Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo
O procurador-geral da República, Augusto Aras, reconheceu, na quarta (20/01), que aumentaram as pressões para que a PGR investigue acusações contra o presidente Jair Bolsonaro – algo que poderia, no limite, culminar em um processo de impeachment.
Na mesma declaração, no entanto, Aras disse que o “agravamento da crise sanitária” poderia justificar declaração de “Estado de Defesa”, recurso que ampliaria poderes do presidente. Aras também afirmou que o papel de investigar crimes do presidente é do Poder Legislativo.
Se declarado pelo presidente, o Estado de Defesa precisaria da aprovação do Congresso em dez dias e possibilitaria a retirada de certos direitos da população.
Em sua nota, Aras afirmou que “o estado de calamidade pública (por causa da pandemia) é a antessala do estado de defesa”.
Bolsonaro já tem mais de 60 pedidos de impeachment, e com o colapso da saúde pública em Manaus e a continuação da pandemia no país, a pressão tem aumentado. Para irem para frente, eles teriam que ser aceitos pelo presidente da câmara, Rodrigo Maia. Mas constitucionalistas que o papel de investigar crimes comuns cometidos pelo presidente — e decidir se vai denunciá-lo ou não — é sim do procurador-geral da República.
A declaração de Aras gerou incômodo no Conselho Superior do Ministério Público. Seis subprocuradores — incluindo José Bonifácio, que foi vice de Aras — publicaram uma carta criticando a fala de Aras.
“A defesa do Estado democrático de direito afigura-se mais apropriada e inadiável que a antevisão de um “estado de defesa” e suas graves consequências para a sociedade brasileira, já tão traumatizada com o quadro de pandemia ora vigente”, escreveram os conselheiros.
O ministro do STF Marco Aurélio de Mello e o ex-ministro Celso Velloso também já disseram que a medida não caberia no atual contexto do país.
Mas, afinal, o que é o Estado de Defesa e quais seriam as consequências do país declará-lo? Uma declaração de Estado de Defesa seria constitucional?
Restrição a direitos
O Estado de Defesa é um instrumento previsto no artigo 136 da Constituição de 1988 para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”, de acordo com o que diz o texto constitucional.
“Ao lado do Estado de Sítio, é um tipo de estado de emergência, um mecanismo para possibilitar algum tipo de restrição a direitos ou medidas excepcionais para conter algum tipo de abalo à ordem pública ou abalo social”, explica Wallace Corbo, professor de direito da FGV-Rio e especialista em direito público.
O Estado de Defesa pode ser decretado pelo presidente da República, que precisaria ouvir tanto o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, e precisaria ser submetido em 24h para o Congresso, que teria que aprová-lo ou rejeitá-lo em até dez dias.
Diferentemente do Estado de Sítio, o Estado de Defesa não poderia ser aplicado no país inteiro, apenas em locais “restritos e determinados” e pelo prazo de 30 dias, prorrogáveis por mais trinta.
Em tese, uma pandemia pode se encaixar no conceito de “calamidade de grande proporção”, explica Corbo, se as restrições estabelecidas pelo instrumento tivessem utilidade no combate à pandemia em questão. Segundo o professor da FGV-Rio, não é o caso — a análise é a mesma já feita por ministros do STF como Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes.
“As medidas de restrição previstas pelo Estado de Defesa não têm nenhuma relação com as medidas necessárias para combater a pandemia”, diz Corbo. “É um instrumento que não é adequado para as necessidades de ação no combate à pandemia.”
A Constituição determina que a declaração de Estado de Defesa deve especificar as áreas abrangidas e pode determinar medidas que restrinjam direito de reunião, sigilo de correspondência e sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.
“Restringir o direito de reunião não é o mesmo que restringir o direito de ir e vir. É o direito das pessoas de conversarem, trocarem ideias”, explica Corbo.
E hoje é possível o governo determinar medidas de combate à pandemia, incluindo lockdown (fechamento total de comércio e serviços não essenciais), sem necessidade de decretação de Estado de Defesa, explica Estefânia Barboza, professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná.
“A gente teve no início da pandemia a aprovação de uma lei que já previu algumas possibilidades de restrição de direitos pertinentes à pandemia”, explica Barboza, incluindo a possibilidade de obrigação de vacinação e de determinação de lockdown.
Até agora o governo federal não tomou nenhuma iniciativa no sentido de determinar isolamento social e fechamento de comércio para combater a epidemia — o presidente é abertamente contra esse tipo de medida.
Também existe uma diferença entre a “calamidade pública” citada pelo texto constitucional e o “Estado de Calamidade” decretado pelo Congresso no ano passado e mencionado por Aras em sua nota, segundo Corbo.
“O PGR comete um erro técnico ao falar que o Estado de Calamidade pode levar ao Estado de Defesa. O Estado de Calamidade tem relevância fiscal, nada mais é do que o reconhecimento de que há uma situação excepcional que permita não respeitar os limites da lei de responsabilidade fiscal. É diferente da calamidade pública citada no texto constitucional”, explica o professor de direito.
Consequências e risco político
A Constituição de 1988 foi cautelosa na criação do instituto do Estado de Defesa, explica Corbo, e criou uma série de controles judiciais e políticos para o instrumento, como limite máximo de 60 dias e a necessidade de aprovação do Congresso.
“Então, em tese, as consequências formais de uma declaração seriam pontuais. O problema é o simbolismo e as consequências políticas de decretação dessa medida”, afirma Corbo.
“Em tese o Estado de Defesa não é uma ruptura (com a democracia), ele não permite a nomeação de interventores, por exemplo. Mas existe um aspecto político simbólico no atual contexto que é um novo nível de desrespeito às instituições democráticas, com consequências políticas imprevisíveis”, diz o professor de direito da FGV.
“Não podemos negligenciar a possibilidade que uma eventual decretação de Estado de Defesa tenha o objetivo de esconder uma ruptura democrática, um estado de exceção”, diz o especialista em direito público, “especialmente em um contexto onde o presidente tem reforçado cada vez mais falas sobre ruptura institucional”.
Na segunda, Bolsonaro disse que “quem decide se o povo vai viver em uma democracia ou ditadura são as suas Forças Armadas”.
“Precisamos lembrar também do histórico brasileiro onde a decretação de um estado de emergência foi usada várias vezes para justificar a ruptura com a democracia”, afirma Wallace Corbo.
A professora de direito constitucional Estefânia Barboza diz que Aras foge de seu papel ao falar em decretação de Estado de Defesa diante de pressões por impeachment.
“O Ministério Público é um órgão de defesa da democracia, e não do presidente”, diz ela.
Para Barbosa, não há no momento uma instabilidade social e institucional que possa justificar a decretação de Estado de Defesa.
“Quem tem causado mais instabilidade institucional é o próprio Poder Executivo, e a ideia de que o órgão que tem causado instabilidade decrete Estado de Defesa é absurda. Ele é um instrumento criado para reestabelecer a democracia se ela estiver em perigo, não para fortalecer as ameaças à democracia”, diz ela.
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(Imagem: Pixabay)