Sertanista diz temer uso de morte de colega contra índios isolados na Amazônia: ‘acidente de trabalho’

Fernando Duarte, BBC World Service

A morte do sertanista Rieli Franciscato, atingido no peito por um flecha disparada por índios isolados durante uma operação em Seringueiras (RO), no último dia 9 de setembro, teve um impacto diferente para Sydney Possuelo.

Ex-presidente da Fundação Nacional de Assistência ao Índio (Funai) e durante muitos anos responsável pelo departamento responsável pelos chamados povos isolados – como são definidos grupos indígenas sem relações permanentes com as demais sociedades nacionais -, Possuelo trabalhou junto com Franciscato em diversas ocasiões.

Mas além, da consternação pessoal, o sertanista, um dos nomes mais reconhecidos e premiados mundialmente no campo defesa dos direitos indígenas, diz-se “extremamente preocupado” com os desdobramentos da morte do antigo colega.

Em entrevista à BBC News Brasil por Skype, Possuelo, 80, teme que a morte de Franciscato sirva de munição para os opositores de maiores concessões aos povos indígenas, especialmente no que diz respeito à demarcação de terras.

O sertanista acredita ainda que a intensificação de conflitos em áreas de presença indígena desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência poderão resultar em mais baixas.

Veja a entrevista:

O indigenista Rieli Franciscato tinha 56 anos, 30 dos quais dedicado à defesa dos direitos dos povos indígenas. Foto: arquivo pessoal

BBC News Brasil – Como o senhor recebeu a notícia da morte de Rieli Franciscato?

Sydney Possuelo – A morte do Rieli foi uma perda muito grande para os defensores dos direitos indígenas. Ele era um ser humano incrível e eu lamento demais o que aconteceu.

Mas é preciso deixarmos claro que o Rieli seria o primeiro a reagir contra qualquer tentativa de usar a morte dele para qualquer medida contra os povos isolados. Ele sabia da fragilidade dessa gente em relação à sociedade nacional.

Foi um acidente de trabalho.

BBC News Brasil – Por que o senhor acredita que houve o ataque?

Possuelo – Os índios isolados usam seus próprios parâmetros para fazer uma projeção da nossa sociedade. É a aldeia pequena, onde todos se conhecem. Para eles, nós somos pertencentes a uma outra aldeia.

Mas essa aldeia não é feita de amigos na visão deles. Na história do índio, toda a vez em que a sociedade se aproxima é uma história de violência. Se os índios têm um encontro violento com fazendeiros, grileiros ou madeireiros em uma parte isolada da região, eles não têm escrita para registrar isso. Eles guardam na memória. E pensam que todos nós nos conhecemos.

Por isso, atacam qualquer um, incluindo gente trabalhando para ajudá-los.

BBC News Brasil – O grupo que Rieli monitorava teria se sentido ameaçado?

Possuelo – Os índios daqueles grupos que se mantêm isolados não são um bando de selvagens que andam por aí matando. Eles têm comportamentos éticos. Mas eles não falam com a sociedade, não há quem explique para eles “olha, aquelas pessoas ali são sertanistas ligados à Funai”. O pessoal da Funai que está nas proximidades não tem uma estrela na testa que os distinga de invasores.

BBC News Brasil – O senhor promoveu uma mudança de abordagem da Funai em relação aos povos isolados nos anos 80, em que se passou a evitar ao máximo o contato. Por quê?

Possuelo – Foi um processo de anos. Durante muito tempo em que me comportava como os antigos sertanistas, fazendo contato etc. Mas cheguei à conclusão de que não era bom. Sempre que havia contato, tínhamos consequências ruins, principalmente através de infecções – por mais que houvesse boas intenções. Ao longo da história houve muitas mortes por causa de coisas simples como uma gripe.

Na história das Américas, germes mataram mais que bacamarte e punhal.

Ao mesmo tempo, deixá-los quietos por lá também era ruim. Você visitava anos depois e encontrava uma fazenda ou uma estrada. As duas posições eram ruins. O que tínhamos de fazer era demarcar terra e não irmos atrás dos índios. Paramos de entrar no território. Não era justo com eles. O contato sempre foi o início de perdas para os índios. Da liberdade, da sua língua, das suas terras. O presidente da Funai na época, o Romero Jucá, aceitou.

BBC News Brasil – Mas os sertanistas não ficaram famosos como desbravadores? Como foi essa mudança?

Possuelo – Os mais antigos me disseram que eu estava querendo acabar com a glória do trabalho, de ser o “papai dos índios”. De ser alguém que descobriu uma etnia. Eu disse o seguinte: a glória de vocês vai ser defender e proteger homens, mulheres e crianças que vocês não devem conhecer.

O que passamos a fazer foi buscar saber onde os índios isolados estavam, demarcar seu território e manter vigilância.

Porque não adianta delimitar e virar as costas, os invasores entram da mesma forma.

BBC News Brasil – O que o senhor pensa sobre a atual política do governo brasileiro para o povos indígenas?

Possuelo – Em nossa história, jamais tivemos um presidente da República que falou clara e ostensivamente que “nosso negócio não é a p… das árvores”. O presidente Bolsonaro deixa de cumprir a Constituição no que diz respeito à demarcação de terras indígenas. Ele enche a bola do agronegócio e de outros invasores de terras indígenas. É claro que isso incentivou muita gente a pensar que não haverá repressão por parte do governo para invasões. Não sou de esquerda ou direita. Isso não me interessa. Quero apenas cumprir o que Constituição determina. E que nunca foi cumprido mesmo antes do Bolsonaro.

BBC News Brasil – Organizações de defesa dos direitos indígenas como a Survival Internacional defendem as demarcações também como forma de preservar a floresta. O senhor concorda?

Possuelo – São terras importantíssimas não só para os índios. São extensões imensas de floresta que deveriam estar protegidas e nos ajudam com a questão do clima. Sim, o agronegócio é importante. Mas o Brasil é grande o suficiente para acomodar tudo isso e com respeito aos povos indígenas.

BBC News Brasil – O senhor teme que a situação de conflito com indígenas piore?

Possuelo – A tendência é essa, lamentavelmente. Gostaríamos de ver uma política ambiental correta. Não podemos falar de índios, principalmente isolados, sem falar de meio ambiente. O índio isolado é aquele que depende exclusivamente do meio ambiente, não tem supermercado. Você polui as águas e destrói a mata, os animais desaparecem e isso mata o índio de fome.

BBC News Brasil – Encontros com índios isolados serão mais comuns e violentos?

Possuelo – Já escutei gente falando sobre a morte do Rieli e dizendo que “esses índios precisam ser punidos”. Isso é uma falta de conhecimento. A falta de vigilância nas terras indígenas permite que invasores penetrem as terras indígenas e a possibilidade de que entrem em conflito com os povos isolados é muito grande. A falta de conhecimento e a ganância do ser humano são os principais elementos que martirizam historicamente os povos indígenas.

Imagem: Sydney Possuelo é indigenista e etnógrafo – UFRR/Reprodução

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili 

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