Por Raquel Torres, em Outra Saúde
HORA MAIS SOMBRIA
O Brasil completou ontem 32 dias seguidos com média de mortes acima de mil, o período mais longo de toda a pandemia. O marco anterior – de 31 dias – havia sido registrado entre 3 de julho e 2 de agosto. O mês já havia registrado outro triste recorde: o dia mais mortal da crise sanitária, com 1.105 óbitos em 14 de fevereiro. E certamente vai terminar com a ultrapassagem de mais uma barreira: a das 250 mil mortes. De acordo com a última contagem, o país tinha acumulado mais de 246 mil vidas perdidas para a covid-19.
O ano de 2021 também inaugurou uma mudança no perfil dos que morrem, com ligeiro aumento dos óbitos de pessoas com até 60 anos. Entre novembro e dezembro, correspondiam a 23% das mortes. Em janeiro, o percentual subiu pela primeira vez, chegando a 24,9%. Agora, está em 25,6%. Para especialistas, isso se deve ao aumento dos casos – seja pela maior circulação da variante P1, ainda pouco detectada por falta de vigilância genômica, seja pelo descontrole em geral – e, consequentemente, ao colapso dos sistemas de saúde. No Amazonas, 40% das vítimas tinham 60 anos ou menos em janeiro – percentual bem maior do que os 29% detectados em novembro. Como se sabe, muitas pessoas morreram pela falta do básico: oxigênio.
O risco de falta do insumo é um dos alertas que o prefeito de uma cidade do interior de São Paulo faz ao resto do país. Segundo Edinho Silva (PT), Araraquara enfrenta a falta de produção de oxigênio, algo que parecia “uma cena dantesca a distância” quando aconteceu em Manaus. “O que vivemos em Araraquara é um prenúncio do que está por vir em São Paulo e no Brasil. As autoridades têm que ter dimensão do que está por vir. Estamos em uma situação mais séria do que em 2020“, disse o prefeito em entrevista à GloboNews. Ainda de acordo com ele, cerca de metade das amostras enviadas à USP para sequenciamento genético voltaram com confirmação para a variante P1.
Com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados, a prefeitura decretou no sábado lockdown por 60 horas. Conforme o decreto, só podem abrir farmácias e estabelecimentos de saúde e quem for pego na rua sem justificativa será multado em até R$ 6 mil. De acordo com o prefeito, não adianta mais só abrir leitos – até porque “as cidades têm dificuldades para montar equipes médicas”. Cidades mais ou menos próximas, como Jaú, Valinhos e Botucatu, também estão há dias com todos os leitos de terapia intensiva ocupados.
Em Santa Catarina, a ocupação de UTI para adultos está em 90% – chegando a 97% no oeste do estado. Chapecó vive a situação mais paradigmática, com três dos quatro hospitais superlotados e transferência de pacientes acelerada: em duas semanas 74 pessoas foram encaminhadas para outras regiões. Ainda não há comprovação da nova variante do vírus por lá. A epidemiologista Alezandra Boing, da UFCS, divulgou um mapa com as taxas de ocupação no estado e alertou que “é questão de tempo para o colapso do sistema de saúde”.
Os governos do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Rio Grande do Norte resolveram endurecer medidas de isolamento social ao longo do final de semana. Em todos os estados, porém, a restrição à circulação e abertura do comércio se concentra no período entre a noite e a madrugada. No caso gaúcho, afeta também as aulas presenciais, já que escolas particulares tinham voltado a funcionar nessa modalidade. No RN, o Instituto de Medicina Tropical confirmou a circulação da variante P1.
Na contramão, o governo do Amazonas decidiu liberar a volta de várias atividades a partir de hoje. Restaurantes, comércio de rua e até shoppings poderão reabrir em horários fixados ao longo do dia. O secretário estadual de Saúde, Marcellus Campêlo, informou que as taxas de ocupação de leitos de UTI estão em… 93%. Acontece que na última quinta, 275 pacientes estavam na fila para serem internados. “Vale lembrar que em janeiro esse número chegou a ser 657”, disse ele, como se a comparação trouxesse algum alívio.
MAIS UMA PEÇA
O Ministério da Saúde autorizou a dispensa de licitação para a compra das vacinas Sputnik V e Covaxin, contra a covid-19. E uma coisa chama atenção nos textos, publicados no Diário Oficial no sábado (aqui e aqui):os imunizantes não vão ser comprados direto dos fabricantes, mas por meio das empresas brasileiras que pressionam pela sua liberação. No caso do imunizante russo, a aquisição vai ser feita pela União Química a um custo de R$ 693,6 milhões, enquanto o indiano será trazido ao Brasil pela Precisa Medicamentos, por R$ 1,614 bilhão. A expectativa é comprar 20 milhões de doses da Covaxin e 10 milhões da Sputnik V entre março e maio.
A medida agiliza o processo de aquisição, mas, sozinha, não é suficiente para que ele se desenrole. Isso porque o pagamento só aconteceria após o aval da Anvisa, e as duas vacinas em questão ainda nem enviaram seus dados completos ao órgão. O encurtamento do processo, junto com a negociação antecipada de doses, poderia ser compreensível para garantir que as vacinas estivessem disponíveis assim que a Anvisa as autorizasse. Acontece que, como se sabe, estão tramitando duas MPs que podem forçar esse aval sem a análise técnica da agência, e isso é um problema.
A nova movimentação do governo federal foi criticada por vários especialistas, devido à falta de dados especialmente da Covaxin, que ainda não tem informações sobre eficácia. A vacina só foi aprovada para uso na Índia. “A vigilância sanitária da Índia é bastante frágil, de terceira. A indústria da Índia tem três mil laboratórios. e no máximo 20 são bons. A Índia aprovar não significa nada“, diz Gonzalo Vecina Neto, fundador da Anvisa, ao Estadão.
PEDIDO DE AJUDA
Movido por um tardio desespero para garantir mais doses de vacinas, o Ministério da Saúde pediu ajuda ao Planalto para desemperrar as negociações com a Pfizer e a Janssen. Ontem à noite, a pasta divulgou uma nota afirmando que deseja realizar as compras, mas que as propostas estão “além da sua capacidade de prosseguir negociações”. Pede, por isso, que a Casa Civil forneça esta semana orientações sobre como proceder.
Segundo a pasta, as tratativas estão empacadas desde abril do ano passado “por falta de flexibilidade das empresas”. Não há diferença, porém, entre as exigências feitas pelas empresas ao Brasil e aos outros países que conseguiram finalizar os acordos. Uma das cláusulas prevê que o governo federal assuma responsabilidade em caso de eventuais eventos adversos graves, que até agora se mostraram irrelevantes. Aparentemente, o Brasil prefere lidar com os comprovadíssimos efeitos graves do vírus…
No sábado, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG) disse que vai entrar em ação, construindo uma “ponte” entre os laboratórios e o governo federal. Hoje vai se reunir com representantes de ambas as empresas. De acordo com ele, é possível aprovar uma emenda do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) em uma Medida Provisória para permitir que a União assuma os riscos “sem que haja qualquer tipo de repercussão para as pessoas físicas e até mesmo a União em relação a isso”.
PODEM GASTAR
Até agora, o Ministério da Saúde pedia que as prefeituras usassem apenas metade das vacinas contra covid-19 disponíveis, para garantir que todo mundo recebesse a segunda dose no período certo. A orientação mudou. Em reunião com a Frente Nacional de Prefeitos na sexta-feira, o ministro Eduardo Pazuello disse que serão entregues 4,7 milhões de doses até o próximo dia 28, e que todas devem ser aplicadas. De acordo com ele, há garantia de que novos lotes serão entregues a tempo do reforço. Será?
Pelo sim, pelo não, algumas prefeituras devem esperar pela publicação de uma norma técnica da pasta e pela confirmação de que haverá vacinas suficientes para todos antes de mudar seus cronogramas.
SEJAM PACIENTES
O Instituto Serum, na Índia, pediu paciência aos governos estrangeiros que esperam pelas doses da vacina de Oxford/AstraZeneca produzidas lá. Seu diretor-executivo, Adar Poonawalla, escreveu ontem no Twitter que a empresa “foi instruída a priorizar as enormes necessidades da Índia e, junto com isso, equilibrar as necessidades do resto do mundo”.
A demanda por esse imunizante não para de crescer e, embora o Serum seja o maior produtor mundial de vacinas, sua capacidade de produção não é ilimitada. Para o abastecimento interno, uma campanha nacional precisa usar inicialmente 600 milhões de doses. Outras 240 milhões devem ser entregues à Covax Facility, e dezenas de países de média e baixa renda (como o Brasil) estão importando doses por conta própria. Além disso, 20 milhões de doses devem ser doadas para países do sul asiático.
INTERROGAÇÃO
Deve levar dois meses para os desenvolvedores adaptarem a vacina de Oxford e a CoronaVac às novas variantes, se isso for necessário. No Estadão, a jornalista Fabiana Cambricoli explica como estão sendo conduzidos os estudos para verificar se há redução no desempenho, o que tem sido uma preocupação principalmente em relação à cepa de Manaus.
Essas pesquisas estão acontecendo em duas frentes. Na primeira, é feito o sequenciamento genético nos vírus de amostras de pacientes infectados que tinham sido previamente vacinados para ver se há mais casos de infecção pelas novas cepas do que pela original. Na segunda frente, são feitos testes em laboratório com o soro de pacientes vacinados; o material é colocado em contato com as novas cepas para avaliar a resposta dos anticorpos.
Em tempo: na Itália, há o registro de um homem que foi infectado com a variante de Manaus após ter recebido a vacina da Pfizer/BioNTech. Mas essa informação, por si só, não quer dizer muita coisa, até porque o imunizante não é 100% eficaz nem para a cepa original. O paciente não apresentou sintomas.
LIRA: “DEFENDO A DESVINCULAÇÃO TOTAL”
Em entrevista ao jornal O Globo no domingo, Arthur Lira (PP-AL) defendeu a desvinculação total do orçamento. Segundo o presidente da Câmara dos Deputados, nas “maiores democracias”, essa definição fica a cargo do Legislativo, cabendo ao Executivo gastar o dinheiro. “Eu quero desvincular o orçamento. Hoje, você tem orçamento que bota 25% pra educação, 30% pra saúde, “x” para penitenciárias, vem todo carimbadinho. Então, de 100% do orçamento, 96% você não pode mexer”. O argumento por trás da proposta, feita por Paulo Guedes assim que assumiu o Ministério da Economia, é sempre o de que os gestores poderão escolher aplicar mais em saúde ou educação… Mas vindo de quem defende voucher para consulta médica ou de quem prometeu ‘cuidar’ dos deputados, é claro que parece só um jeito mais fácil de desviar o fundo público conforme os mais variados interesses privados. Hoje, no mesmo jornal, apareceram as críticas a Lira.
Mauro Junqueira, do conselho que reúne secretários municipais de saúde (Conasems), pondera que a desvinculação orçamentária daria mais importância ao varejo na busca pelo financiamento de serviços de educação e saúde via emendas parlamentares, sem garantia alguma de que essa alocação de recursos corresponderia a alguma racionalidade sanitária: “Essa alocação nem sempre atende a necessidade dos municípios. Muitas vezes equipamentos e serviços são levados para regiões que têm menos necessidade. A desvinculação seria muito ruim”.
TRANSMISSÃO PARA HUMANOS
Volta e meia aparecem notícias de surtos da gripe aviária entre animais, que levam produtores e governos a matar milhares de bichos na tentativa de conter o espalhamento – embora raramente elas levem à contestação do modelo de criação industrial, apontado por muitos especialistas como cenário ideal para seu surgimento. Pois o perigo chega mais perto de nós com a confirmação de que uma das cepas da gripe, a H5N8, foi detectada em humanos pela primeira vez. Aconteceu na Rússia, onde sete trabalhadores de uma granja ficaram doentes em dezembro. Durante o anúncio, no sábado, as autoridades daquele país frisaram que não há evidências da transmissão entre humanos – mas que “só o tempo dirá se mutações futuras permitirão que ela supere essa barreira”. A cepa H5N8 é mortal para as aves, mas os trabalhadores se recuperaram. O país notificou a OMS e anunciou que vai começar a testar uma vacina contra a H5N8. Outras cepas da gripe aviária, como H5N1, H7N9 e H9N2, já foram transmitidas por aves a humanos antes.
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Imagem: Benett