Assinada por Sérgio Camargo, norma exclui personalidades como Zezé Motta, Elza Soares, Gilberto Gil e Martinho da Vila
Cristiane Sampaio, Brasil de Fato
Neste 20 de novembro, quando se celebra o Dia da Consciência Negra, a data foi lembrada em Brasília (DF) com mais uma manifestação política contra a atual gestão da Fundação Cultural Palmares, comandada desde 2019 por Sérgio Camargo.
Em cartazes e brados de protesto, militantes de diferentes organizações civis que atuam no movimento negro reforçaram o pedido pela extinção da Portaria nº 189. Publicada pelo mandatário no ultimo dia 10, a norma altera a política de escolha de personalidades negras que constam na lista oficial de homenageados pela entidade.
A portaria converteu a reverência, anteriormente concedida também a pessoas em vida, em uma homenagem exclusivamente póstuma. Com isso, no próximo dia 1º, quando o dispositivo entrar em vigor, diversos nomes serão excluídos da lista. Entre eles, estão os dos cantores Martinho da Vila, Gilberto Gil e Elza Soares e o da atriz Zezé Motta.
Esta última virou símbolo de um cartaz exibido pelo professor e artista plástico Ronaldo Ferreira, que lembrou a importância da trajetória da atriz e se juntou ao protesto na porta da Fundação.
“Zezé Motta é uma das figuras de referência na luta das questões do negro aqui no Brasil, sobretudo do segmento artístico. É uma lutadora, grande artista da nossa cultura, da arte brasileira”, ressalta Ferreira.
“Isso é uma atitude racista do governo, uma atitude que realmente não podemos admitir de jeito nenhum. É um crime contra a dignidade, contra essas pessoas que são referência na nossa história”, critica.
Já a produtora cultural e mãe de terreiro Sueli Gama veio lembrar a trajetória de Nelson Mandela. O líder sul-africano, um dos nomes mais emblemáticos da humanidade, é referência na batalha contra a segregação racial, um horizonte pelo qual Sueli luta cotidianamente. Ela entende que uma mudança de rumo na condução da Fundação seria fundamental para as políticas de igualdade racial no Brasil.
“O que me motivou a estar aqui foi a vontade de repudiar um presidente que assumiu uma pasta tão importante, principalmente para as comunidades de terreiros e quilombolas, e que realmente não tem preparo nenhum pra estar no cargo onde está”, diz.
Os participantes do ato lembraram ainda o conjunto de manifestações de Camargo à frente da autarquia. O presidente já fez, por exemplo, diversas afirmações de cunho racista. Entre outras coisas, ele chegou a dizer que no Brasil não há “racismo real”, que a escravidão teria sido “benéfica para os seus descendentes” e que o movimento negro deveria ser “extinto”.
Representantes do segmento apontam que a conduta é uma sabotagem dos valores e das políticas que deveriam ser implementadas pela entidade, criada em 1988 para proteger, preservar e promover a cultura negra.
“A Fundação é um dos maiores símbolos de luta da população negra brasileira. Ela é responsável pelo registro da nossa memória, por isso precisa promover políticas públicas na área cultural, e não ter um presidente com essa conduta”, diz Joseanes Lima dos Santos, da Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal e Entorno. .
“Defender a Palmares conforme a natureza da sua criação é defender que seja perpetuado e garantido o legado civilizatório trazido por vários povos africanos”, ressalta.
Representação
O advogado Marivaldo Pereira, integrante do movimento negro, também acusa a entidade de cometer mais um ato de racismo ao editar a portaria. Ele conta que, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), provocou a Fundação Palmares a explicar os motivos que teriam fundamentado a produção da nova norma.
O Brasil de Fato teve acesso ao documento, classificado internamente como Nota Técnica Nº2/2020/Ascom/PR. Nele a instituição faz referência ao risco de conflitos com a Justiça por parte de pessoas vivas que eventualmente sejam homenageadas.
“Ainda em vida, uma biografia está aberta a receber mais páginas, que podem enaltecer ou macular a pessoa. (…) Pessoas que contribuíram, de modo notável, por sua influência pessoal, com a história do Brasil e do mundo não são apenas as falecidas. Quando vivas, porém, suas biografias encontram-se em construção. Posteriormente, podem ser condenadas na Justiça, renegar seu passado, ter se passado por herói sem sê-lo”, argumenta a entidade.
Como protesto, Marivaldo Pereira organizou a produção de uma representação enviada na quinta-feira (20) ao Ministério Público Federal (MPF) para pedir providências em relação ao caso.
“Nós pedimos que seja suspensa essa portaria, que busca uma verdadeira perseguição às personalidades negras que marcaram a nossa história e que foram homenageadas em gestões anteriores da Palmares”, explica Pereira. “Mas não só isso”, adianta.
O advogado informa que a representação também contempla questões como uma desaceleração da publicação de editais por parte da instituição e baixa execução orçamentária.
“Nós também resgatamos todo o histórico das ações do Sergio Camargo à frente da Palmares e comprovamos ao MP que ele está sabotando a Fundação”, conclui.
Números oficiais do governo mostram que, até 30 de setembro deste ano, a entidade executou apenas 47,52% das verbas previstas para 2020. O dado é um dos destaques da representação enviada ao MPF.
O documento é assinado também por mais de 40 organizações civis do movimento negro e se soma a um conjunto de ações articuladas pelo grupo neste período de comemoração do Dia da Consciência Negra.
Fundação
O Brasil de Fato tentou ouvir a Fundação Palmares a respeito da pauta do protesto desta sexta-feira, mas ainda não obteve retorno.
Edição: Leandro Melito
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Imagem: Protesto em frente à sede da Fundação Palmares reuniu representantes de diferentes organizações civis – Cristiane Sampaio