Leila Rocha: a luta de uma das principais lideranças dos índios Guarani Kaiowá

Uma das líderes da retomada Yvy Katu (terra sagrada, em guarani), localizada no Mato Grosso do Sul, ela já teve arma apontada para o peito, mas não desistiu de lutar para retomar as terras de seus antepassados “Em nenhum momento abaixei a cabeça”

por Graziela Salomão, em Marie Claire

Quando você escuta pela primeira vez o jeito calmo de falar de Leila Rocha não imagina que ali, sob a sonoridade melódica de suas palavras que mesclam o português com o guarani, está uma mulher tão forte e com um único objetivo de vida: retomar as terras de seus antepassados. Da etnia Guarani-Ñandeva, ela é uma das líderes da retomada Yvy Katu (terra sagrada, em guarani), localizada no município de Japorã, no Mato Grosso do Sul, próximo à fronteira com o Paraguai e ao rio Paraná.

Representante dos Guarani e dos Kaiowá, já viajou para diversos países, incluindo uma ida ao Vaticano no ano passado, na tentativa de encontrar o Papa Francisco e trazer luz à sua luta. Atualmente há cerca de 280 mil indígenas do povo guarani na América Latina, sendo que 60 mil das etnias Guarani Kaiowá e Ñandeva vivem em Mato Grosso do Sul, de acordo com o estudo “Mapa Guarani Digital”, organizado por mais de 200 colaboradores, entre comunidades guarani, indigenistas e acadêmicos. “Eles estão distribuídos em uma centena de aldeias, a maioria reconhecidas como retomadas e poucas delas regularizadas pelo estado brasileiro”, explica a antropóloga Lauriene Seraguza Olegário e Souza.

A retomada do Yvy Katu do qual Leila faz parte aconteceu em 2013 e a demarcação saiu no mandato da Presidenta Dilma Rousseff. Desde então, eles lutam contra as várias tentativas de serem expulsos – seja por fazendeiros ou pela Polícia Federal – esperando a homologação que ainda não saiu e foi paralisada em 2019. Essa situação ainda pode sofrer mais um revés no próximo dia 28 de outubro, quando o Marco Temporal for votado pelo Supremo Tribunal Federal. Se a tese for aprovada, o Yvy Katu passaria a não existir, assim como mais uma centena de outras aldeias.

Segundo a antropóloga, as retomadas de terra realizadas pelos Guarani Kaiowá são importantes não apenas pelo espaço físico reconquistado, mas também pela recuperação das redes de parentesco e de conhecimento dos indígenas. “Elas são estratégias de ação política lideradas, principalmente, por mulheres de acordo com o kuña reko [o modo de ser das mulheres guarani e kaiowá]. É por isso que costuma-se se ouvir por lá que, sem mulher, não há tekoha”, afirma.

Aos 59 anos, Leila, que para os guarani significa “mulher sol”, ou seja, aquela que traz a força do enfrentamento, garante que não vai desistir. Viúva há 16 anos, mãe de 5 filhos, avó, “mas ainda não bisavó”, como gosta de ressaltar, Leila enaltece a força da mulher guarani. “Nós, mulheres, somos guerreiras”. E, complementa, bem-humorada: “E muito bravas”. Ela já enfrentou de tudo, incluindo um revólver apontado para o peito, mas mesmo assim não teme em lutar por sua terra, palavra mais repetida durante a conversa que teve por telefone com Maire Claire. Confira a seguir.

Marie Claire: Do que você se lembra quando pensa na sua infância em sua terra?
Leila Rocha: Eu cresci junto com meu avô e meu bisavô. Esse tekoha [que significa lugar onde o guarani vive a sua tradição] é onde eu morava. Antigamente as crianças viviam brincando no rio. Pegava o sabugo do milho para virar boneca e pano velho para virar roupa dela. Meu pai plantava mandioca, milho, arroz, batata, abóbora. A gente vivia muito tranquilo. Agora tudo isso acabou. Vivemos em um grande sofrimento. Para falar a verdade, a gente está vivendo pela esmola porque a terra que recuperamos novamente foi maltratada com gado. Onde era a aldeia, o fazendeiro entrou e derrubou tudo. Mas eu fecho os olhos e vejo, até hoje, o mato que existia aqui na minha infância. É muito difícil você crescer em um meio e ficar olhando aquele lugar e não ter mais nada. Vem aquela dor muito grande. Para mim, como mulher lutadora, fico muito triste de olhar o Yvy Katu. Ele é dos indígenas. Eu cresci aqui, tinha o cemitério, uma casa de reza. Esses lugares foram destruídos, mas eu sei onde está cada um. Sei onde meu avô, bisavô e tataravô estão enterrados, mesmo que estejam plantando em cima ou jogando semente de braquiária. Na minha cabeça, no meu pensamento, nos meus olhos não sai aquela imagem. Sempre falo para os meus filhos que andei canto por canto deste Yvy Katu. Ninguém vai falar que a Leila não é daqui.

MC: Já pensou em desistir?
LR: Já passei tanta coisa. Você não imagina o que é sacrifício nem ameaça. Tem momentos em que você pensa em desistir, mas olha para o seu povo e ergue a cabeça novamente. A luta pela terra não é fácil.

MC: Quando você decidiu ir à luta?
LR: A gente fez a primeira retomada em 2003 e esperamos dez anos [para recuperar o espaço em sua totalidade] porque o fazendeiro voltou para o Yvy Katu. Quando soube que se ninguém fizesse a retomada, a terra seria anulada, fiquei preocupada. Se a gente não fizesse nada para defender essa terra, quem defenderia por nós? Quando viesse a anulação, a gente iria perder e ficaria para sempre na mão do fazendeiro. Conseguimos demarcar a terra, mas falta a homologação. Eu não vou abaixar minha cabeça de jeito nenhum. Faço parte do Conselho da Aty Guasu [Grande Assembleia Kaiowá e Guarani] e da Kuñague Aty Guasu [Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani]. Já estou há quase sete anos ali. Viajei para fora do país para representar os povos Guarani e Kaiowá e defender nossa terra tradicional. É muito importante essa convivência para defendermos juntos nosso território. Onde a gente vive é nosso.

MC: Tem ficado mais difícil nos últimos anos?
LR: Sim, porque a gente não tem previsão de quando vamos ganhar definitivamente a terra. Ninguém sabe mais quando a homologação vai sair. Tudo foi paralisado por esse governo. Em uma reserva como essa, estamos em um chiqueiro. Estou tirando a minha comunidade que está sofrendo em uma reserva muito apertada para retornarmos para o nosso território.

MC: Qual foi o momento em que você sentiu mais medo?
LR: Quando enfrentei a Polícia Federal com arma no peito. Ele falou para eu tirar todo o povo dali em 15 minutos senão ia atirar. A arma era grande e não estava longe nem 20 centímetros de mim. Naquele momento, saiu um medo da minha cabeça e do meu corpo. Eu disse: “não saio. Se você veio para retirar e matar os indígenas que estão no lugar deles, me mata primeiro. Depois você faz o que quiser, mas peço que não machuque a todos”. Nessa hora, o sol começou a amarelar e pegou todo o lugar. Uma mulher falou pra mim: “Leila, olha para o céu e veja o que aconteceu. Ele não vai ter coragem de te matar porque quem está te protegendo é o Sol”. E depois falou pra polícia: “você veio para matar indígena e o sol se transformou desse jeito”. Outro rezador veio do meu lado e falou em guarani: “Olha no céu, mulher sol. Você não vai morrer, o sol não vai deixar. Se ele fizer algo com você, o sol vai queimar”. E aí o policial abaixou a arma e foi embora. Ele queria era saber quem era a liderança dali, mas ninguém disse que era eu. Se ele soubesse, me pegaria ou mandaria me matar. Já passei por tantas ameaças, enfrentei juiz que mandou nove despejos. Mas, em nenhum momento, abaixei a cabeça. Eu me cuido, não saio sozinha. Vou para a cidade só se for muito necessário, e sempre acompanhada. As pessoas ainda estão de olho nessa terra.

MC: O que sentiu quando teve que sair da sua terra pela primeira vez?
LR: Tinha 8 anos. Quando você pensa do jeito que foi jogado na outra reserva, que você não é acostumada, largou tudo o que tinha, o que plantou, e vem outra pessoa no lugar e destrói tudo. É muito triste. Fica aquela lembrança. Por esse motivo, quando tinha 10 anos falei para meu pai que eu ia voltar para essa terra de novo porque ela pertence a nós. Meu pai perguntava “em que tempo vai acontecer isso, filha?”. Eu falava que não sabia, mas traria minha família para cá porque nunca ia esquecer o lugar que eu nasci, que meu avô e meu bisavô estão enterrados. E eu fiz isso. Estou aqui no Yvy Katu.

MC: O que você sentiu quando voltou?
LR: Eu senti a força que veio junto comigo. Meu pai e minha mãe me deram esse nome de enfrentamento porque o Sol é esse calorão que ninguém aguenta. A mulherada falou: “Leila, se você vai fazer a retomada da nossa terra, estamos com você”. Elas têm uma coragem muito grande. Eu falei: “eu vou entrar, nem que seja para alguém me matar. E se isso acontecer, alguma de vocês precisa ter coragem de assumir meu lugar”. Mas eu sempre lembrava do meu pai que disse que isso não ia acontecer. Ele falou: “filha, onde estiver, vou olhar pra você. Te defendo e nunca vai acontecer nada de mal pra você, pra sua família ou pra quem está do seu lado”. E foi assim. Nenhum guarani caiu. Alguns tentam nos despejar, mas eles sabem que aqui tem guerreiro. A gente enfrenta mesmo. É mulher que enfrenta a Polícia Federal. Mulher guarani é muito brava (risos).

MC: O que é ser uma mulher guarani?
LR: Quando a mulher guarani coloca algo na cabeça, ela pega e faz sem medo. Ou ela morre ou ela não morre. só vou desistir quando morrer. Vou lutar sempre. Aqui é o lugar da minha família. Nós, mulheres, não nascemos só para ser mães, trabalhar dentro da casa, olhando o marido. Nós, mulheres, somos guerreiras. Uma mulher é como um pé de árvore fincado no chão e que os passarinhos descem para ficar ali. Sem mulher, nenhum filho sobrevive. Sempre falo pros meus filhos que não é brincadeira uma mulher entrar em uma guerra pelo seu território.

MC: E o que é envelhecer para as guarani?
LR: Acho que é você entender mais as coisas. Como indígena, não me importo em ficar velha. Eu estou beirando os 60 anos, mas sou bem forte. Posso fazer a retomada de 2 ou 3 tekoha (risos). O importante é você ter um coração bom, que tenha vontade de fazer, de conversar, de plantar, de colher. Tem pessoa que fala que está velha e não consegue fazer mais nada, mas não é isso. É falta de interesse e de usar a cabeça.

MC: Qual é o seu maior sonho?
LR: Meu maior sonho é ter a homologação desta terra antes de eu morrer. Durmo e levanto pensando nisso. O dia que ela sair eu já posso morrer feliz.

Leila Rocha (Foto: Guilherme Cavalli/Cimi)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.

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