De liderança respeitada a servilismo abjeto. Por Luiz Augusto Estrella Faria

O Brasil foi convertido em uma desprezível figura servil aos Estados Unidos

No A Terra é Redonda

As antigas civilizações humanas foram, em sua maioria, erigidas em sociedades multiétnicas nas quais uma delas exercia dominação sobre as demais. Esse tipo de organização política conhecemos como impérios, nos quais o povo conquistador submetia os demais pela força e os explorava economicamente, em geral na forma de pagamento de tributos ou de trabalho forçado e, em sua variante mais brutal, a escravidão.

Impérios existiram em quase todos os continentes e conhecemo-los pelo relato literário de viajantes como Marco Polo, que contou suas perambulações pelos domínios do Grande Khan na Ásia, e pelos estudos da História. Aqui mesmo, na América, os espanhóis e portugueses, que tentavam erigir eles também seus impérios, destruíram o Império Inca e o dos astecas.

Na Europa, após a queda do Império Romano e da frustrada tentativa de substituí-lo pelo Sagrado Império Romano-germânico, essa modalidade de sistema multinacional desapareceu, embora muitos de seus países mantivessem seus impérios fora do continente, na América, Ásia, África e Oceania. As nações do velho mundo se digladiaram durante séculos em guerras na busca de afirmação e poder até que a invenção do capitalismo as fez participantes de um novo tipo de ordem internacional, a de uma convivência não muito pacífica, mas regrada, entre estados que reconheciam a soberania uns dos outros. O Tratado de Westfália em 1648 inaugurou essa modalidade de relação internacional que evoluiu até assumir a forma do moderno sistema de hegemonia no Congresso de Viena em 1815. A partir dali, a Inglaterra se consolida como centro do sistema mundial capitalista, cuja razão expansionista de poder e riqueza vai se espraiar por todo o globo, incorporando o que restava dos antigos impérios, povos e nações, um atrás do outro submetidos à sua lógica da acumulação infinita de valor econômico.

Em 1945, da mesma forma como em 1648 e 1815, ao fim de um período de guerras devastadoras, o sistema mundial capitalista se reorganiza, dessa vez sob a hegemonia dos EUA. Sua vigência se alicerçava na obediência às normas do direito internacional e das instituições das Nações Unidas e pela capacidade de liderança política, militar, econômica e ideológica dos Estados Unidos. Esse sistema, entretanto, tinha uma anomalia. Durante as duas guerras mundiais nas quais a hegemonia britânica estava em disputa, em dois rincões periféricos do mundo o desejo de liberdade e o nacionalismo que animavam o espírito dos combatentes deu lugar a um novo modelo de revolução emancipatória, vitorioso na Rússia em 1917 e na China em 1949. Mesmo sem ter rompido com a ordem internacional, uma vasta região do planeta se organizou em torno da liderança da então União Soviética e constituiu um arranjo econômico e político próprio, em larga medida fora dos circuitos de valorização capitalistas e em oposição à hegemonia americana. A competição entre esses dois modelos ganhou o nome de Guerra Fria.

Em 1991 a URSS se extinguiu, dando fim à Guerra Fria. Naquele momento os EUA, sem competidor e após uma demonstração de poder militar arrasadora na I Guerra do Golfo, reafirmaram sua hegemonia agora sobre virtualmente todo o globo. Entretanto, em lugar de seguir dirigindo o sistema interestatal com suas instituições, o estado americano cedeu à tentação de se transformar em império e passou a transbordar manifestações de poder unilaterais que violavam as próprias normas da ordem internacional que haviam sido por ele definidas. Desconsideração de normas e decisões de organismos da ONU, sanções econômicas e políticas, bloqueios, intervenções militares, lawfare, interferência nos assuntos internos e apoio a golpes de estado e mudanças de regime foram implementados de forma unilateral pelos Estados Unidos sempre que seu interesse exclusivista se via contrariado. Esse movimento chauvinista teve início sob a consigna da guerra ao terrorismo, declarado o inimigo principal do poder americano, um inimigo conveniente porque podia tomar a forma de toda e qualquer entidade e implicar qualquer estado por decisão unilateral do próprio governo americano. Mais recentemente, fracassada a tentativa de submeter o mundo muçulmano, sua estratégia internacional muda para focar no bloqueio à ascensão de potências rivais, Rússia e China.

Esses dois países vinham passando por transformações importantes, a Rússia se reergueu das ruinas soviéticas e voltou a ocupar um lugar no centro do mundo como potência militar e energética. Já China adentrou o espaço privilegiado do núcleo da ordem internacional por meio de um desenvolvimento econômico e social em velocidade vertiginosa, galgando rapidamente a escada em direção ao lugar de maior economia do planeta. Tanto russos como chineses fizeram seu percurso na estrita observância das normas e instituições do sistema mundial. A posição legalista de ambos os países foi recentemente reafirmada em uma declaração conjunta com exortação à toda a comunidade das nações para que se atenha às normas e fortaleça o direito internacional. O documento foi divulgado numa data cheia de simbolismo para os EUA, o 11 de setembro.

E o Brasil, como fica em meia a essa reorganização da ordem mundial? O país vinha lidando com essa nova conjuntura internacional até recentemente com bastante habilidade. Parecia claro que se abrira uma janela de oportunidade para a transição em direção a uma ordem global multipolar, na qual o país poderia galgar posições na hierarquia das nações a partir de sua liderança regional afirmada nos processo de integração da América Latina (Mercosul, UNASUL e CELAC) e na participação em novos fóruns de concertação como o BRICS e o G20. Para tanto, uma posição mais equidistante face à disputa China, Rússia e EUA seria uma necessidade tática, assim como a inexistência de conflitos e as boas relações com todas as nações do entorno estratégico, América do Sul e Atlântico Sul, forneceria a retaguarda de apoio para uma projeção do interesse nacional a partir de nossas virtudes de pacifismo, tolerância, diversidade cultural e étnica e fidelidade ao direito internacional.

O desastre representado pelo desgoverno Bolsonaro, que é uma negação de todos os valores de nossa tradição diplomática, a começar com a inimizade com vizinhos, o desrespeito aos direitos humanos, a degradação do meio-ambiente e a promoção de uma ideologia tosca, preconceituosa e nazifascista desfizeram a boa imagem do país no mundo. Se isso já não fosse suficiente para a desmoralização do Brasil, ainda teve lugar a subserviência desavergonhada em relação aos EUA, no alinhamento da política externa e na subordinação das forças armadas ao comando do Pentágono.

Os apoiadores desse governo, empresários, militares, agrupamentos políticos de extrema-direita, mais Centrão, mais mídia, estão comprometidos com a destruição de todo um esforço que remonta aos anos 1960 de autonomia na política externa, na defesa nacional, na escolha do modelo de desenvolvimento socioeconômico. De líder respeitado entre os países emergentes e no Sul global, referência em temas decisivos como o aquecimento global, o comércio justo, a autodeterminação dos povos e a amizade recíproca com toda a América Latina, a África, o mundo árabe e a maior parte da Ásia, nosso país foi convertido em uma desprezível figura servil aos Estados Unidos.

*Luiz Augusto Estrella Faria é professor titular de Economia e Relações Internacionais na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Bolsonaro na Índia. Foto: Alan Santos / PR

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