até o julgamento de repercussão geral RE 1.017.365.
[10] Os indígenas foram retirados do local e levados para São Marcos em 1967, por causa de uma epidemia de sarampo que levou à morte grande parte dessa parcialidade dos A’uwe. A Agropecuária Suiá-Missú instalou-se no local e, em 1980, foi vendida para a petrolífera italiana Agip. Durante a Conferência de Meio Ambiente no Rio de Janeiro (1992), a Agip foi pressionada a devolver aos A’uwe a terra, e assim se sucedeu, fazendo um papel importante o bispo Dom Pedro Casaldáliga, cuja partida velamos no dia 08/08/2020, dia em que o Brasil chegou a 100 mil mortos por causa da pandemia. Os prefeitos e políticos da região, não querendo o retorno dos A’uwe, organizaram a população local para tomar a fazenda antes dos indígenas e os conflitos se instalaram com a conivência dos governos locais, estaduais e federal. Em 1998, houve a homologação, por decreto presidencial, da terra indígena sob protestos do agronegócio. O retorno dos A’uwe foi tumultuado, com mortes de crianças por causa das condições precárias do acampamento fora da Terra Indígena ali instalado sob a liderança do Cacique Damião. Em 2013, o governo federal interveio para entregar a posse plena da terra, a partir de uma operação de retomada determinada pelo STF.
[11] O áudio demonstra irritação e preconceito para com os Xavante que levam seus filhos para estudar no Distrito de São José do Couto, município de Campinápolis. O autor teria sido o vereador José Eurípedes Alcântara, eleito pelo mesmo distrito. Em General Carneiro, a conversa é uma demonstração da intolerância com os povos originários do lugar que nem fica bem reproduzir aqui, mas mostram que os indígenas não deveriam ter sobrevivido à colonização.
[12] Padilha atuou como Ministro da Saúde entre 2010 e 2013 e foi Secretário de Saúde de São Paulo entre 2015 e 2017. Disponível aqui.
[13] Retrato do governo do Brasil. Disponível aqui.
[14] Veja cem momentos em que Jair Bolsonaro minimizou a Covid-19. Disponível aqui.
[15] Pablo Castanho, psicólogo e professor da Universidade de São Paulo. Disponível aqui.
Referências bibliográficas
HUANG, C. et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet, v. 395, n. 10223. 2020: p. 497-506.
LÖWY, Ilana. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Edições Almedina, Coimbra. Abril, 2020.
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Protesto silencioso, mas forte, porque grita na escadaria da catedral da Sé (São Paulo), no dia 08/08/2020 (Foto: Aloir Pacini)