Conselheiro do CNMP Marcelo Weitzel chegou a afirmar que Darcy Ribeiro teria fala semelhante. Antropólogo refuta veementemente comparação
Por Roberto de Martin, na Carta Capital
Após adiar por oito vezes o julgamento do procurador do Ministério Público do Pará, Ricardo Albuquerque, o CNMP decidiu, pelo placar de 7 X 2, inocentá-lo da acusação de racismo. A audiência, que aconteceu nessa terça-feira, 27, foi resultado de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) movido por organizações quilombolas e outros movimentos sociais, após declarações racistas de Albuquerque.
Em 26 de novembro de 2019, durante evento com estudantes de direito na sede do Ministério Público do Pará, o então ouvidor-geral da instituição fez afirmações contra indígenas e negros, afirmando, entre outras coisas, que não existe “dívida nenhuma com quilombolas”, uma vez que “nenhum de nós tem navio negreiro”, e que o “problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar”, complementando em seguida: “Foi por causa disso que eles foram buscar pessoas nas tribos na África, para vir substituir a mão de obra do índio. Isso tem que ficar claro, ora”.
Apesar de ter renunciado ao cargo de ouvidor após a repercussão das falas racistas, Ricardo Albuquerque à época argumentou que as frases haviam sido tiradas do contexto original, e que, durante vários momentos da palestra, afirmou que “todos são iguais perante a lei”. Ele justificou ainda que tratava-se de um debate acadêmico, invocando uma suposta liberdade de cátedra.
Entendimento semelhante teve um dos sete conselheiros que votou pela absolvição de Albuquerque, o procurador Marcelo Weitzel Rabello de Souza. O site Jota informa que em seu voto Weitzel chegou a atribuir a Darcy Ribeiro e Sergio Buarque de Hollanda opinião parecida em relação aos índios que habitavam o Brasil quando os portugueses aqui chegaram: “A aula durou 1h20 e apenas o trecho em questão de apenas um minuto foi objeto de crítica. E Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, todos autores que ratificam o que ele diz. Foi trabalho de cátedra, não houve dolo, voto pelo arquivamento”, disse Weitzel, de acordo com o Jota.
O argumento de que Albuquerque usou de sua “liberdade de cátedra” foi reforçado pelos outros conselheiros que o inocentaram. Em seu site, a organização de Direitos Humanos “Terra de Direitos”, uma das entidades responsáveis pelo processo contra o procurador do MP do Pará, traz declaração da assessora jurídica Maíra Moreira, refutando a liberdade de cátedra como justificativa: “À época, o ouvidor foi convidado na condição de membro do Ministério Público. Além disso, caso estivesse de fato em exercício de cátedra, essa liberdade não é absoluta, ela precisa conviver com o sistema de direitos que protege os grupos étnico-raciais minoritários e o direito de não sofrerem discriminação justamente pelo ator institucional responsável por sua escuta”, afirmou.
Fala atribuída a Darcy Ribeiro é falsa
Conversamos por telefone com o professor de Antropologia da UFRJ, Mércio Gomes, para saber se, de fato, Darcy Ribeiro e Sergio Buarque de Hollanda teriam dito a frase atribuída a eles. Gomes refutou completamente a opinião de Marcelo Weitzel. Segundo ele, ambos jamais disseram que a escravidão se deu no Brasil “porque índio não gosta de trabalhar”.
Gomes afirma que esse é um tipo de visão que denota ignorância e que vem sendo desmentida há, pelo menos, um século por pesquisadores que estudam as populações indígenas: “É um engano terrível. É um pensamento muito vulgar e desorientado, sobretudo para um procurador, um advogado, que cursou a universidade. Primeiro, de falsificar a verdade a respeito de Darcy e Sergio, de que teriam dito isso, segundo, de não entender que o índio resistiu à escravidão, não por não gostar de trabalhar, mas, sim por uma recusa a ser explorado”.
Mércio Gomes, que foi presidente da Funai na primeira gestão de Lula, ainda lembra que antes de os portugueses chegarem ao Brasil, com o machado de ferro, os índios abriam as matas com machado de pedra. Gomes conviveu com Darcy Ribeiro e foi seu subsecretário de Planejamento no governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro.
Votos
Além de Marcelo Weitzel, votaram contra a punição os conselheiros Luciano Nunes Maia Freire, Sandra Krieger, Silvio Roberto Oliveira de Amorim Junior, Oswaldo D’Albuquerque e Fernanda Marinela. O relator do caso, Rinaldo Reis, que em março havia votado pela instauração do Processo Administrativo Disciplinar, voltou atrás, isentando Ricardo Albuquerque do crime de racismo.
Os dois votos em favor da instauração do processo foram dados por Sebastião Vieira Caixeta e Humberto Jacques de Medeiros. Caixeta reiterou que a liberdade de cátedra não autoriza a manifestação preconceituosa do Ministério Público: “Se essa manifestação não é preconceituosa eu não sei o que é”, disse.
Representação
O julgamento foi resultado de uma reclamação disciplinar apresentada em dezembro passado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), pela Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu), pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e por um conjunto de entidades como a Terra de Direitos e os Coletivos Margarida Alves de Assessoria Popular, Antônia Flor e o Coletivo Jurídico da Conaq Joãozinho de Mangal.
A reclamação protocolada pedia a instauração de um procedimento administrativo que apure faltas disciplinares cometidas pelo procurador de Justiça, além de responsabilização criminal. Com informações da Terra de Direitos.
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Procurador de Justiça do Pará Ricardo Albuquerque — Foto: Divulgação/ MPPA