Fazer previsões políticas para o pleito de 2022 é precipitado, diz o historiador
Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos, em IHU On-Line
O resultado das eleições municipais deste ano, apesar de indicarem a derrota do PT e o enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro, “não autorizam nem referendam a conclusão de que os extremos foram derrotados”, diz Valério Arcary. Segundo ele, as análises que tentam igualar o desempenho dos candidatos bolsonaristas e dos da esquerda, fazem “uma nivelação e um simplificação” do que ocorreu.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, ele afirma que o bolsonarismo, expresso de forma dispersa através de várias candidaturas, saiu enfraquecido, mas o Centrão que apoia o presidente teve uma vitória eleitoral. “Se o bolsonarismo foi política e eleitoralmente derrotado e sai enfraquecido, o Centrão governista teve uma vitória eleitoral: ampliou o número de prefeituras, sobretudo nos pequenos municípios, e elevou sua influência sobre a proporção do eleitorado que é governado por esta floresta de pequenos partidos de aluguel e, portanto, o controle orçamentário”, afirma.
Já a situação eleitoral da esquerda, apesar de o PT não vencer em nenhuma capital, precisa ser analisada em retrospectiva aos dois últimos pleitos. Desta perspectiva, acentua, a esquerda “teve uma recuperação relativa” e, com o protagonismo exercido pelo PSOL, “a relação política de forças no interior da esquerda mudou”, assegura.
Arcary também faz uma breve projeção para o cenário político, social e econômico do país no próximo ano e estima que “2021 será um ano de grandes conflitos sociais no Brasil“, especialmente por conta dos efeitos da pandemia e das incertezas acerca da política pública que irá substituir o Programa Bolsa Família.
Em relação ao futuro político para 2022, ele é categórico: “Qualquer prognóstico para as eleições de 2022 seria precipitado”.
Valério Arcary é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. É professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP.
Valério Arcary e Altamir Tojal estarão participando da palestra online intitulada “Eleições 2020. Novidades, perspectivas e impasses tendo em vista as eleições de 2022”, na próxima quinta-feira, 03-12-2020, no canal do IHU no YouTube. Mais informações aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram os aspectos fundamentais que marcaram o segundo turno das eleições municipais?
Valério Arcary – Podemos resumir em algumas notas prévias os aspectos fundamentais que merecem ser destacados como conclusões deste segundo turno, lembrando que as eleições locais são diferentes das eleições gerais, quando se elege simultaneamente a presidência da República, o Congresso e os governadores. As eleições locais são muito distintas porque são introduzidos fatores de distorção que correspondem aos conflitos da pequena política local. Por outro lado, também é necessário alertar que um processo de eleição municipal em milhares de municípios, quando os números são totalizados, produz uma distorção porque há um Brasil profundo, ou seja, estamos falando de um país continental, como muito poucos no mundo. O Brasil é muito diferente do Uruguai, do Chile ou da Argentina, por exemplo. Além disso, o Brasil, entre os países periféricos, tem uma taxa de urbanização muitíssimo elevada, acima de 85% da população. Isso faz com que cerca de cem cidades tenham mais de 450 mil habitantes e, dentro delas, há 20 cidades com um milhão ou mais de habitantes e, dentre essas 20 cidades, existem duas grandes regiões metropolitanas que estão entre as dez ou 15 maiores do mundo. Isso posto, vamos entrar nas observações mais importantes.
Enfraquecimento do bolsonarismo
A primeira é que o bolsonarismo saiu enfraquecido. A rigor, o movimento bolsonarista – uma coalizão de múltiplos partidos que dão sustentação ao governo de extrema direita dentro desta multiplicidade de partidos –, e especialmente a corrente diretamente representativa do clã de Jair Bolsonaro, não conseguiu articular um partido a tempo de poder participar das eleições. Portanto, o bolsonarismo se expressou de forma dispersa através de vários partidos. Aquilo que poderíamos denominar de bolsonarismo raiz venceu apenas em uma capital, Vitória. É uma vitória – me perdoem o trocadilho – dramática, porque se trata da eleição do delegado que tentou impedir o direito de uma criança ao aborto. Mas, enfim, dramaticamente ele venceu.
Aquilo que podemos denominar de Centrão governista ganhou seis capitais e elas não estão entre as mais importantes do país: Cuiabá, Campo Grande, Manaus, Rio Branco, João Pessoa e São Luís. Mas o bolsonarismo sofreu uma dura derrota no Rio de Janeiro, com Crivella [Republicanos]. Russomanno [Republicanos] terminou com apenas 10% dos votos em São Paulo, quando tinha iniciado a campanha em primeiro lugar. Os demais candidatos bolsonaristas em Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis e Belo Horizonte também não tiveram senão um desempenho marginal.
O PSL, partido que recebeu a verba mais volumosa do fundo eleitoral, não ganhou em nenhuma das seis cidades mais populosas do país. O Republicanos, embora seja uma sigla importante e tenha no seu interior um forte peso bolsonarista, responde essencialmente à Igreja Universal e perdeu peso no eleitorado governado: caiu de 7,1 milhões de eleitores para 5,3 milhões, vencendo em apenas três das cem maiores cidades. Candidatos bolsonaristas perderam em outras capitais, mas tiveram resultados expressivos em outras cidades: Eguchi [Patriota], em Belém, que surpreendeu chegando ao segundo turno e o capitão Wagner [Republicano da Ordem Social], em Fortaleza. Eles representam a potência do bolsonarismo raiz nas forças armadas militares e policiais nos estados. Vale notar que bolsonaristas ganharam em algumas cidades médias, que têm seu significado, como São Gonçalo [Rio de Janeiro] e Anápolis [Goiás].
Outro aspecto que não pode ser esquecido é o da dinâmica aberta a partir de setembro e outubro, com uma elevação muito significativa da rejeição de Bolsonaro em todos os grandes centros urbanos. Isso significa uma inflexão política do quadro que tivemos entre julho e agosto, quando o impacto da distribuição do auxílio emergencial tinha melhorado a imagem da Presidência.
Vitória eleitoral do Centrão
Se o bolsonarismo foi política e eleitoralmente derrotado e sai enfraquecido, o Centrão governista teve uma vitória eleitoral: ampliou o número de prefeituras, sobretudo nos pequenos municípios, e elevou sua influência sobre a proporção do eleitorado que é governado por esta floresta de pequenos partidos de aluguel e, portanto, o controle orçamentário – embora ainda numa posição inferior à representação tradicional da classe dominante brasileira, que me parece impróprio e inadequado definir como de centro.
Na verdade, o bloco liderado pelo PSDB, MDB e o fortalecido DEM é uma expressão política da direita liberal. O Centrão governista venceu em seis capitais, ainda que não sejam as principais de cada região. Merece destaque o fortalecimento dos progressistas do PP e do PSD, de [Gilberto] Kassab. Republicanos e Podemos perderam espaço em termos relativos do eleitorado sob a sua gestão. Esses partidos da direita tradicional não bolsonarista obtiveram uma vitória eleitoral: venceram em 15 capitais, ganharam a maioria das principais cidades do país e venceram em São Paulo com Bruno Covas, no Rio de Janeiro com Eduardo Paes, em Belo Horizonte com [Alexandre] Kalil, em Salvador com o herdeiro do ACM Neto, em Curitiba com a reeleição de [Rafael] Greca, e venceram, finalmente, também em Porto Alegre com [Sebastião] Melo, do MDB.
O destaque é para o DEM, que venceu quatro capitais e disputa ainda Macapá. Além disso, o partido ampliou de forma significativa a sua participação no eleitorado governado de 7,9 para 17,7 milhões de habitantes, e a receita orçamentária de 32,5 para 91 bilhões de reais. E ganhou, finalmente, em dez dos cem maiores municípios.
O PSDB caiu em termos de prefeitura e de eleitorado governado, que passou de 34,6 milhões de habitantes para 24,8 milhões. Perdeu receita orçamentária controlada de 183,2 para 155,1 bilhões, mas obteve um resultado muito expressivo no estado de São Paulo porque venceu na capital e isso, evidentemente, tem um sentido simbólico, político e ideológico fundamental, e em quase 200 municípios no estado. Além disso, o PSDB venceu em 16 dos cem maiores centros urbanos do país. O MDB fez cinco capitais e Porto Alegre é, de longe, a mais importante, e ganhou 18 das cem maiores cidades. Mas caiu, paradoxalmente, em número de prefeituras e eleitorado governado, de 21 milhões para 18,9 milhões de habitantes.
Extremos não foram derrotados
Mas esses resultados não autorizam nem referendam a conclusão de que os extremos foram derrotados. É uma nivelação e uma simplificação que tem sido divulgada pelos meios de comunicação, igualando o que foi o enfraquecimento do bolsonarismo e da autoridade política de Bolsonaro, em particular, com o desempenho da esquerda. É equivocada a apreciação de que houve uma vitória política eleitoral avassaladora da direita. A esquerda, a rigor, se considerarmos em termos comparativos os resultados das eleições municipais de 2016 e o desempenho das eleições gerais de 2018, teve uma recuperação relativa. O que aconteceu é que a relação política de forças no interior da esquerda mudou porque houve um avanço qualitativo da influência do PSOL e uma redução da influência do PT.
Desempenho do PT
Apresento alguns dados que são essenciais para entendermos o desempenho do PT. O primeiro é que o partido não elegeu prefeito em nenhuma capital pela primeira vez desde 1988. Nas grandes cidades, em relação a 2016, aumentou, subindo de quatro para sete prefeituras, dentre cem. Em números gerais, diminuiu o número de prefeituras em relação a 2016, caindo de 254 para 183, que é o pior desempenho em 16 anos. O número total de habitantes que será governado por gestões do PT aumentou: em 2016 eram 6,33 milhões e agora serão 6,45 milhões, um aumento quantitativo na margem.
A principal conclusão que podemos tirar do desempenho do PT é que teve um resultado ligeiramente superior a 2016, vitórias em algumas cidades médias e, sobretudo, a ida ao segundo turno em 15 cidades, triunfando em duas cidades de Minas Gerais, Contagem e Juiz de Fora, e duas cidades na grande São Paulo, Diadema e Mauá, no cinturão vermelho da capital. Podemos dizer que a sangria de 2016 foi contida, mas o desempenho nacional não diminui o significado da derrota para o PT. Portanto, dentro do que podemos chamar do bloco da esquerda, o PT está relativamente mais fraco. Ainda é o maior partido de esquerda, mas está mais frágil e mais fraco do que nunca.
Salto qualitativo do PSOL
O PSOL deu um salto de qualidade na sua influência e audiência política não só porque ganhou em Belém com a candidatura de Edmilson Rodrigues e porque teve mais de dois milhões de votos em São Paulo, projetando uma nova figura nacional que tem uma imensa estatura, que é Guilherme Boulos, mas porque fortaleceu qualitativamente a sua presença nas Câmaras Municipais das cidades mais importantes do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. Se no Rio de Janeiro passou de cinco para seis vereadores, em São Paulo passou de dois para seis e ampliou em 50% o número total de vereadores eleitos, chegando a 88. Portanto, o PSOL muda o seu patamar dentro da esquerda e passa a ter muito mais responsabilidade, entre outras razões, porque a figura de Guilherme Boulos surge como uma referência fundamental no destino da luta para derrotar Bolsonaro.
Já o PCdoB confirma uma tendência de enfraquecimento e perde o estatuto de segundo partido da esquerda, que já teve no passado, porque perdeu em número de votos, em número de prefeituras, em número de vereadores, teve um desempenho muito frágil no Maranhão; mas tem como compensação a reafirmação de Manuela D’Ávila, que chega ao segundo turno em Porto Alegre e se mantém como uma das novas lideranças de autoridade e respeito nacional em toda a esquerda. Mas se considerarmos de conjunto, a situação do PCdoB é de fragilização e tem no horizonte a ameaça da cláusula de barreira de 2022, que evidentemente é estratégica.
Superação do bloco de esquerda
Os pequenos partidos da extrema esquerda, PCB, PSTU e Unidade Popular, tiveram um desempenho muito frágil e, alguns deles, os piores resultados de toda a sua história. Mas a conclusão geral que podemos tirar é que, de conjunto, o bloco da esquerda teve uma superação dos resultados de 2016 e um fortalecimento relativo que tem a representação simbólica na conquista da disputa do segundo turno. Em 2016, Doria tinha sido eleito em primeiro turno em São Paulo e, em Porto Alegre, a esquerda não disputava o segundo turno há vinte anos, desde 2000. Portanto, a projeção de Guilherme Boulos, Manuela D’Ávila e Marília Arraes, no Recife, onde foi vítima de uma campanha infame de misoginia, de fake news e de difamação, não pode ser diminuída.
Bloco Ciro Gomes
O bloco liderado por Ciro Gomes, construído fundamentalmente em torno do PDT e do PSB e de partidos menores, que se aliam ao projeto presidencial de Ciro Gomes, manteve posições, mas não avançou. Venceu em quatro capitais, todas no Nordeste: Recife, Fortaleza, Aracaju e Maceió, mas não avançou no Sudeste, no Sul ou no Norte. Em São Paulo, [Márcio] França [PSB] e, no Rio de Janeiro, Martha Rocha [PDT] sucumbiram, não abriram nenhum caminho e os seus partidos tiveram oito vitórias entre os cem maiores municípios, quando tinham alcançado 12 em 2016. Dentro desse bloco, o PSB perdeu mais prefeituras e caiu de 11,7 para 6,9 milhões de pessoas que estão em cidades sob a sua gestão. O PDT manteve o patamar das suas prefeituras e caiu de 8,4 para 7,8 milhões de pessoas que estão em cidades sob a sua gestão.
Relação social de forças
Como apontamentos de conclusão, podemos dizer, em linguagem marxista, que a relação social de forças continua desfavorável e estamos numa situação reacionária, em que prevalece a unidade da classe dominante. Ou seja, os capitalistas continuam numa posição de força relativa maior, mas podemos reconhecer uma inflexão na conjuntura, com um enfraquecimento relativo do governo Bolsonaro e do bolsonarismo como força política se pensarmos o período aberto no final de fevereiro e início de março com o impacto da pandemia e todos os seus desdobramentos. É nesse contexto que a representação tradicional ou da classe dominante avança, mas também ocorre uma recuperação relativa da influência da esquerda. É nesse contexto que se abrem as perspectivas para 2022.
IHU On-Line – A partir do resultado das eleições deste ano, o que é possível vislumbrar para o pleito de 2022?
Valério Arcary – Qualquer prognóstico para as eleições de 2022 seria precipitado. No Brasil é difícil fazermos previsões para o que vai acontecer nos próximos três meses, quanto mais para o que vai acontecer em dois anos. Mas podemos dizer que 2021 será um ano de grandes conflitos sociais no Brasil, em primeiro lugar pelo impacto da pandemia. Ou seja, o governo Bolsonaro se revelou, até o momento, incapaz de enfrentar a ameaça sanitária mais importante que a nação vive nos últimos cem anos e já anunciou que a sua meta é a vacinação de um terço da população brasileira. Evidentemente, só existe a possibilidade de imunidade coletiva se a vacinação superar o nível de 70% de toda a população.
De outro lado, a suspensão do auxílio emergencial e a indefinição de qual será o formato da política pública que vai substituir o Bolsa Família criam uma enorme insegurança social, porque os níveis de desemprego são os mais elevados que o Brasil conhece desde o final da ditadura. As crises sanitária e social devem estar associadas também a uma crise econômica, porque é difícil vislumbrar uma recuperação dinâmica da economia se não ocorrerem grandes investimentos, que teriam de ser internacionais. É pouco provável, diante do contexto de isolamento internacional do governo Bolsonaro, que haja uma disposição dos grandes fundos capitalistas internacionais de fazer apostas de risco no Brasil.
É por isso que podemos pensar que 2021 será um ano de grandes lutas sociais, em que estará colocada para a esquerda a tarefa de liderar a oposição ao governo Bolsonaro e, portanto, a luta pelo direito à vida, à vacinação universal e obrigatória, a defesa de uma política pública de seguridade social que não poderia ser outra senão a manutenção de um auxílio emergencial enquanto estivermos sob o flagelo da pandemia. Devem se articular as lutas de resistência social.
IHU On-Line – Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?
Valério Arcary – Estou convencido de que um dos papéis fundamentais da esquerda é inflamar a imaginação política da juventude, dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos movimentos LGBT, dos movimentos ambientais, do movimento sindical. A esquerda tem um lugar essencial na sociedade brasileira, que é oferecer uma alternativa à degradação que o capitalismo brasileiro está vivendo, com um governo de extrema direita que tem no centro do poder um núcleo neofascista. Temo que a resistência terá que enfrentar imensos obstáculos, mas o fundamental é termos a esperança de que é possível derrotar Bolsonaro antes de 2022. É uma saída democrática o impeachment da Presidência quando o governo no poder no Palácio do Planalto é uma ameaça às condições mais elementares de sobrevivência de toda a população.