Intervenção nos transportes em Manaus não abriu caixa-preta

Críticas de falta de transparência em apuração de contas do transporte coletivo não impediram que empresas que atuam desde 2011 fossem renovadas por mais dez anos pela prefeitura manauara

Por Giovanna Marinho, Gabriela Alves, Agência Pública

Com a promessa de “abrir a caixa-preta” das empresas do transporte coletivo de Manaus, o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) decretou antes da pandemia de Covid-19 uma intervenção financeira do sistema de transporte coletivo da cidade. 

Era julho de 2019 quando Virgílio afirmou que faria “uma devassa nas empresas de transporte para saber a real situação financeira”. A intervenção era a solução encontrada pelo prefeito, após seis anos e meio de mandato, para dar fim à crise no sistema que foi agravada por sucessivas greves dos rodoviários nos últimos anos — entre 2018 e 2019 foram 160 paralisações.

Os grevistas reclamam de atrasos nos pagamentos dos salários e obrigações trabalhistas não cumpridas, assim como rechaçam proposta de implementação de bilhetagem eletrônica como única forma de pagamento das passagens, o que colocava em risco o emprego dos cobradores. Além disso, o sucateamento da frota de ônibus aumentou o cenário de insatisfação da categoria e da população. 

O relatório final da intervenção, envolto em mistério até sua divulgação em julho à 8a Comissão de Transporte, Mobilidade Urbana e Acessibilidade da Câmara Municipal de Manaus (COMTMUA/CMM), não trouxe as respostas prometidas. 

Do que se tem registro é que a prefeitura movimentou durante os 180 dias de intervenção aproximadamente R$ 204 milhões oriundos do Sistema de Bilhetagem Eletrônica (SBE) e fez um aporte financeiro de mais de R$ 61 milhões — na maior parte gastos com recursos humanos. 

Sob a direção do interventor Francisco Saldanha Bezerra, que é também o atual diretor-presidente do Instituto Municipal de Mobilidade Urbana (IMMU), o relatório final traz diversas medidas que devem ser adotadas, mas termina sem explicar como o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Amazonas (Sinetram) utilizava o recurso do transporte nos últimos anos, fato que tem sido alvo de críticas de parlamentares. Para o vereador Chico Preto (DC), o sistema continua sem a transparência necessária: “A caixa-preta nem de longe foi aberta, isso é conversa. Eu pensei que a intervenção fosse trazer à tona a apuração dos últimos anos e a questão relacionada ao dinheiro da renovação da frota. Onde que foi parar o dinheiro da renovação da frota?”, questionou.

A crítica de Chico Preto refere-se ao fato de a renovação da frota de ônibus ter sido uma promessa do prefeito em 2017, quando a passagem subiu de R$ 3 para R$ 3,80. No entanto, dos 200 ônibus prometidos pelo prefeito, apenas 40 foram entregues naquele ano. 

A renovação da frota também foi proposta como uma medida a ser adotada durante a intervenção. Para isso, em fevereiro deste ano, a prefeitura renovou por mais dez anos o contrato com as nove empresas do consórcio que detém o transporte coletivo público desde 2011. São elas: Grupo Eucatur, Açaí Transportes, Viação São Pedro, Via Verde Coletivos, Expresso Coroado, Global Green Transportes, Auto Ônibus Líder e Vega Manaus Transporte.

A renovação foi condicionada à entrega de 300 ônibus novos ainda no primeiro semestre de 2020, mas a nova frota recebeu 112 veículos em setembro — segundo o IMMU, as fabricantes pediram um prazo maior devido à pandemia de Covid-19.

Para o vereador Sassá da Construção Civil (PT), que é membro da Comissão de Transporte da Câmara Municipal de Manaus (CMM), a medida foi tomada tardiamente e em um momento inadequado. “As empresas tiveram todo o tempo do mundo para ter esse contrato de colocar ônibus novos. Também está vindo outra gestão daqui a seis meses, acho que não é o momento de renovar a frota e dar mais anos de gestão para essas empresas”, afirmou. “Me parece que o Arthur vai deixar a cidade amarrada por mais dez anos, com as mesmas empresas e o mesmo contrato”, disse Chico Preto. 

O sucateamento dos ônibus na capital do Amazonas afeta a vida de cidadãos como a dona de casa Úrsula Carla e o filho Gabriel Souza, de 16 anos, que tem paralisia cerebral. Por conta dessa limitação, o jovem depende da cadeira de rodas e da mãe para se locomover. Ela desabafou nas redes sociais depois de ter sido impedida de entrar no ônibus da empresa São Pedro, da linha 212, pois o elevador para cadeirantes estaria quebrado. Somente após uma discussão com o motorista e com apoio de passageiros ela conseguiu seguir o seu destino. 

Úrsula conta que esse tipo de situação é frequente, pois periodicamente precisa levar o filho às consultas médicas, e embora o Programa Transporta – serviço da prefeitura para locomoção de pessoas com deficiência – esteja em funcionamento na cidade, conseguir uma vaga é muito difícil. 

Úrsula relatou as dificuldades enfrentadas com o filho, Gabriel Souza, no transporte público – Giovanna Marinho/Agência Pública

“Eu me sinto péssima, horrível! A gente se sente impotente, porque meu filho tem 16 anos e ele é grande na cadeira de rodas e eu não consigo carregar o meu filho e preciso da ajuda de terceiros”, desabafou a dona de casa.

Segundo o Sinetram, a renovação da frota não ocorreu antes da intervenção porque “os contratos estavam com grande desequilíbrio econômico financeiro e só foi reequilibrado no final do ano passado. No entanto, houve a pandemia e as empresas estão fazendo a avaliação do cenário atual”, respondeu o órgão. 

Conclusão do relatório

O relatório da situação em Manaus finaliza determinando oito medidas operacionais que devem ser adotadas, entre elas o estabelecimento de um Comitê Gestor do Sistema de Bilhetagem Eletrônica e medidas de governança no sistema de transporte coletivo. No entanto, não explica como serão postas em prática ou como irão funcionar. 

Além disso, o documento determina a readequação de 16 plataformas localizadas nos canteiros centrais das principais avenidas, construção de três novas estações de transferência (Parque das Nações, Arena da Amazônia e Santos Dumont), reativação da faixa exclusiva para os transporte coletivo e a licitação para os ônibus executivos e alternativos. 

Algumas dessas deliberações estão em fase licitatória. Há poucos meses do fim do segundo mandato de Arthur Virgílio à frente da prefeitura, é possível verificar a cidade se tornando um imenso campo de obras. 

Uma dessas construções é a aguardada reforma do terminal de integração de ônibus, localizado na avenida Constantino Nery, o T1, que diariamente recebe cerca de 35 mil usuários para embarque e desembarque nas 70 linhas de ônibus com rota para o local. A licitação para demolição e reconstrução foi feita mesmo em meio ao pico da crise na saúde causada pelo novo coronavírus e teve um custo de R$ 10,3 milhões aos cofres públicos — o pregão, arrematado pela empresa A. J. Nacer, foi realizado em Regime Diferenciado de Contratação, medida adotada durante a Copa e a Olimpíada e mantida em funcionamento para facilitar a concorrência. 

Problemas continuam

Para o presidente da Comissão de Transportes da CMM, vereador Rosivaldo Cordovil (PSDB), com a intervenção o sistema de transporte voltou a funcionar na cidade. “O transporte conseguiu voltar a funcionar adequadamente na cidade de Manaus, suspendendo todas as greves, porque tinham muitas greves”, disse. No entanto, de acordo com dados do Sinetram, já foram contabilizadas 15 paralisações dos rodoviários em 2020. 

O período da intervenção, segundo Josenildo Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Manaus (STTRM), foi de ajustes com a categoria, mas o cenário voltou a se complicar com a crise da Covid-19. “A prefeitura queria verificar o rendimento das empresas, o que entrava, o que saía, e durante a intervenção melhorou porque os pagamentos foram realizados em dia, mas logo em seguida veio a pandemia”, afirmou.

Desde o fim da vistoria nas contas das empresas do transporte coletivo, o embate entre os rodoviários e os empresários ganhou novo fôlego, com os trabalhadores pedindo a normalização dos pagamentos dos salários que foram reduzidos pela Medida Provisória 936/2020 — criada em meio à pandemia. 

Embora a pandemia tenha sido o argumento para a redução da frota, não é de hoje que Manaus conta com menos ônibus nas ruas. O problema vem desde agosto de 2019, quando os empresários detentores das linhas de ônibus da cidade afirmaram que durante a intervenção não teriam como arcar com os custos para manter 100% da frota em funcionamento.

Enquanto isso, pessoas como a técnica de segurança do trabalho Marcela Menezes, de 24 anos, sentem dificuldade para se locomover até o trabalho. “Eu moro perto de um igarapé. Não tem ônibus próximo e eu tenho que andar para pegar lá na estação”, relatou.

A jovem, que se mudou recentemente para o bairro Nova Esperança, zona oeste de Manaus, precisa caminhar cerca de dez minutos para pegar o único ônibus que faz o percurso até a sede da empresa na qual trabalha, localizada em um bairro próximo, o Alvorada – zona centro-oeste. Marcela conta que ao chegar à parada esperava em média uma hora na ida e uma hora na volta, mas com a redução da frota a espera tem sido maior.

Intervenção deixou dívidas

Questionado sobre os resultados da intervenção e se ficaram dívidas pendentes, o Sinetram informou que o processo de fiscalização do sistema deixou uma dívida de R$ 40 milhões para as empresas. Segundo o sindicato, a prefeitura de Manaus não pagou fornecedores durante o período e não recolheu direitos trabalhistas como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e a Previdência Social.

Arthur Virgílio Neto não reconheceu as dívidas relatadas à reportagem. Segundo ele, há um esquema de corrupção no Sinetram, mas não deu detalhes ao ser questionado pela reportagem sobre a quais esquemas se refere. Ele cita o Ministério Público do Amazonas (MP-AM), que, segundo ele, “se esquivou” e não fez investigações necessárias para encontrar os supostos crimes. “O que precisava era parar de haver corrupção no Sinetram, e eu sei o nome dos corruptos. O que o Sinetram quer? Que os ônibus não rodem? Eu aconselho a parar a corrupção lá e aquilo vai dar confusão. Corrupção sempre dá confusão”, acusou o prefeito.

Já o interventor dos transportes, Francisco Bezerra, admitiu que a dívida existe, mas diz que o valor é 50% menor do que o apontado pelas concessionárias — cerca de R$ 21 milhões, que serão abatidos.

“Agora, não é R$ 40 milhões, existem débitos também com a prefeitura, que vai ser ajustado, vamos conversar com quem tem direito de receber, quem não tem… A situação não é bem assim, não”, afirmou.

A prefeitura de Manaus, por meio de nota, também informou que todos os questionamentos feitos pela reportagem “foram discutidos e respondidos em audiências públicas realizadas na Câmara Municipal de Manaus (CMM), em âmbito virtual e abertas ao acompanhamento de todos, inclusive da imprensa, entre vereadores e representantes do Executivo municipal”.

Além de buscar as sessões públicas, a reportagem apurou que nenhum veículo de comunicação local teve acesso às discussões acerca do documento realizadas na casa legislativa.

Sobre as críticas feitas por parlamentares de falta de transparência do documento final da intervenção, no qual não constam comprovantes como notas fiscais ou dados de como eram administrados os gastos das empresas de transportes antes da intervenção, a prefeitura ressaltou que “todos os dados coletados constam em ambos os relatórios entregues à CMM e posteriormente abertos à consulta pública”.

E complementou apontando que “o município prezou ainda pela transparência total de todos os dados coletados durante a intervenção, além de tomar uma série de medidas que estão dando equilíbrio ao sistema o que inclui a aquisição de 300 novos veículos que já estão chegando à capital do Amazonas, e modernização de terminais e plataformas”.

Já o interventor disse que foi responsável apenas pelo esclarecimento dos valores movimentados no modal durante o período em que esteve atuando junto ao prefeito, 2018-2019, para compreensão da situação financeira do transporte público manauara. 

“O que aconteceu na realidade é que o dinheiro que era subsidiado pela prefeitura ninguém prestava conta, ninguém sabia para onde ia. Depois que nós entramos, não; há controle geral, o pessoal andando tudo direitinho. Tanto que chegou a ponto de fazer investimento, ter uma lei de subsídio, ter a segurança jurídica. Tudo isso o prefeito entendeu e fez”, relata o interventor.

Sem ônibus para a faixa azul

Além disso, outro ponto criticado pela classe foram modelos de veículos adquiridos para a renovação da frota em Manaus. Muitos deles não possuem o assento para os cobradores, forçando a bilhetagem eletrônica e acumulando funções para os motoristas.

Segundo o motorista Evaldo Santos, presente na entrega da nova frota, a falta do cobrador pode deixar o trabalho do condutor mais perigoso, devido à dupla função, prejudicando funcionários e passageiros, e o prefeito precisa reavaliar a compra.

“Fomos pegos de surpresa com a apresentação desses carros e viemos aqui tentar pedir a sensibilidade do prefeito para que ele possa rever a decisão do Sinetram, que é o sindicato das empresas, junto com o IMMU”, relatou o rodoviário.

Muitos modelos não possuirão as portas da lateral esquerda, necessárias para o desembarque de passageiros nas plataformas do canteiro central, onde ficam as faixas exclusivas para o tráfego de ônibus.

Essas faixas, conhecidas pelos manauaras como a “faixa azul”, foram uma tentativa para implantar o sistema de Trânsito Rápido para Ônibus (BRT, do inglês Bus Rapid Transit), que estava no plano de governo do prefeito. 

Na proposta, a faixa azul interligaria os terminais de integração, em todas as zonas da cidade, por meio de uma demarcação com duas listras: azul e branca, suprimindo parte das vias em que está estabelecida, permitindo assim a exclusividade para locomoção dos carros do transporte coletivo, táxis e veículos do serviço público, como ambulâncias.

Porém, de acordo com o Sinetram, a nova frota será utilizada como “alimentadora”, conduzindo passageiros dos bairros para os terminais. Segundo o geógrafo e doutor em engenharia de transportes Geraldo Alves de Souza, a cidade aparenta estar seguindo um caminho contrário aos projetos de grandes cidades.

Citando o exemplo da capital argentina, Buenos Aires, Souza afirma que uma solução seria colocar os ônibus no contrafluxo do trânsito nessas vias, para que fosse possível utilizar as portas da direita, usadas nos bairros para embarque e desembarque de passageiros. O geógrafo, porém, lembra que as plataformas dos canteiros centrais em Manaus, incluindo a obra do Complexo Viário Ministro Roberto Campos — que conecta as zonas centro-sul e oeste da cidade —, inaugurado em junho, possuem uma altura superior ao piso dos ônibus que não fazem paradas na faixa azul, apontando que esse não foi o caminho planejado pela prefeitura.

O arquiteto urbanista Pedro Paulo Cordeiro diz que desde 1970 Manaus cresceu sete vezes em população, chegando a 2 milhões de habitantes, enquanto o território da capital cresceu 25 vezes, com boa parte das ocupações oriundas de invasões de terras, um fenômeno chamado espraiamento urbano.

Esse crescimento desenfreado e sem planejamento tornou a cidade grande e forçou a necessidade de os habitantes adquirirem um automóvel, ampliando o fluxo de carros. Para ele, a solução virá somente por meio da diversificação de modais, e não por incentivo ao crescimento da frota de carros nas ruas. “Não adianta ficar criando viadutos, passagens de níveis, pois isso apenas transfere o engarrafamento de um ponto ao outro.” 

Uma opção, ele diz, seria a real integração da mobilidade ativa com as ciclovias e calçadas adequadas para caminhadas, ou implantação do sistema aquaviário para utilizar os 25 quilômetros das margens do rio Negro que banham a capital do Amazonas. Essa opção seria uma locomoção viável, a exemplo de cidades como Mumbai, na Índia, cujo serviço é prestado pelo aplicativo de mobilidade Uber.

Imagem: Giovanna Marinho/Agência Pública

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

6 − 6 =