Contas de apoiadores do presidente e ele próprio tiram frase de colunista do EL PAÍS de contexto para parecer que ela apoia pedofilia. Antropóloga é alvo de novas ameaças de morte após jornal paranaense publicar notícia distorcida
por Gil Alessi, em El País
A operação para distorcer um trecho de uma postagem feita pela antropóloga e colunista do EL PAÍS Debora Diniz na rede social Instagram na última quinta-feira colocou a pesquisadora como alvo de de grupos bolsonaristas atiçados pelo próprio presidente, o que fez com que ela recebesse, de novo, ameaças, inclusive de morte. “Débora Diniz acusa Bolsonaro de ‘perseguição a pedófilos”, dizia a chamada feita pelo jornal paranaense Gazeta do Povo e compartilhada na Internet pelo mandatário e por seus filhos. O destaque era ao título e não ao texto e, propositalmente, nem ao contexto da frase. O jornalista esportivo Milton Neves foi na onda do presidente, e comentou no post de Bolsonaro: “Melhor que isso só acusação de ter mandado pedófilos para o inferno no tacho do capeta”.
A postagem de Diniz no Instagram que foi manipulada pelo presidente e suas redes bolsonaristas começa da seguinte maneira: “A pauta prioritária de Bolsonaro no Congresso Nacional tem de arma em casa e na rua para mais gente; crianças em ensino domiciliar; perseguição a pedófilos; vantagens para agronegócios até perseguição aos povos indígenas”. Logo em seguida, Diniz afirma que “a perversidade parece complexa, mas não é. Segue a mesma lógica paranoica do patriarca que amplifica o medo para justificar a truculência. Por isso armas e pedófilos estão na mesma agenda: o patriarca espalha o pânico para justificar seu abuso de poder. Inclusive de ser ele mesmo um violentador sexual de crianças ou mulheres”.
Evidentemente o texto de Diniz não se trata de uma defesa da pedofilia nem de uma crítica ao seu combate, mas sim um exercício de apontar o mecanismo usado por Bolsonaro para manter a população assustada (com medo de pedófilos e outros inimigos fictícios ou não) e oferecer a suposta solução (uma arma em casa) e outras políticas antigênero. No texto de quatro parágrafos, a antropóloga faz referência à agenda prioritária ultraconservadora que o Governo pretende articular com o Congresso após a vitória de candidatos apoiados pelo Planalto para o comando da Câmara e do Senado. A tese da pesquisadora é de que o presidente “amplifica o medo para justificar a truculência (…) espalha o pânico para justificar seu abuso de poder”, usando como bandeira o combate à pedofilia para justificar, por exemplo, o armamento da população e violações de direitos de minorias.
Mas, na era da pós-verdade, a justaposição das palavras foi suficiente para colocar em operação a máquina de distorção que leva a uma torrente de ódio e críticas. Diniz foi ameaçada de morte (“vou dar um tiro na sua cabeça”, “cuidado na esquina, vou matar você, sei aonde você mora”) e foi alvo de todo tipo de xingamento.
A tentativa de colar em políticos e acadêmicos do campo progressista o rótulo de pedófilo ou defensor de pedófilos não é uma tática nova no país, mas ganha força. Um exemplo clássico deste expediente é a fake news batizada de mamadeira de piroca envolvendo o então candidato à presidência da República Fernando Haddad durante a campanha de 2018. À época, apoiadores de Bolsonaro espalharam foto de uma mamadeira com um bico no formato de pênis (um artigo vendido em sex-shops) alegando que quando prefeito o petista implementou este acessório nas creches municipais da capital. O ex-deputado federal Jean Wyllys também era alvo de todo tipo de acusação tentando associá-lo ao abuso de crianças.
Mas este tipo de calúnia e difamação também não são exclusividade da extrema direita brasileira. Nos Estados Unidos o movimento trumpista especializado em fake news e teorias conspiratórias QAnon chegou a acusar políticos do partido Democrata —dentre eles, o próprio Joe Biden— e até o ator Tom Hanks de serem pedófilos a serviço do diabo.
Debora Diniz já era bastante visada por grupos conservadores brasileiros por sua atuação na defesa do aborto seguro para todas as mulheres —e não apenas as de classe abastada—, tema que ela defendeu no Supremo Tribunal Federal em 2018 durante audiências sobre a descriminalização da prática. Os ataques virtuais e ameaças feitas à época contra ela, sua família e até alunos da Universidade de Brasília, onde lecionava, fizeram com que Diniz fosse aconselhada pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo a deixar o país. Atualmente ela é pesquisadora da Universidade de Brown, em Rhode Island, nos Estados Unidos.
Em uma postagem após a enxurrada de ameaças recebidas durante este final de semana, Diniz critica o “fanatismo que move o bolsonarismo”. “Eu poderia dizer ‘ah, leiam o que foi escrito’. Nunca houve defesa da pedofilia. Há uma demonstração sobre o significado do pacote prioritário ambíguo de Bolsonaro no Congresso Nacional. Pedofilia é abominável”, afirma. “Mas não é nem limite de leitura tampouco de escrita que move os odiosos”, conclui.
Nesta terça-feira a Gazeta do Povo voltou suas baterias novamente contra Debora. Com a chamada “ONG pró-aborto de Debora Diniz recebeu 5,2 milhões de reais do Governo na era PT”, o texto aborda projetos realizados pela antropóloga ao longo de 11 anos de trabalho. Dentre eles, o texto destaca o mapeamento e acompanhamento “das denúncias de tortura contra adolescentes em privação de liberdade no território brasileiro” e “implementação de políticas de atenção à saúde da mulher” dois temas relevantes e que lidam com populações vulneráveis. Personalidades da órbita bolsonarista, como Rodrigo Constantino, que chegou a ser afastado de seus empregos na mídia ao relativizar um estupro, compartilharam o texto.
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Debora Diniz em audiência pública sobre a descriminalização do aborto em 2018.CARLOS MOURA / STF