Manaus: as digitais de Pazuello na grande tragédia

Ministério da Saúde agiu para quebrar a força da quarentena no Amazonas. Pouco depois, começou o tsunami de internações e mortes. E mais: Brasil pode ter vacinas da Sputnik e Janssen — mas só se a negligência do governo terminar

por Maíra Mathias, em Outra Saúde

MEIO TERMO AO INVÉS DE LOCKDOWN
 O Ministério da Saúde atuou pela flexibilização das medidas de isolamento social no Amazonas quatro dias antes do colapso do sistema de saúde do estado. A informação é do jornal O Globo, e se refere a um debate que aconteceu em uma reunião entre autoridades estaduais e membros da equipe de Eduardo Pazuello no dia 10 de janeiro. Duas pessoas presentes no encontro relatam que o governo federal pediu a adoção de um “meio-termo” ao lockdown, medida defendida por especialistas há tempos. Coincidência ou não, no dia 14 de janeiro o governador Wilson Lima (PSC) assinou um decreto mantendo atividades não essenciais e circulação nas ruas, tendo como restrição mais severa um “toque de recolher”. Naquele momento, a crise da falta de oxigênio e vagas nos hospitais já estava explícita.

Agora o estresse provocado no já precário sistema de saúde amazonense é tanto que o ministro da Saúde está defendendo que a “única solução” para o problema é a transferência de 1,5 mil doentes para outros estados. “Se não removermos 1,5 mil pessoas do atendimento especializado, vai continuar morrendo de 80 a 100 pessoas por dia porque não há UTIs e não se cria uma UTI do dia para noite. Aumentar leitos, trazer oxigênio, criar UTIs… quantas? 20, 30? Eu tenho que remover 1,5 mil pacientes. Não vou montar 1,5 mil leitos de UTI nunca em Manaus”, afirmou na sexta-feira. Falta ligar os pontos entre o “meio termo” que pode ter sido defendido pela pasta há menos de um mês e a tragédia que se desenrola. Aliás, o inquérito que investiga Pazuello por omissão no caos sanitário no estado precisa apurar esse fato. 

Um fator complicador para a crise é a nova variante do coronavírus – que parece assustar o mundo inteiro, menos o governo federal. Como a situação no Amazonas já ultrapassou o limite do tolerável há bastante tempo, a decisão de transferir os doentes é correta, mas deveria vir acompanhada de um plano de contenção. Mesmo que a variante já esteja no país inteiro, como desconfiam especialistas a partir dos dados que chegam de outros países que já a encontraram, esse cuidado seria importante para não acelerar ainda mais o espalhamento e sinalizar para população os riscos que o país corre na hipótese cada vez mais provável de que a variante se torne predominante em todo o território.

De resto, a única coisa que parece preocupar o governo Bolsonaro é ele próprio. O Ministério da Justiça – useiro e vezeiro em usar a Lei de Segurança Nacional contra jornalistas e opositores – determinou que a Polícia Rodoviária Federal fiscalize as redes sociais para identificar postagens sobre a situação no Amazonas e “reduzir danos de imagem” do governo federal.

Falando nisso… O porcentual de mortos por covid-19 que não pertenciam a nenhum grupo de risco dobrou no Amazonas em janeiro e já representa quase 20% de todas as vítimas da doença no mês. No total, a doença fez 1.664 vítimas fatais no estado. 

LOCKDOWN NO PARÁ

O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), informou na sexta que foram descobertos no estado dois casos de contágio pela variante amazonense. O Instituto Evandro Chagas confirmou a infecção em um homem de 58 anos e em uma mulher de 26 anos, ambos no município de Santarém. A cidade, por sua vez, viu o número de casos aumentar 10% nos últimos 30 dias. Tudo isso levou o governo a decretar um lockdown nas regiões do Baixo Amazonas e Calha Norte, valendo a partir de hoje. Em pronunciamento no sábado, Barbalho reconheceu que já considera preocupante o aumento da procura por leitos hospitalares nesses locais. 

ATÉ EM PORTUGAL

A situação em Portugal é bastante ruim. O sistema hospitalar está muito próximo do colapso: no sábado, o governo divulgou que o país contava com apenas sete leitos de UTI destinados à covid-19 vagos. No total, 850 leitos estão dedicados ao tratamento da doença. No domingo, a Áustria anunciou um acordo com o país para receber parte desses doentes. Para evitar ainda mais estragos, o governo português estendeu o lockdown no país pelo menos até a metade de fevereiro.

SERÁ?

Manifestações pelo impeachment de Jair Bolsonaro aconteceram em 17 capitais brasileiras, num repeteco do que já havia ocorrido no fim de semana anterior. A pressão das ruas vem em um momento particularmente estratégico para a abertura do processo de afastamento. Isso porque o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse a aliados que tem um parecer jurídico favorável ao processo – e poderia instalar a comissão para avaliar o impeachment nesta segunda. O pano de fundo da ameaça é a disputa pela presidência da Casa, que será definida em votação hoje. Maia foi abandonado pelo próprio partido, o DEM, que liberou a bancada para votar como quiser, enfraquecendo ainda mais a candidatura de Baleia Rossi. Foi no auge da irritação com a decisão do partido que a ameaça foi feita. Maia também sinalizou que pretende deixar o partido. 

BRAÇO A TORCER

O Ministério da Saúde, enfim, confirmou a compra das 54 milhões de doses da CoronaVac. Com isso, a pasta se compromete a adquirir cem milhões de doses de vacina fabricada pelo Instituto Butantan – que chegou a ameaçar exportação do imunizante caso o governo federal não se manifestasse até o fim de semana. O aval veio na sexta-feira… A decisão foi precedida por pressão da opinião pública e também por parte dos governadores. Na quinta, Wellington Dias (PT) enviou a Jair Bolsonaro uma carta oficial solicitando a compra do lote. Segundo o presidente do Butantan, Dimas Covas, as 46 milhões de doses contratadas anteriormente serão entregues até abril. O instituto programa para a próxima quarta a chegada de 5,4 mil litros do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) suficientes para produzir 8,6 milhões de doses. O governo de São Paulo divulgou as imagens da carga sendo encaminhada ao aeroporto de Pequim na madrugada de domingo.

LOBBY PELA SPUTNIK V

O presidente Jair Bolsonaro afirmou no sábado que pretende comprar a Sputnik V caso a vacina seja aprovada pela agência reguladora brasileira. “Se a Anvisa aprovar, a gente vai comprar a Sputnik. Tem um ‘cheque’ meu, assinado em dezembro, de R$ 20 bilhões para comprar esse material“, disse à CNN. Na última semana, ele se reuniu com o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres. Segundo o Estadão, um dos temas da conversa foi a liberação. Do lado dos governadores também há movimentação pelo imunizante. Na sexta, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), pediu urgência ao Senado para pautar uma proposta para acelerar a análise do uso da vacina russa no Brasil. 

A Sputnik V foi desenvolvida pelo Instituto Gamaleya. No Brasil, o governo russo primeiro tentou acordo com o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) e, mais tarde, firmou parceria com o laboratório União Química para produção da vacina. A empresa tenta protocolar um pedido de uso emergencial do imunizante, mas ainda não conseguiu reunir a documentação exigida pela Anvisa, como os dados sobre a fase 3 dos testes clínicos. 

No podcast Foro de Teresina, a jornalista Malu Gaspar divulgou que a decisão tem muito a ver com o lobby da União Química, empresa que tem como lobista o ex-deputado federal Rogério Rosso, que chegou a ser apoiado por Eduardo Cunha como seu sucessor na presidência da Câmara dos Deputados. Ainda de acordo com ela, a Anvisa chegou a avaliar que a empresa, cujo produto mais conhecido é o remédio para frieira Vodol, não teria condições para produzir um imunizante em massa. A empresa planeja trazer dez milhões de doses da Rússia até março e produzir outras 150 milhões em 2021. A União Química é dirigida por Fernando de Castro Marques que, em 2018, foi o candidato mais rico ao Senado, com patrimônio declarado em R$ 667,9 milhões

RITMO LENTO

No sábado, o país atingiu a marca dos dois milhões de vacinados contra a covid-19. O número representa apenas 1,24% da população brasileira acima de 18 anos. “O ritmo de vacinação no país está simplesmente péssimo. Nós já deveríamos ter utilizado pelo menos todo esse primeiro lote de seis milhões de doses da CoronaVac”, analisou para a BBC o epidemiologista Paulo Lotufo. 

OMITINDO OS DETALHES

O consórcio internacional de vacinas Covax enviou no sábado uma carta aos países que participam da iniciativa com as estimativas de doses a serem entregues nos próximos meses. E o Ministério da Saúde resolveu distorcer a informação dada ao público. É que a carta prevê a entrega de parte da quantidade a que o país tem direito – que varia de 10 a 14 milhões de doses. Assim, entre 25% e 35% desse total seria entregue entre fevereiro e março. O restante, avisou a Covax, vem apenas no segundo trimestre, tendo junho como limite. Mas o governo preferiu omitir os detalhes e divulgar que esse total seria recebido “a partir de meados de fevereiro”, sem mencionar o prazo mais longo, nota o jornalista Jamil Chade, que teve acesso a documentos internos da aliança. No caso do Brasil, vamos receber a vacina de Oxford/AstraZeneca – que já está sendo aplicada por aqui.

“Tanto a carta como o calendário internos da aliança revelam que a situação é mais complexa e lenta que a narrativa do governo tentou apresentar. A primeira condição para que a entrega ocorra é que a OMS aprove o uso emergencial da vacina da AstraZeneca. Por conta de um atraso na entrega de dados por partes de empresas, a agência não tem conseguido realizar as aprovações. A segunda condição: a existência dessas vacinas para a distribuição. Hoje, a AstraZeneca não tem conseguido cumprir seus contratos com os europeus e indicou que cortaria o abastecimento em 50%. O anúncio abriu uma guerra entre a Comissão Europeia e a empresa. Se não bastasse isso, os insumos para a fabricação da vacina não estão sendo liberados com a velocidade necessária na China, o que ameaça os prazos para a entrega das doses também para a aliança internacional”, escreveu ele.

MAIS UMA

Na sexta-feira, a Janssen, subsidiária da Johnson & Johnson, anunciou os resultados da sua vacina contra o novo coronavírus, cujo maior trunfo é ter aplicação em dose única. Os resultados reforçam a preocupação em relação às mutações do SARS-CoV-2. É que a eficácia da vacina oscilou de 72% nos Estados Unidos a 57% na África do Sul. O impacto da variante sul-africana nessa taxa também foi verificada nos testes da Novavax, divulgados um dia antes. No Brasil, onde a vacina da Janssen também foi testada, a taxa ficou em 66% – mesmo número da taxa de eficácia geral da vacina, levando em conta os dados de todos os países onde ela foi testada.  A fase 3 do estudo clínico envolveu 44 mil participantes.  

Embora a vacina da J&J tenha sido menos eficaz na África do Sul, a proteção contra a forma grave da doença manteve-se estável em 85% em todas as regiões, independentemente da cepa viral, um resultado que muitos especialistas em vacinas elogiaram. A taxa é menor do que aquela das vacinas da Moderna e da Pfizer, que usam a tecnologia do RNA mensageiro e demonstraram cerca de 95% de eficácia. Mas, ao contrário desses imunizantes, a vacina da Johnson & Johnson pode ser guardada em geladeira comum por três meses. Isso somado à aplicação em dose única faz do imunizante o logisticamente mais atraente, principalmente quando se pensa em populações rurais e moradores de regiões de difícil acesso.  

Ao mesmo tempo, a Janssen está investigando se a administração de duas doses proporcionará uma proteção mais forte ou mais duradoura.
A empresa deve solicitar a autorização de emergência da vacina ao FDA essa semana, com projeção de liberação no final de fevereiro. Cem milhões de doses foram prometidas para os EUA até o final de junho – e a empresa também deve submeter documentação que prova que sua nova fábrica, em Baltimore, é capaz de produzir a vacina em massa. A companhia diz ter o objetivo de fornecer um bilhão de doses da vacina em todo o mundo em 2021.

No sábado, a Janssen divulgou que “disponibilizará sua vacina” no Brasil “na quantidade e nas condições que vierem a ser acordadas com o Ministério da Saúde”. Mas não divulgou estimativas de quantas doses pode vender, por exemplo. O Plano Nacional de Vacinação, elaborado em dezembro pelo governo federal, cita a expectativa de obter 38 milhões de doses desta vacina a partir do segundo trimestre, mas por enquanto tudo o que existe é um memorando de entendimento com a empresa.

GRÁVIDAS TAMBÉM

A Organização Mundial da Saúde mudou sua orientação sobre a vacinação de mulheres grávidas com os imunizantes da Pfizer e da Moderna. Depois de pressão de especialistas, a entidade abandonou a oposição à imunização para gestantes – mas manteve as restrições em caso de gravidez de alto risco. Ao fazer isso, a OMS se alinhou à orientação sobre o mesmo assunto dada pelo CDC, dos Estados Unidos. As vacinas em questão não foram testadas em mulheres grávidas, mas têm como argumentos favoráveis ao uso nesse público o fato de usarem tecnologia considerada segura e não terem demonstrado efeitos nocivos na fase pré-clínica.

VISITA AGUARDADA

Ontem, o time de especialistas da OMS que investiga as origens da pandemia finalmente visitou o mercado de animais em Wuhan, local onde a primeira infecção humana teria acontecido. A visita aconteceu sob forte esquema de segurança. Desde que foi liberada de uma quarentena de duas semanas na quinta-feira, a equipe visitou hospitais e mercados – sempre guiados pelos anfitriões chineses. 

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