D. Pedro: os vivos que só escutam a voz dos mortos. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

– É correto concluir que os movimentos sociais precisam de militantes vivos e atuantes e não de mortos e inoperantes?

A pergunta provocativa, numa entrevista em 1979 para o jornal Porantim,  foi feita a Dom Pedro Casaldáliga, quando ele acabava de narrar o assassinato do padre João Bosco Burnier ocorrido três anos antes, numa delegacia de Mato Grosso, onde ambos protestavam contra a tortura de duas mulheres. Sua coragem alicerçada na fé em outra vida lhe permitia enfrentar, desarmado, pistoleiros armados, o que traduzido ao seu discurso me parecia uma apologia da morte. O entrevistado percebeu minha aflição e justificou que valia a pena morrer lutando por uma causa justa, porque – ele disse:

 – Tem vivos que só escutam a voz dos mortos.

Agora, sepultado nesta quarta (12) debaixo de um pé de pequi, no cemitério abandonado dos Karajá à margem do rio Araguaia, cabe perguntar: o que D. Pedro, morto aos 92 anos, tem a dizer para nós que continuamos vivos neste vale de lágrimas?

Sua vida fala por ele: renunciou à pompa episcopal, trocou o palácio por uma casa modesta, a mitra pelo chapéu de palha, o báculo por um cajado indígena, o anel de ouro por outro de tucumã e um mausoléu por uma cova simples.  Foi isso que deu força à sua voz referenciada pela ciência, a teologia e as experiências pessoais.

Suas palavras foram semeadas em muitos livros, entrevistas e filmes que descrevem sua trajetória. Quase tudo já foi dito por ele e sobre ele. Recupero aqui sua voz em alguns trechos selecionados de outra entrevista feita por nós, da equipe do Porantim, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). O bispo de São Félix do Araguaia falou, então, sobre as nações indígenas e suas lutas, condenou o sistema capitalista, denunciou a devastação da floresta, pronunciou-se sobre marxismo, ciência e ideologia e defendeu a aliança dos setores oprimidos – operários, camponeses, índios.

O socialismo

A luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica – disse D. Pedro. Mas advertiu que era impossível construir o socialismo em um só país. “Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas”.  […] “Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”.

Para isso, ele considera que, além da conversão plena para o evangelho, duas outras são necessárias: uma conversão do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas e a outra do capitalismo para o socialismo: “Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

O bispo do Araguaia avaliou que uma sociedade sem classes era a única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente – ele diz – pois os setores que vão construir essa sociedade têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele, poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

Ele trazia em sua bagagem uma memória histórica de lutas e conflitos: a infância na guerra civil espanhola e juventude na ditadura franquista. Como catalão, viveu a perseguição à diferença étnica e linguística, que deixava como única opção a luta pela afirmação de sua identidade.

Nações indígenas

Na ocasião, entreguei ao entrevistado a “Proposta de Política Florestal para a Amazônia Brasileira” – um documento setorial da Universidade do Amazonas, coordenado por Frederico Arruda. Lá discutimos que o futuro da floresta estava ligado ao destino das nações indígenas. Foi aí que D. Pedro defendeu a ideia de um Estado Brasileiro plurinacional, não apenas como uma tese, mas como “uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer”.  Observou, porém que o capitalismo internacional não admitiria sequer uma colocação dessa ordem:

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”. […] Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

Qualificado de marxista como se isso fosse um crime, D. Pedro declarou:

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo. Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé do que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Ditadura

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Para tentar bloquear a ação de D. Pedro, o general Ismarth Oliveira, presidente da Funai, proibiu em 1975 seu ingresso em território indígena, mencionado no documento como “área da Funai”. Inutilmente. Ao contrário de D. Pedro, que está vivo, hoje o general Ismarth é um ilustre desconhecido.

Ditadura, abertura política, movimento operário e dos sem-terra, as conferências episcopais de Medelin (1968) e Puebla (1979), o CIMI e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que ele ajudou a fundar, teologia da libertação, a mediação entre igreja, sociedade e povos indígenas foram alguns dos outros temas da entrevista (Porantim , ano II, nº 12 – outubro de 1979, pgs.8 e 9) que o Takiprati disponibiliza na íntegra aos leitores interessados (aqui).

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

1 + 19 =