A governança do desastre e a irresponsabilidade corporativa da Vale. Por Klemens Laschefski

Nesta semana, mais precisamente no dia 09 de setembro, a Justiça Federal de Minas Gerais negou o caráter de urgência contido no pedido feito pelo Ministério Público Federal (MPF) para uma intervenção na Vale, com o consequente afastamento dos executivos responsáveis pela política de segurança de barragens da empresa. O pedido também incluía a suspensão da retomada de pagamento de dividendos aos acionistas, calculado em 2 bilhões de dólares.

Na semana anterior, logo após a notificação sobre a Ação Civil Pública do MPF, a Vale já havia comunicado, em sua defesa, o “aumento significativo” de seus investimentos em gestão de barragens e a implementação de um novo Sistema de Gestão de Rejeitos. Entretanto, transcorridos cinco anos do desastre de Fundão, é fato irrefutável que os acionistas da Vale receberam milionários dividendos da empresa ao passo que a grande maioria dos atingidos não conseguiram sequer uma reparação que permita a retomada de suas vidas. A decisão da Justiça vem, portanto, enfraquecer de forma significativa essa tentativa inovadora do MPF para responsabilização da Vale pelo moroso processo de reparação dos danos a milhares de vítimas das rupturas das barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), que configuram eventos críticos no curso dos dois maiores desastres sociotécnicos do Brasil.

De fato, os desastres tiveram início anos antes do rompimento das barragens, através da gradativa reestruturação do sistema ambiental de Minas Gerais em resposta à pressão das mineradoras para a “desburocratização” do licenciamento e da fiscalização de suas atividades. Curiosamente, foi logo após a ruptura da barragem de Fundão que a “irresponsabilidade corporativa”, denunciada na Ação Civil Pública do MPF, penetrou o Estado através do rearranjo institucional do sistema ambiental e de seus órgãos deliberativos. A partir de 2016 foi criada a Superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI), que tem competência para interferir em processos que tramitam no Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM), em casos considerados de “prioridade especial” para o governo. Mais ainda, houve a simplificação significativa do processo de licenciamento, o que resultou na concessão de todas as licenças ambientais solicitadas pelas mineradoras, desde 2018, em mais de 40 reuniões do COPAM.

Ao pedir a intervenção no sistema de governança da Vale, o MPF procurou não apenas interferir na promiscuidade entre os interesses empresariais e o sistema ambiental do estado que colocam a população em risco. Buscou também, de forma ousada, avançar em relação às abordagens motivadas pela ideologia da “resolução negociada de conflitos” até então empregadas internamente pela própria instituição. A intervenção judicial na Vale, solicitada pelo MPF, representaria nesse processo – não fosse negada pelo juízo -, um relevante ponto de inflexão na atuação da entidade a reiterar o seu papel como instituição pública guardiã dos direitos constitucionais. Afinal, tais estratégias mediadoras empregadas nos processos de reparação do desastre, além de equivocadamente equiparar direitos a interesses, tem tido pouca eficácia quanto à minoração do sofrimento das vítimas e promoção da retomada de suas vidas ainda em “suspenso”. Com efeito, diante da assimetria entre as partes e a ausência de um judiciário que represente, de fato, um freio aos abusos da parte mais poderosa, pouco se consegue com as medidas centradas na negociação. Além disso, evidências apontam para o fato de que a busca por “soluções extrajudiciais” em torno da “boa governança” da mineração tenha beneficiado, ao reverso, o surgimento daquilo que os procuradores federais hoje identificam como sendo ”…uma cultura organizacional hierárquica arraigada na resistência à exposição de problemas”.

Interessante observar a resposta da Vale ao pedido de intervenção feito pelo MPF. Em manifestação pública, a empresa afirma ser “altamente aderente aos novos padrões do International Council on Mining and Metals (ICMM)”. Além disso, esclarece que “as atuais práticas de gestão de suas estruturas minerárias refletem as melhores referências globais do setor.”

Ora, a remissão a uma instância supostamente mais ampla e global, o ICMM, é claramente uma tentativa de desqualificação do Ministério Público que, por contraponto, é entendido como ente provinciano, circunscrito ao doméstico. De fato, há alguns meses observa-se uma movimentação significativa de equipes da chamada “Global Tailings Review” (GTR), criada pelo ICMM para atuação na área dos desastres. Elas têm abordado vítimas, assessorias, ONGs, movimentos sociais e pesquisadores a fim de convidá-los ao engajamento em uma iniciativa que visa a elaboração de critérios e indicadores para barragens de rejeito, apesar de ultrapassada esta tecnologia. As primeiras versões dos princípios e critérios publicadas pelo GTR apresentam tão somente uma lista de formulações genéricas e bem-intencionadas.

Mas quem está por trás do ICMM? Trata-se de uma organização fundada em 2001, que se auto-apresenta como iniciativa “…dedicada a uma indústria de mineração e metais segura, justa e sustentável reunindo 27 empresas…” (sítio eletrônico do ICMM). Três das empresas fundadoras da organização possuem empreendimentos em Minas Gerais, a saber: Anglo American, AngloGold Ashanti e BHP-Billiton. Interessante notar que a Vale foi membro do ICMM de 2006 a 2014, quando a empresa deixou o Conselho após um escândalo nas suas concessões na Guiné. O processo foi arquivado em 2015 e a Vale reingressou ao ICMM em 2017, pouco tempo depois do rompimento da barragem de Fundão.

O ICMM é, então, uma iniciativa das próprias mineradoras que procuram a auto-certificação como empresas “responsáveis”, ou até mesmo “sustentáveis”, embora muitas delas sejam detentoras de vasto histórico de violação de direitos humanos e destruição ambiental. A iniciativa de auto-certificação segue um modelo conhecido, o do FSC – Forest Stewardship Council (Conselho de Manejo Florestal)-, um sistema de certificação florestal criado em 1993 com participação de grandes organizações não-governamentais, algumas delas hoje afastadas em função do não cumprimento das promessas realizadas. Ora, na prática, a certificação é conduzida por consultorias privadas contratadas pelas próprias empresas. Na luta concorrencial travada no mercado das consultorias, uma eventual recomendação de não concessão do certificado desejado pela contratante configura suicídio comercial. Um documentário realizado em 2018 pela ARTE, uma das maiores redes de televisão da Europa, sobre florestas certificadas no Brasil (Bahia), Rússia, Vietnam, Congo entre outros países, mostra que as violações de direitos humanos e a degradação ambiental perseveram nestes contextos, mesmo com o selo socioambiental.

O caso do rompimento da barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho, ilustrou o problema das consultorias diretamente contratadas pelas empresas: poucos meses antes da catástrofe, a empresa alemã TüvSüd emitiu parecer que constatava a estabilidade da barragem, apesar de outros estudos técnicos indicarem o contrário, como revelam as investigações do Ministério Público. Este tipo da neoliberalização da governança, representado por iniciativas como o ICMM, portanto, não impedirá que outros desastres sociotécnicos aconteçam no futuro.

Portanto, a negação por parte do judiciário ao pedido de intervenção na Vale reforça, lamentavelmente, a percepção da captura local pelos discursos globais que elidem, na verdade, estratégias neoliberais de governança auto-reguladora que são ilusórias do ponto de vista de sua eficácia efetivamente reguladora. Para a sociedade, resta a expectativa de que o Ministério Público se mantenha firme na defesa intransigente dos direitos, da própria Constituição Brasileira e do Estado Democrático de Direito.

Prof. Dr. Klemens Laschefski
Programa de Pós-Graduação em Geografia – Instituto de Geociências
Pesquisador do GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais
Universidade Federal de Minas Gerais

Foto: Henrique Fornazin

Comments (1)

  1. Palmas para a Justica Federal que de forma CORRETA manteve o pagamento dos Proventos, já que o autor desse texto não faz a menor ideia ao defender a suspensão desde tipo de pagamento obrigatório aos acionistas sejam eles minoritários ou não.

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