Com quase um ano de pandemia instalada no país, as cerca de 6 mil comunidades quilombolas sofrem com a ausência de ações dirigidas para enfrentamento do Covid nos territórios tradicionais.
Terra de Direitos
A exigência de adoção urgente, pelo governo federal, de medidas no combate à pandemia nas comunidades quilombolas é objeto de ação que começa a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no plenário virtual, nesta sexta-feira (12).
Protocolada em 09 de setembro do último ano pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelo PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 742/2020), sob relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, evidencia a ausência de ações dirigidas às comunidades quilombolas para enfrentamento da pandemia.
Esta é a primeira ação apresentada por uma entidade representativa quilombola no STF. No julgamento, a Conaq será representada pela advogada Vercilene Francisco Dias, quilombola do Quilombo Kalunga (GO), que é também assessora jurídica da Terra de Direitos.
O julgamento também contará com a participação de organizações da sociedade civil na condição de Amicus Curiae, para contribuir com argumentos técnicos e jurídicos sobre os impactos sociais e econômicos sobre falta de um plano de enfrentamento à covid-19 entre os quilombos. A Terra de Direitos foi uma das organizações habilitadas pela Corte.
Omissão
Com quase um ano de manifestação da doença no país, o Estado brasileiro tem sido omisso na elaboração e desenvolvimento de um plano integrado que observe as realidades das cerca de 6.300 comunidades mapeadas pela Conaq. O resultado tem sido a intensificação da extrema vulnerabilidade já presente nos territórios tradicionais – anterior à pandemia, além da ausência de recursos para enfrentamento da grave crise epidemiológica por esta população.
O Ministério da Saúde nem mesmo tem apresentado dados de infecção e óbitos pela Covid-19 na população quilombolas, mesmo com a constatação de que a letalidade é maior entre mulheres e homens negros. Diante da lacuna informativa, tem sido a Conaq que tem mapeado voluntariamente a manifestação dos casos.
Medidas exigidas
Na ação, a Conaq reivindicou a urgente elaboração de um Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, por meio da constituição de um grupo de trabalho. A articulação ainda listou, como ação imediata, a distribuição de equipamentos de proteção individual (máscaras e outros), água potável e materiais de higiene, a adoção de medidas de segurança alimentar e nutricional, como distribuição de cestas básica e garantia de acesso regular a leitos hospitalares e meios para testagem regular e periódica em integrantes das comunidades quilombolas, entre outros. Passados cinco meses do protocolo da ação, os pedidos ainda permanecem atuais, já que a realidades das comunidade mantêm-se inalterada, ou mesmo agravada, com os impactos da pandemia.
“Os pedidos que fizemos na ação tem relação com a desestruturação das políticas públicas e a histórica violação dos direitos das comunidades. Há comunidades atingidas por empreendimentos que ainda lutam pelo direito à água. Disputas territoriais e a não titulação dos territórios dificultam o plantio de alimentos, muitos municípios onde estão as comunidades não têm médico. São pedidos emergenciais que tem relação com uma realidade de negação de direitos já anterior à pandemia”, aponta a assessora jurídica da Terra de Direitos e Conaq, Vercilene Dias.
Um problema estruturante tem sido a negação dos territórios tradicionais às comunidades. Central para garantia de serviços essenciais à comunidade, como água, luz e acesso a políticas públicas, a obtenção do título é ainda realidade distante para as comunidades quilombolas. Apenas 124 comunidades foram tituladas pelo Incra e 183 por órgãos estaduais.
Desde a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), nenhum decreto de desapropriação de território quilombola foi assinado, atrasando ainda mais os processos de titulação em todo o Brasil e confirmando declarações feitas pelo então candidato, durante o período eleitoral, de que, em seu governo não seria concedido nenhum centímetro de terra para indígenas e quilombolas. No Projeto de Lei Orçamentário para 2021, por exemplo, constava o recurso de de pouco mais de R$ 329 mil para governança fundiária – rubrica a que a titulação está vinculada. O montante representa uma redução em 85% do valor de 2020, que totalizava R$ 3 milhões.
Maior vulnerabilidade à pandemia
A intensa desigualdade social e abandono estatal implica em maior vulnerabilidade à doença. Cerca de 75% da população quilombola vive em situação de extrema pobreza, dispondo de precário acesso às redes de serviços públicos, aponta uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Neste quadro, apenas 15% dos domicílios têm acesso à rede pública de água e 5% à coleta regular de lixo, e em 89% dos domicílios o lixo doméstico é queimado. Só 0,2% estão conectados à rede de esgoto e de águas pluviais. O acesso à água e estruturas adequadas de saneamento são apontadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como essenciais para proteção à disseminação desenfreada do coronavírus. A população quilombola também não consta como destinatária de políticas públicas específicas no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023.
Fome e insegurança alimentar
De acordo com as organizações de atuação nos direitos humanos, até o momento a ação mais estruturada voltada para comunidades, no âmbito da pandemia, foi a distribuição de cestas básicas. No entanto, a ação carece de regularidade e transparência. “Temos notícias de um único termo de cooperação entre Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, com a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). Essa ação é evidentemente insuficiente”, aponta a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maira Moreira.
De acordo com o Acordo, apenas entre maio e setembro de 2020, apenas 27.309 famílias teriam recebido cestas básicas, uma quantidade insuficiente para cobertura total das comunidades. De acordo ainda com pesquisa realizada pela Fian-Brasil, a pedido da Terra de Direitos, a iniciativa consistiu na distribuição de duas cestas básicas de 20 kg de alimentos por família, em ação única. “Considerando-se que a maior parte das famílias quilombolas e indígenas tem no mínimo 4 a 5 membros, que o período da pandemia já se estende por 6 meses, as cestas fornecidas não chegaram a cobrir 10% das necessidades calóricas das famílias no período”, aponta a nota técnica.
“Nota-se um contexto de Insegurança Alimentar. Mais de 85, 6% de comunidades quilombolas já viviam em insegurança alimentar em 2011 quando foi realizado um primeiro levantamento nacional. Se naquele momento esse era o quadro, imagine -se agora que houve redução de mais de 70% do orçamento das diferentes políticas de segurança alimentar e nutricional”, aponta Maira, em referência à intensa redução orçamentária destas políticas, mesmo em ano pandêmico. Em 2020 a distribuição de cestas básicas para grupos populacionais em situação de vulnerabilidade sofreu redução em 76% em relação à 2019, de acordo com dados do SigaBR.
Quilombola da Comunidade da Rasa, localizada em Armação dos Búzios (RJ) a assessora jurídica da Terra de Direitos, Gabriele Gonçalves, relata que o aumento no processo dos alimentos e a dificuldade de revenda dos alimentos em feiras agrava o quadro de insegurança alimentar das comunidades. “Há também o não acesso ao auxilio emergencial, o aumento do desemprego e dificuldades de deslocamento para as áreas urbanas. Somado à ausência de ações do governo, as comunidades sofrem sem alimentos”, destaca.
Vacinação
Inseridos no grupo prioritário a ser vacinado, por reivindicação das organizações, o Plano Nacional de Vacinação que as comunidades seriam incluídas, não define o quantitativo populacional a ser vacinado, número de doses da vacina reservadas para esta população e um calendário de vacinação.
“Alguns estados colocaram as comunidades como público prioritário nos seus planos de vacinação, mas a maioria ainda não. E nós esperamos que a ADPF possa nos trazer uma segurança jurídica para obrigar os estados e municípios a cumprir com essa determinação de incluir o quilombola como público prioritário para receber a vacina”, destaca o integrante da coordenação nacional da Conaq, Bico Rodrigues. “A gente espera que essa ADPF possa nos orientar, inclusive no sentido de discutir a logística também dessas vacinas, para a distribuição e também para o acompanhamento dessa vacina na aplicação”, complementa.
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Foto: Lizely Borges