Caso Viviane: Judiciário machista retroalimenta a violência contra mulheres. Por Kenarik Boujikian

No Universa

O brutal assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, praticado pelo ex-marido, na frente das três filhas, coloca em foco o retrato de feminicídios que acontecem, neste exato momento, pelo Brasil afora, numa manifestação de selvageria em seu estado mais agudo.

O substrato desta violência contra mulheres é termos uma sociedade essencialmente patriarcal, em que há uma desigualdade estrutural de poder, que inferioriza e subordina as mulheres aos homens e no qual nossos corpos ainda são considerados objetos de poder e controle.

Nosso país, lamentavelmente, é recordista em feminicídios. Está entre os cinco que mais matam mulheres. Segundo o Mapa da Violência de 2015, o Brasil assassinava 13 mulheres diariamente, motivado pela questão de gênero.

feminicídio está fazendo parte do cotidiano de violência contra mulheres, que sabemos, é de diversas ordens e tem, neste crime, o seu ápice.

Como ensina a juíza Claudia Maria Dadico no livro “Crimes de Ódio – Diálogos Entre a Filosofia Política e o Direito“, o feminicídio e as demais formas de violência por razões do gênero estão na categoria dos crimes de ódio e a resistência para classificar tais crimes como tal advém de equívocos, dentre os quais, o de “situar a violência doméstica como fenômeno privado”.

Temos uma densa legislação referente às mulheres, a começar pela nossa Constituição Federal. Ainda, o Brasil subscreveu convenções internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Já a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher (a Convenção de Belém do Pará), tem como eixo fundamental a atenção integral e, especialmente, a atenção necessária em relação à violência contra a mulher, estabelecendo obrigações para os estados-partes em relação às mulheres vítimas de violência.

Mas só em 2006 obtivemos uma lei que trata da violência doméstica, com previsão de mecanismos de prevenção, como as chamadas medidas protetivas, para bloquear violências futuras. A lei Maria da Penha, que é fruto da pressão advinda, particularmente, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o caso foi apresentado pela Maria da Penha Maia Fernandes, pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).

Foi o primeiro aceito pela CIDH para tratar da violência doméstica, que ao final apresentou recomendações ao Estado Brasileiro, que levaram à edição da tão festejada lei, que tratou das diversas espécies de violência: a psicológica, moral, patrimonial, sexual e física, que na maioria das vezes ocorre de forma combinada.

Mas a só existência da lei não altera o quadro de barbárie. A cada 2 minutos uma mulher sofre violência doméstica física no Brasil, como indica o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020.

Mais recentemente, a Lei nº 13.104/2015 introduziu o conceito de feminicídio, com a nova redação do artigo 121 do CP, VI e § 2º, prevendo um aumento da pena do homicídio se praticado contra a mulher, por razões da condição de sexo feminino, se envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Mas tal lei, como a Lei Maria da Penha, não é suficiente para interromper este ciclo sem fim de agressões. Tivemos uma alta de 7,1% no ano de 2019 em relação à 2018. Foram 1.326 mulheres mortas por feminicídio, de acordo com o Anuário de Segurança Pública. O autor do crime era um companheiro ou um ex-companheiro da vítima em 90% dos casos, e do total de vítimas, cerca de 67% eram negras, o que mostra a maior vulnerabilidade dentro do universo feminino.

As raízes misóginas estão nesta violência extrema, assim como em todas as outras, como se pode ver, recentemente, em audiência realizada em vara de família, do TJSP no qual o juiz afirmou, que “Não tô nem aí para a lei Maria da Penha” e “Ninguém agride ninguém de graça”, com clara demonstração de práticas discriminatórias e machistas contra uma mulher.

O juiz desdenhou a Lei Maria da Penha e da posição de mulheres que participaram da audiência. Vemos nestas audiências um Judiciário que banaliza a violência e reproduz os estereótipos discriminatórios, institucionalizando a violência contra as mulheres.

A sociedade machista perpetua a violência contra as mulheres e o Judiciário machista retroalimenta a violência.

A morte de Viviane e a audiência em que juiz desdenha da lei Maria da Penha tem o mesmo fio condutor. A morte de Viviane será carregada pelas filhas que tudo presenciaram, assim como a sociedade brasileira carrega a morte de tantas mulheres assassinadas por serem mulheres.

É preciso derrogar o legado do patriarcado que se fundamenta na discriminação de gênero. É necessário que o Judiciário faça sua parte. No mínimo que tenha juízes comprometidos com a ordem constitucional e legal e que revele, em cada prática, em cada processo, em cada palavra, o conceito de igualdade e a não-admissão da violência.

Ao Judiciário cabe pagar a sua dívida: cumprir seu papel para eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas.

Kenarik Boujikiané desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo, especialista em direitos humanos e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Foto: Juliana Gonçalves / Brasil de Fato

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