Cegueira deliberada, por Kakay

Jurista analisa 2ª onda da covid-19, Diz que Brasil segue rota perigosa

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, no Poder360

“Olhos, / vale tê-los, / se, de quando em quando, / somos cegos / e o que vemos / não é o que olhamos / mas o que o olhar semeia no mais denso escuro. / Vida, / vale vivê-la / se, de quando em quando, / morremos / e o que vivemos / não é o que a Vida nos dá / nem o que dela colhemos / mas o que semeamos em pleno deserto”. (Mia Couto)

A expressão crispada, de choro, do Presidente da França anunciando, em rede nacional, o recrudescimento das ações de controle em todo o país para enfrentar a 2ª onda do vírus foi comovente. O desespero da crise econômica que se agudiza, o medo do desconhecido, a certeza das mortes, a dor das doenças. Uma desgraça real rondando o mundo inteiro e tirando o ar das pessoas, sufocando as esperanças e gerando incredulidade e perplexidade. Um clima de caos e ansiedade dominam boa parte do planeta. A poderosa Alemanha se prepara para um enfrentamento deste inimigo invisível e letal.

A força desestabilizadora da praga exerce, na visão dos especialistas, fundamental influência no resultado das eleições nos EUA. O fascista mor, o ídolo deste protótipo tupiniquim, está prestes a perder uma reeleição por ter desdenhado da Covid.

O mundo se mobiliza, assustado e atônito, com a onda de depressão, com os efeitos colaterais da doença, com o desemprego brutal em alguns setores, com o isolamento que provoca efeitos ainda a serem estudados. Jovens que veem, tristes, suas adolescências serem tragadas por uma nuvem de solidão e incredulidade. Uma época de sonhos e descobrimentos perdida. Enfim, uma onda de angústia invade boa parte dos que ousam tentar ter lucidez.

E aqui ao nosso lado, nas nossas barbas, o país segue como num show de calouros. Ou num show de horrores. Idiotas queimando máscaras em frente à Embaixada da China. Um ministro das Relações Exteriores se vangloriando de o país ser pária internacional. Enchendo o peito com o orgulho para se proclamar fora do rol de países sérios, respeitados.

Já são 88 países que vetaram a entrada de brasileiros em função da maneira criminosa com que o governo enfrenta a pandemia. Um ministro da Saúde reconhecendo que não sabe o que é o SUS (Sistema Único de Saúde) e, talvez pior, o ministro que sabe o que é o SUS tentar privatizá-lo. No Meio Ambiente, o isolamento e o desprezo internacional já nos fazem corar de vergonha. A situação é tão catastrófica que as “Damares” e os “Onyxs” perderam espaço no noticiário vulgar do dia a dia. Falta ler T.S. Eliot:

“Os homens ocos.
Nós somos homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.
Aí de nós!

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo,
estacas cruzadas.”

E a discussão do momento é uma campanha sórdida para não vacinar as pessoas. É muito mais do que o governo pregar que a vacina não será obrigatória. É uma campanha dirigida para fanáticos e lunáticos que acreditam que a terra é plana, para fazer crer que não se deve vacinar. É a tentativa de fazer as pessoas lúcidas, responsáveis, nossos filhos inclusive, serem obrigadas a conviver no mesmo espaço físico com estes descerebrados que negam a ciência. Aceitam a necessidade de vacinar o gado contra a febre aftosa, mas não aceitam a vacina contra o vírus da covid-19 Uma demonstração óbvia de que só pensam na saúde deles, de falta de empatia. Recorro-me à cultura popular de um trovador nordestino, Patativa do Assaré:

“Meu caro jumento
Meu caro amigo jumento
Que tanto sofre e padece,
Seu grande merecimento
Muita gente não conhece.

Veve sempre no castigo
Debaixo da sujeição,

Com a cangaia no lombo
Sem ninguém lhe respeitá

Quando um berro você sorta
É um siná de revorta
Contra a farsa humanidade.

Acho sê um desaforo,
Um crime, um grande pecado,
Um sacrilejo, um capricho,
Botá cangaia no bicho
Que Jesus andou montado.”

Tristes e estranhos tempos! A imbecilidade dominou e dividiu o país. Para este grupo irracional, a vacina é comunista! O que a falta de leitura, o obscurantismo e a estupidez não fazem com um povo! É o uso da ignorância como estratégia de dominação. O obscurantismo e a fé como aliados inescrupulosos do atraso, como maneira de exercer o poder. Assim como o conhecimento liberta o homem, a falta absoluta dele pode ser uma deliberada aposta de controle, uma manipulação calculada do rebanho de estúpidos.

É necessário nos indignar. Não nos restam mais tempo, calma e mínima tranquilidade para o enfrentamento das vicissitudes. Nosso esforço e nossa força deveriam estar todos canalizados para o enfrentamento das sérias crises econômica e sanitária. Sem contar o desalento de ver amigos que não voltarão mais a ocupar, juntos e leves, as mesmas mesas. Não dá mais. Não tem volta. Não quero que tenha volta. A revelação de falta explícita de caráter, da ausência eloquente de humanismo, da presença velada de racismo, até certo orgulho e empáfia da crueldade vão deixar, e têm que deixar, marcas indeléveis.

Aquelas desavenças que vez ou outra se apresentavam ainda eram superadas. Agora, parece que o governo inoculou nestes grupos uma dose de ânimo para que saíssem de todos os armários o preconceito, o desprezo pelos direitos mínimos das pessoas, a falta de dignidade, o ódio pelo outro, enfim, a desumanização das relações.

Esse é o legado deste tempo. Se algo pode acontecer de positivo destas trevas é esta consciência de que não podemos ser coniventes com esta opção de um grupo pela barbárie. Não sou dos que acredita que a humanidade sairá melhor depois desta tragédia. Ao contrário, sairemos mais pobres, com menos opções de crescimento, com atraso em pesquisas paralisadas, com destruição de avanços consideráveis em quase todas as áreas. Sairemos menores.

A crueldade e a indiferença vingaram. O Brasil sai esfacelado deste desgoverno e estamos, o país, numa UTI sem muita perspectiva. Um muro invisível nos separa, nos divide. Qualquer movimento humanista é sufocado como se tivessem retirado os respiradores. O mundo todo enfrenta a tragédia do vírus. Aqui, porém, houve uma modificação genética e o nosso vírus se tornou uma máquina de extermínio também da racionalidade, da solidariedade. Boa parte das nossas forças é destinada ao combate a uma boçalidade que nos envergonha e que se multiplica perigosamente. É ler o Poema em linha reta, de Pessoa na pessoa de Álvaro de Campos:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado, para fora da possibilidade do soco.

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia,
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”

Se algo de positivo pode ser pensado neste momento é a reflexão sobre a necessidade de um real embate com estes bárbaros. Seja pela política institucional ou partidária, pelo deboche, pelo desprezo, pela poesia, pela força das palavras. Vamos resistir por escrito, pelas ações e até pelo silêncio. Ser solidário agora é ter lado. Se de alguma forma nossa resistência tem chance de melhorar o mundo é pelo posicionamento, pela não omissão.

Eles são tangidos por um barulho qualquer que pareça o som de um berrante; com os olhos vendados caminham plácidos rumo a um precipício. Mas deixam onde passam, como em um estouro de uma boiada, um rastro de destruição, uma terra arrasada. Nós temos que ser a cerca que divide e impõe limites a esta fúria indomada.

A ignorância parece não ter limites. Mas, repito, o uso dos “ignorantes” é pensado, estratégico, manipulador. Resta a coragem de fazer o embate no dia a dia. É necessário nos expor, dizer não, acreditar no sim, mostrar que a vida vale um sacrifício, sair do imobilismo e ter a ousadia como companheira de resistência. Sem medo de ser feliz. Com a singeleza de Saramago:

“No teu ombro pousada,
a minha mão
toma posse do mundo.
Outro sinal não proponho de mim ao que defino:
Que no mínimo espaço
desse gesto
se desenhe as formas do destino.”

Elysee.Fr – 20.out.2017 (via Fotos Públicas) Foto: Elysee.Fr

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

treze + doze =