O que as doenças falam sobre nós

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

DIGA-ME O QUE TENS

Saíram os novos dados do Estudo Global de Carga de Doenças (GBD, na sigla em inglês), com informações que vão de 1990 a 2019 e abrangem 204 países. Há poucas boas notícias, então vamos começar por elas: no período, a expectativa de vida saudável – o tanto que uma pessoa pode esperar ter boa saúde – aumentou 6,5 anos. Enfermidades que afetam gestantes e crianças diminuíram 55%. E os esforços para combater doenças neonatais e maternas, além das infecciosas, tiveram resultados particularmente bem-sucedidos nos países de baixa e média renda. 

O mesmo não acontece na maioria dos países de renda mais alta, onde há estagnação e até mesmo retrocesso. É o caso dos Estados Unidos, que experimentou uma piora na saúde da população de quase 3% na última década. Isso, é claro, tem a ver com hábitos como tabagismo, sedentarismo e dieta repleta de alimentos ultraprocessados – o que, por sua vez, tem tudo a ver com a omissão no campo das políticas públicas, que poderiam desestimular o consumo de vários produtos, por exemplo. O relatório nota que houve diminuição nos esforços governamentais em reduzir o tabagismo em vários países. 

Por aqui na América Latina o problema se repete: pressão alta, acúmulo de açúcar no sangue, índice de massa corporal elevado e fumo são os fatores que mais contribuem para a deterioração da saúde da população. Nesse sentido, não é surpresa que o estudo tenha constatado um aumento relevante na incidência de doenças crônicas não transmissíveis. Em 1990, elas representavam 48% da carga epidemiológica. Em 2019, já tomavam 70%. A diabetes está entre as doenças que mais puxaram a qualidade de vida dos latino-americanos para baixo nos últimos 30 anos. 

O Brasil é destaque negativo no estudo por conta dos altos índices de violência doméstica. Dividimos o problema com a Colômbia. Em ambos os países, essa forma de violência foi a principal causa de perda total de saúde (morte prematura e problemas de saúde relacionados) em 2019.

Richard Horton, editor-chefe da Lancet, que publica o GBD, lembrou algo que o movimento sanitário internacional já fala há décadas: quando o assunto é a saúde das pessoas, não adianta olhar apenas para o setor da saúde. “Por mais que devamos, sim, focar em problemas do sistema de saúde, também precisamos prestar atenção em desafios de outras áreas que afetam o bem-estar das pessoas”, afirmou na coletiva de imprensa ontem. Ou seja: reduzir a pobreza impacta os indicadores. Elevar a escolaridade da população também, etc.

O estudo analisou 286 causas de morte, 369 doenças e lesões e 87 fatores de risco. E constatou o que Horton já havia adiantado, e por aqui foi destaque essa semana: há uma sindemia em curso. “Em todo o mundo, o aumento contínuo de doenças crônicas e fatores de risco relacionados, como maus hábitos e exposição à poluição, criou a ‘tempestade perfeita’ para o número de mortes durante a pandemia”, resume a reportagem da Galileu

REMDESIVIR INEFICAZ, SEGUNDO OMS

A Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou ontem os resultados parciais do ensaio Solidarity. A pesquisa, ainda sem revisão de pares, concluiu que o remdesivir é ineficaz no tratamento da covid-19. E outros três antivirais também: lopinavir/ritonavir, interferon beta-1a e a famigerada hidroxicloroquina. 

O caso do remdesivir, no entanto, precisa ser analisado com mais detalhes, dada a expectativa que gerou. O medicamento, que é usado para tratar hepatite C e ebola, logo despertou ansiedade. Ensaios clínicos para testar a droga fabricada pela farmacêutica Gilead foram feitos na China e nos EUA. A demanda era tanta que o Reino Unido não pode testar: não havia estoque de remdesivir disponível

Em abril, falamos por aqui do vazamento do estudo chinês, publicado por engano pela OMS em seu site. Ele desapontava: dos 237 pacientes estudados, 158 receberam a droga que não melhorou as condições de quem tomou, nem reduziu a carga viral dos pacientes. Além disso, 18 pessoas que receberam o medicamento tiveram efeitos colaterais  e precisaram parar de tomá-lo. 

Depois disso, foi divulgado aquele que era, até o momento, o maior estudo com o medicamento. Financiado pelo Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, acompanhou 1.063 pacientes em 22 países. Verificou que não havia lá muita diferença na taxa de mortalidade entre quem tomava e não tomava, mas uma expressiva distância no tempo de recuperação dos pacientes. Pessoas que receberam a droga tiveram alta do hospital em média quatro dias mais cedo. Com base nesses resultados, o remdesivir se tornou o único medicamento contra o novo coronavírus aprovado pela FDA em caráter emergencial. E a Gilead se fartou: anunciou em junho que cobraria de US$ 2.340 a US$ 3.120 nos EUA. Na sequência, o governo Trump adquiriu quase  todo o estoque da droga, deixando o mundo a ver navios por três meses. 

Agora, a notícia do Solidarity chega como um balde de água fria. O ensaio é randomizado e aconteceu em 405 hospitais sediados em mais de 30 países. Participaram 11.266 adultos: 2.750 tomaram remdesivir; 954, hidroxicloroquina; 1.411, lopinavir; 651, interferon e lopinavir, 1.412, apenas Interferon; e 4.088 fizeram parte do grupo controle, que não recebeu os medicamentos. No final, os medicamentos desempenharam pouco ou nenhum papel na redução da mortalidade e no tempo de internação. Foram relatados 1.253 óbitos durante a pesquisa. 

De acordo com a OMS, mesmo que o ensaio ainda precise passar pelo escrutínio científico, ele já produziu “evidências conclusivas” sobre os medicamentos.

VACINAS CHINESAS

Depois da pressão feita por gestores estaduais, o Ministério da Saúde teve que esclarecer critérios de escolha de quais vacinas pretende oferecer à população. Ontem, o secretário executivo da pasta, Élcio Franco, afirmou que o governo federal “não descarta nenhuma possibilidade” e “tem foco” nas candidatas que estão na terceira fase dos testes. É o caso da CoronaVac, a vacina chinesa feita em parceria com o Instituto Butantan, cuja ausência no cronograma do ministério disparou a reação dos secretários estaduais.

Ontem, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou que a fase 3 dos testes no Brasil termina no fim de semana e que o Butantan envia já na segunda os resultados à Anvisa. Na coletiva, ele disse que tem reunião marcada com Eduardo Pazuello na próxima quarta-feira, e que levará a tiracolo parlamentares na esperança de solucionar o impasse. 

Aliás, outra fabricante chinesa publicou resultados. A estatal Sinopharm divulgou na Lancet as fases 1 e 2 de seus testes clínicos. De acordo com o estudo, a vacina foi capaz de gerar anticorpos neutralizantes, inclusive em pessoas com mais de 60 anos – embora, neste caso, a resposta tenha levado duas semanas a mais para ser detectada. Nas Américas, a Argentina participará da fase 3. Por aqui, não há pedido de registro ou pesquisa dessa vacina na Anvisa. 

NA FILA

A cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, defendeu ontem que a vacina seja aplicada primeiro em profissionais de saúde, idosos e trabalhadores que lidam com o público. Já os jovens saudáveis podem esperar até 2022, segundo ela.

PROBLEMA NO AR

Apenas 28% das empresas de carga aérea acreditam estar preparadas para o desafio de transportar as vacinas contra a covid-19 pelo mundo. E nada menos que 19% se sentem “muito despreparadas” para o desafio. A pesquisa noticiada pelo STAT mostra como há muito trabalho a ser feito para tirar as campanhas de imunização do papel.

MAIS MILITARES

Ontem, saíram as nomeações dos diretores da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, criada para fiscalizar o cumprimento da lei que trata do assunto e foi aprovada em 2018. De cinco, três são militares. Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, que hoje preside a Telebras, ficará no comando da autoridade. Os outros são Joacil Basilio Rael e Arthur Pereira Sabbat, hoje lotado no Gabinete de Segurança Institucional. O quinhão que coube aos civis foi ocupado por uma representante do setor privado, a advogada Nairane Farias Rabelo Leitão, e por Miriam Wimmer, atual diretora de Serviços de Telecomunicações no Ministério das Comunicações.

A ANPD é muito importante para fazer valer o que diz a lei, e punir eventuais abusos das empresas… e dos governos. A militarização da autoridade sinaliza na direção de um alinhamento às vontades do presidente, assim como acontece no Ministério da Saúde.

Já fizemos duas reportagens a respeito desse tema, uma quando a lei foi aprovada e outra tratando justamente da criação da autoridade, que havia sido vetada por Michel Temer. Nessa última, a jornalista Marina Pita, do coletivo Intervozes, explicou porque era importante que a ANPD fosse uma autarquia e tivesse independência: “Os integrantes desse órgão seriam funcionários de carreira que teriam como atribuição enfrentar inclusive ministérios. Se o Ministério da Saúde decide coletar e compartilhar dados e a Autoridade entende que ele está equivocado, como seus integrantes – funcionários públicos – vão se contrapor a um ministro? É preciso que o órgão tenha autonomia, capacidade técnica e dirigentes em categorias mais altas”. Mas a ANPD foi aprovada como órgão vinculado à Presidência da República. Pode até virar autarquia daqui a dois anos, mas só se o governo quiser.  

A propósito: o ministro das Comunicações Fabio Faria foi diagnosticado com o novo coronavírus. E fez questão de dizer que está “se tratando” com hidroxicloroquina

NÃO E SIM

Em tom de reclamação, Paulo Guedes disse ontem que talvez desista da criação da nova CPMF. Na véspera, porém, o ministro da Economia havia defendido a ideia – e acusado a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) de pagar economistas para darem pareceres contrários ao imposto. 

REPROVAÇÃO CAINDO

Saiu outra pesquisa sobre o governo Jair Bolsonaro. Desta vez, o levantamento foi feito pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) a pedido da XP Investimentos. A popularidade do governo quase não mudou: 39% o avaliaram como ótimo ou bom, maior índice desde o inicinho da gestão, em fevereiro do ano passado, quando o número chegou a 40%. E a reprovação vem caindo: era de 38% em outubro passado, 36% no mês passado e 31% agora. O levantamento teve abrangência nacional e ouviu mil entrevistados, por telefone, entre a última sexta-feira e domingo. A margem de erro é de 3,2 pontos.

INDICAÇÃO DE RODRIGUES

Flagrado pela PF com R$ 30 mil na cueca, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) deixou o posto de vice-líder do governo na Casa. O Valor descobriu que ele teve influência em uma nomeação no Ministério da Saúde no ano passado. O indicado – Vitor Pacarat –assumiu o cargo de coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste, em Roraima. Na época, as etnias sob a supervisão do DSEI ocuparam as instalações do órgão em protesto, pois queriam outra pessoa no cargo.

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