2021: Perspectivas e horizontes para o Brasil em um mundo pós-pandemia. Entrevista especial com Henrique Cortez, Christina Vital e Roberto Dutra

Ter imaginação política diante de um planeta marcado por profundas desigualdades é um desafio que se lança para o Brasil em 2021. Na entrevista a seguir, apresentamos algumas análises e projeções

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Até mergulharmos no que foi 2020, não havia projeção para o cenário que acabamos vivendo. Há um mundo antes e pós-pandemia da covid-19. No Brasil, especialmente, formou-se uma tempestade perfeita que, somada à crise sanitária, teve como agravantes o fortalecimento dos setores mais retrógrados da sociedade e um governo inepto.

Contudo é necessário irrigar a imaginação política e pensar futuros possíveis, com os pés no chão, mas sem perder de vista um horizonte menos desigual e com capacidade de enfrentar nossos desafios. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU entrevistou, por e-mail, algumas pessoas sobre as perspectivas para 2021 e que apresentamos nesta entrevista conjunta.

“Até 2022 será necessário construir um caminho, uma alternativa política coerente, com visão de país. E isto não se dará olhando para o passado nem mantendo o culto à personalidade, de quem quer que seja, como centro da ação. É simples, ninguém é maior que a causa e a causa, agora, é superar os desastres que enfrentamos, rompendo com os retrocessos e buscando recolocar o país em direção a um futuro mais justo e sustentável”, pondera Henrique Cortez.

Para a professora Christina Vital é urgente retomarmos um modo de convivência que preze por relações mais saudáveis. “Quando o ambiente social se tornou adoecido a este ponto, quando a dúvida como atordoamento domina, como no Brasil atual, o esforço dos atores e instituições envolvidos com a propagação de informações e fatos reais é maior, mas tem de ser feito”, avalia.

De acordo com o professor Roberto Dutra, sanar este momento complexo e desafios constantes passa pelo discernimento das questões mais urgentes. “Em primeiro lugar é preciso ter clareza sobre a hierarquia e as relações entre os problemas. O problema da desigualdade precisa ser colocado no centro da agenda política, mas junto com o tema do desenvolvimento e da reconstrução de nossa complexidade econômica e soberania”, frisa.

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Henrique Cortez é jornalista especializado em meio ambiente, consultor em comunicação ambiental e editor do site EcoDebate.

Christina Vital da Cunha é professora associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Coordena o LePar – Laboratório de estudos socioantropológicos em política, arte e religião e integra a equipe de pesquisadores do MARES, coordenado por Emerson Giumbelli. É autora do livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015) e coautora de Religião e política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTS no Brasil (2012), entre outros livros e artigos.

Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea. É autor de, entre outros, Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion (Konstanz: UVK Verlag, 2013).

Confira as entrevistas.

IHU On-Line – Desde a sua área de atuação e perspectivas de trabalho e estudos, como você avalia o ano de 2020? Quais foram os pontos mais nevrálgicos e como superá-los?

Henrique Cortez – 2020 foi um ano especialmente trágico. A pandemia é, sob qualquer ótica, o destaque mais evidente, no Brasil e no mundo. Mas, no nosso caso, enfrentamos, ao mesmo tempo, a pandemiaBolsonaro e o empoderamento do que há de pior na sociedade brasileira. O Brasil foi atingido por uma tempestade perfeita. Estes três desastres simultâneos trouxeram vários impactos que se potencializaram, no enfrentamento da pandemia, nos temas socioambientais, nos direitos humanos, nos direitos indígenas e quilombolas, na reforma agrária, e por aí vai.

Há poucos anos, seria impensável que enfrentaríamos retrocessos civilizatórios e que estes retrocessos fossem ativamente apoiados por quase um terço da população. Mas é o que aconteceu e continua acontecendo.

Como superar? Provavelmente resistindo, como já fazemos. Cedo ou tarde este momento será superado. Deixará cicatrizes profundas, mas será superado. Então, o que resta de decência na sociedade será a base da reconstrução, que será necessária diante de danos que poderão nos impactar por décadas.

Christina Vital da Cunha – Falo desde o lugar de acadêmica, logo, professora e pesquisadora na área de Sociologia e Antropologia Urbana e da Religião, também como mãe de uma criança de 10 anos vivendo a pandemia em um país periférico, em uma cidade arrasada pelo desemprego, corrupção política e violência armada. Meu ponto de vista sobre a correlação entre pandemia e as atividades laborais em 2020 é completamente atravessado pelo que apresentei anteriormente. No limite, toda experiência subjetiva é atravessada por um conjunto de dimensões políticas, econômicas, emocionais, espirituais, sociais. São, portanto, ambíguas, resvalando no contraditório, vez por outra. Sendo professora de uma universidade pública experimentei a angústia das incertezas quanto ao trabalho, não do ponto de vista de uma ameaça à empregabilidade, mas quanto às condições de realização dele. A angústia partilhada com os alunos que estavam vivendo muitas situações difíceis em suas vidas e um desânimo se anunciou passados dois ou três meses da pandemia.

Digamos que vivemos várias fases desta pandemia neste longo ano. Posteriormente, algumas definições permitiram saber que o ensino remoto era a oportunidade de realizarmos nossa função como mestres e como pesquisadores junto aos grupos de pesquisa e orientações de graduação, mestrado e doutorado. Assim seguimos e ao final do ano, exaustos, fizemos um balanço dos potenciais e limites que os novos recursos digitais nos ofereceram. Um drama se apresentou quanto à formação e isso inquieta os professores. Há uma zona cinzenta, um número significativo de alunos que estiveram nas aulas, mas que não sabemos sobre sua recepção quanto ao conteúdo oferecido ao longo das disciplinas ministradas. Este é propriamente o drama das redes: a invisibilidade de um conjunto de pessoas que vivem suas vidas sem que possamos alcançá-las. Em sala de aula, os dramas das pessoas não são menores, contudo, a relação face a face oferece outras oportunidades de acesso a elas, tornando mais visíveis as situações e histórias das pessoas, suas dificuldades e a ajuda mútua também acontece. Nossa condição de intervir como profissionais da educação, de contribuir é muito maior. Disso senti muita falta.

Outra dimensão que ficou comprometida foi a socialização dos alunos. Esta socialização envolve trocas de conhecimentos, inculcação de valores de uma dada área de trabalho, redes profissionais que vão se formando. Essa foi uma dimensão perdida no ano. Sinceramente, irrecuperável. Sobretudo para alunos de pós-graduação que, no caso do mestrado, se formam em dois anos e vão passar toda esta experiência remotamente. Para os alunos de doutorado ainda há alguns anos possíveis de vivência presencial que contribuirão para esta oportunidade de socialização e estabelecimento de redes.

Não sou a profissional mais privilegiada, mas também não ocupo um lugar precarizado. Deste modo, enfrentei dificuldades domésticas para a organização da vida laboral em razão de residir com minha filha de 10 anos, que teve as aulas presenciais completamente suspensas desde 16 de março de 2020. Não só as aulas, mas também toda a sua vida social. Seu sofrimento infantil comeu minha alma. A coordenação das atividades docentes em casa com pesquisa eleitoral e vida doméstica renovada pelas condições da pandemia foi desafiadora. Mas o saldo foi positivo com muito empenho. Eu e as equipes de alunos e assistentes de pesquisa nos reunimos remotamente. As entrevistas realizadas com candidatos e candidatas, assim como articuladores políticos da esquerda evangélica, foram concedidas generosamente diante de uma agenda intensamente disputada por dimensões públicas e privadas para todos nós. Acho que mais do que nunca as dimensões públicas e privadas se imiscuíram. Então falar dos pontos nevrálgicos é falar da política e da experiência doméstica das pessoas, das suas emoções e precariedades múltiplas.

Diria, resumidamente, que o que Michel Foucault chamou de cuidado de si ganha grande relevância, ou seja, a atenção ao seu próprio ser é uma condição social importante. Quer dizer, e isso não se refere somente às elites. Embora os serviços e oportunidade de cuidado sejam mais abundantes para os mais endinheirados na sociedade, vem ganhando força a ideia de que os mais pobres, as pessoas de periferia, os homens negros devem se cuidar. E essa é uma ideia poderosa.

As igrejas, nestas regiões, têm grande importância na ampliação deste debate e na oferta de oportunidades de cuidados para homens e mulheres. E para jovens e crianças também, o que é muito importante. Outro ponto nevrálgico que esta pandemia revelou em meu âmbito de trabalho é que a educação precisa ser muito valorizada em seu aspecto amplo.

Educação é estrutura física adequada para ensinar e aprender, é encontro presencial, contato entre alunos, professores, funcionários da rede, é boa alimentação. Isso tudo junto compõe uma boa educação. Tivemos tudo isso precarizado pela pandemia e vimos esforços políticos pela precarização ainda maior desta educação integral desde antes dela. As soluções para a superação das precariedades vividas neste período passam por mudanças estruturais, logo, de longa duração e que têm sim na educação uma base. O cuidado de si (e também do outro, a incorporação da noção de que o cuidado de si é um cuidado do outro) é uma forma de educação para o presente e futuro. A atenção às escolas e universidades públicas, assim como a regulação adequada da oferta de ensino privado, é fundamental neste processo de ampliação do chamado contemporaneamente de “bem viver”.

Roberto Dutra Torres Junior – Observando da perspectiva sociológica, como faço em minha profissão, 2020 trouxe e/ou agravou desafios importantes e problemas múltiplos e complexos para a humanidade e o Brasil. Os desafios e problemas são parecidos e dizem respeito aos temas do desenvolvimento e da cidadania em suas diferentes dimensões: à saúde, às injustiças e desigualdades sociais, ao declínio econômico e à crise de legitimidade e representação do sistema político. São temas que toda a sociedade mundial enfrenta e vai continuar enfrentando. No entanto, os Estados nacionais produzem respostas muito distintas, e com os efeitos pretendidos e não pretendidos destas respostas, coproduzem trajetórias evolutivas regionais e locais bastante divergentes e variadas.

Tanto em relação à orientação política como em relação às capacidades estatais, 2020 demonstrou que os caminhos e soluções criados pelos diferentes países para os problemas associados à pandemia diferem profundamente. No Brasil temos um governo cuja orientação política é a de destruir o que ainda temos de capacidades estatais necessárias para enfrentar estes problemas. Com isso se aprofunda o processo de desconstitucionalização e desregulamentação estatal de relações sociais, que com isso vão se balcanizando e destruindo a própria ordem política e jurídica estatal. Este é o principal desafio brasileiro, cuja solução não está, a meu ver, nos horizontes de 2021.

IHU On-Line – O que você projeta para o Ano Novo? O que o atual cenário revela sobre o que devemos esperar de 2021?

Henrique Cortez – Não creio que 2021 seja diferente. Ainda sofreremos com a pandemiaBolsonaro e o que há de pior na sociedade brasileira. Talvez seja mais relevante a resistência, a defesa da lucidez. Mas diante do que já experimentamos, acredito que os retrocessos civilizatórios serão acelerados, visando a maior destruição possível, como em uma política de terra arrasada. Então, a omissão e o silêncio não são opções.

Christina Vital da Cunha – Em termos profissionais haverá muito trabalho a ser feito. Marcel Mauss, sobrinho de Durkheim, pai da sociologia, elaborou uma noção, a de fato social total. A religião, diferente do lugar social que foi dado a ela no ocidente moderno, é um fato social total. Nos ajuda a pensar sobre diferentes dimensões da vida social porque nelas está imbricada. A religião, como instituição social, é ambígua. Está recoberta por uma aura positiva, mas é também um espaço de disputas, de inegáveis interesses econômicos e políticos. Deste modo, quando comecei a pesquisar em favelas cariocas nos anos 1990, concluí que não seria mais possível falar de qualquer dimensão da vida local (social, econômica, política, do crime) sem tratar dos atravessamentos que a religião tem nela. Assim publiquei Oração de Traficante (Garamond, 2015), falando sobre as diferentes pontes entre evangélicos e também católicos com as variadas redes locais.

Na política, desde 2010 fazendo investigações no executivo e legislativo nacional, estadual e municipal, observamos que a religião sempre esteve atuante. Ganhou novos contornos, atores, narrativas. Sua presença é ambígua na vida política, como não poderia deixar de ser, dada a diversidade de atores que a constituem. Então vejo que as pesquisas sociais, econômicas, artísticas, políticas vão se esbarrar de modo cada vez mais consistente com atores, narrativas e estéticas religiosas. Estas dimensões deverão ser incluídas nas análises sob o risco de, não o fazendo, serem parciais, precárias. Do ponto de vista da vida universitária, dado o engajamento de professores e alunos para um retorno seguro, convivo com a expectativa de que retomemos as atividades presenciais gradativamente ainda no primeiro semestre de 2021. Um ânimo pela retomada desta educação viva deverá envolver a maioria esmagadora de nós, tendo impacto positivo em termos de nossa produtividade e capacidade de trabalho mesmo em meio ao real e contínuo desinvestimento governamental na educação pública, sobretudo, universitária.

Roberto Dutra Torres Junior – A chegada da vacina provavelmente vai marcar 2021 como um ano de superação em relação a 2020. Será um marco na memória coletiva contemporânea de toda a humanidade. Mas os problemas não se restringem ao sistema de saúde e à volta de algo parecido como um normal sanitário para as populações. Os problemas são muitos e suas relações mútuas, complexas. Como no Brasil o sistema político se torna cada vez mais incapaz de enfrentar estes problemas, devemos esperar um agravamento enorme e acelerado da deterioração das condições e perspectivas de vida das classes médias e populares. Além disso, a trajetória de redução da complexidade econômica no Brasil tende a se aprofundar em correlação com a reprimarização, a periferização e o subdesenvolvimento da economia nacional, o que restringe as perspectivas e possibilidades de reconstrução de um estado nacional-desenvolvimentista e de bem-estar social como o que precisamos para enfrentar os problemas do presente.

IHU On-Line – Como construir caminhos para buscar a superação dos impasses de 2020 e renovar as esperanças em 2021?

Henrique Cortez – Acredito que a sociedade brasileira é infinitamente melhor do que a parcela que está no poder. É apavorante e um risco ao nosso futuro comum, mas o negacionismo climático, o terraplanismo, o criacionismo, o movimento antivacina, o analfabetismo ideológico e uma generalizada postura anticonhecimentocultura e ciência estão muito presentes na sociedade brasileira, mas não são majoritários. Essa é a esperança.

Até 2022 será necessário construir um caminho, uma alternativa política coerente, com visão de país. E isto não se dará olhando para o passado nem mantendo o culto à personalidade, de quem quer que seja, como centro da ação. É simples, ninguém é maior que a causa e a causa, agora, é superar os desastres que enfrentamos, rompendo com os retrocessos e buscando recolocar o país em direção a um futuro mais justo e sustentável.

Pode ser tolice de um jornalista velho, cansado e cético. Mas é a esperança que nos move.

Christina Vital da Cunha – Um sentimento público de desconfiança e medo se pronunciaram em demasia no ano de 2020. Situações de catástrofes naturais, guerras, pandemias produzem uma sensação generalizada de fragilidade, uma convivência com a insegurança que é muito incômoda em termos públicos e privados. Nestes “tempos frios da história”, como Durkheim chamava estes momentos de transformação social – ocasionados sejam por mudanças na economia, no âmbito dos costumes e podemos pensar também climáticos, naturais –, um medo se pronuncia. Os mecanismos para superação destes medos, dos desconfortos produzidos por eles, pela insegurança, são políticos e sociológicos. Políticos na medida em que a ação coletiva e as políticas públicas são fundamentais para reverter as dificuldades impostas pelas situações, para superar desigualdades que se aprofundaram ou que foram geradas pelos contextos.

Sociológicos porque estes momentos são manipulados por grupos de interesse com objetivos muitas vezes escusos e privados e superá-los envolve, necessariamente, trazer à baila recursos de olhar, reflexões, entendimentos que tirem as pessoas da armadilha do medo, da desinformação, das mentiras ou meias-verdades que produzem pânicos morais. Esta saída sociológica envolve uma disputa pela apresentação dos fatos, de dados. Ela trabalha com uma base que se assenta na confiança, pois as mensagens não são recebidas quando a desconfiança é generalizada e enraizada. Trabalhos recentes de pesquisadores nórdicos, a região do mundo que, segundo pesquisas globais, é a mais abundante na experiência coletiva de confiança e felicidade, mostram isso. Citaria aqui Margit Ystanes, entre outras intelectuais produzindo neste campo.

Quando o ambiente social se tornou adoecido a este ponto, quando a dúvida como atordoamento domina, como no Brasil atual, o esforço dos atores e instituições envolvidos com a propagação de informações e fatos reais é maior, mas tem de ser feito.

Roberto Dutra Torres Junior – Em primeiro lugar é preciso ter clareza sobre a hierarquia e as relações entre os problemas. O problema da desigualdade precisa ser colocado no centro da agenda política, mas junto com o tema do desenvolvimento e da reconstrução de nossa complexidade econômica e soberania. O lema varguista precisa ser a palavra de ordem: sem desenvolvimento o Estado não pode promover justiça social e sem soberania ele não pode promover desenvolvimento. Justiça socialdesenvolvimento e soberania. Precisamos de uma agenda que combine esses três eixos cruciais, pois todos os outros problemas são permeados e construídos por esses três eixos.

De acordo com 14º Anuário Brasileiro de segurança pública, mais de 74% das vítimas de mortes violentas no país são negras; negros são 79,1% dos mortos pela polícia. Foto: Fernando Frazão /Agência Brasil

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