SUS corre risco histórico com PEC Emergencial

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

RISCO HISTÓRICO

A primeira parte da conta da vitória de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL) às presidências do Senado e da Câmara não demorou a chegar – e, ao contrário do que se pensava, pode ser cobrada não de Bolsonaro, mas do SUS. Ontem pela manhã, Pacheco confirmou que  colocará em votação na quinta-feira a PEC Emergencial. Logo depois, a  Folha publicou a primeira reportagem explorando o conteúdo do relatório do senador Márcio Bittar para a proposta, enviado a lideranças partidárias na noite de domingo para uma rodada avaliação antes de ser protocolado. E lá está uma ideia que vem circulando há tempos e havia sido defendida na véspera por Lira em entrevista ao Globo: a desvinculação do orçamento, com extinção dos pisos para saúde e educação. 

A cereja do bolo? A garantia de financiamento mínimo para as áreas sociais – que no caso da educação só deixou de existir em períodos autoritários, como lembra o Estadão, e no caso da saúde foi conquistada em 2000 e regulamentada a duras penas em 2012 – aparece como escambo para a reedição de algumas parcelas do auxílio emergencial.    

Com isso, o governo Bolsonaro sai ganhando em várias frentes. Por um lado, o presidente não precisa extinguir abono salarial ou Farmácia Popular, como defendia Paulo Guedes no contexto do fracassado anúncio do Renda Brasil. Por outro, seu ministro da Economia vê em discussão uma proposta que defende desde a posse: a desvinculação dos gastos sociais para União, estados e municípios.

Ao contrário de quando foi formalizada pela primeira vez, na PEC do Pacto Federativo, a mudança na regra de financiamento da saúde e da educação agora tem menos resistência dentro do Congresso, segundo Bittar (que é relator das duas propostas). Se soma ao apoio explícito de Lira uma declaração de Pacheco dada ontem: o presidente do Senado se disse “simpático” à desvinculação. Mas retomou outra ideia que já tinha aparecido na tramitação do Pacto Federativo: a unificação dos pisos das duas áreas. Esse seria, segundo ele, um “caminho de meio termo interessante para o Brasil”.   

As bancadas da saúde e da educação estão se articulando para derrubar a desvinculação, mas ainda não ficou claro se haverá oposição semelhante caso vingue o “meio termo” da unificação dos pisos – que também foi muito criticado por especialistas quando surgiu na PEC do Pacto Federativo, dentre outras razões por colocar as duas áreas em uma guerra fratricida. 

Na época, o economista Carlos Ocké analisou a proposta a pedido do Outra Saúde: “O governo federal se utiliza de argumentos demográficos para dizer que, com o aumento da população idosa e a diminuição da taxa da natalidade, a tendência é que haja demanda maior por saúde do que por educação e isso poderia ser calibrado lá na frente. Mas, na verdade, você vai acabar prejudicando esses dois segmentos populacionais. Não podemos perder de vista que a crise econômica e o próprio ajuste fiscal vêm piorando as condições de vida e saúde da população, como atestam estudos sobre austeridade fiscal no Brasil e na Europa. E isso inclusive tem feito com que a pressão sobre o SUS aumente, como se já não bastasse a pressão decorrente do aumento da violência, da pobreza e da desigualdade.” Se isso era verdade em 2019, imagina em 2021, no pior momento da pandemia para o Brasil?

Em relação à extinção dos pisos, muitos juristas defendem que seria inconstitucional fazer qualquer mudança, pois sendo os direitos à saúde e à educação cláusulas pétreas da Constituição a falta de sustentação financeira violaria sua garantia

Para estados e municípios, o piso constitucional da educação é de 25% da receita. No caso dos serviços e ações de saúde, é de 12%, para estados, e 15% para prefeituras. Com a aprovação da EC 95, do Teto de Gastos, o financiamento da União nas duas áreas passou a ser calculado com base no valor desembolsado no ano anterior corrigido apenas pela inflação. Especialistas em financiamento da saúde vem denunciando perdas bilionárias para o SUS desde que se instituiu o teto e defendendo sua extinção. Ontem mesmo, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva enviou uma carta ao Congresso em que reforça o pleito.   

PRESSÃO DO AUXÍLIO

A transposição de conteúdos da PEC do Pacto Federativo para a PEC Emergencial choca porque, como o nome já diz, essa última proposta surgiu no contexto da pandemia para dar conta de problemas intrínsecos a ela. Sua votação deve acontecer em ritmo acelerado – Rodrigo Pacheco projeta uma aprovação no Senado no mesmo dia em que a proposta entra em pauta, ou seja, na quinta-feira. Para isso, precisa de 49 votos.

E já se negocia com o governo que a passagem pela Casa destrave, finalmente, o auxílio emergencial. Com isso, o presidente enviaria uma MP para retomar o pagamento do auxílio já em março, desde que a Câmara dos Deputados assumisse o compromisso de também aprovar a PEC Emergencial. É necessário que 308 deputados votem a favor da mudança constitucional.

Os valores e a duração do auxílio ainda estão sendo discutidos. Bittar defende R$ 300 – e ontem Arthur Lira disse que o Congresso tem que ter “responsabilidade” para não ultrapassar esse valor. Segundo a Folha, o governo queria pagar três parcelas de R$ 200, mas aceitaria uma negociação em que o valor subisse para R$ 250. Já de acordo com o Valor, o governo deve propor quatro parcelas de R$ 250. A despesa fica em R$ 30 bilhões – e a PEC Emergencial garante que isso fique de fora do teto de gastos, da regra de ouro e da meta fiscal. 

De acordo com o colunista Lauro Jardim, o ministro da Economia tem dito nos bastidores que a despesa com a volta do auxílio será compensada com as “fartas economias que o governo fará no médio e longo prazo a partir da desvinculação das despesas obrigatórias”.

TRAVAS E GATILHOS

Além da extinção dos pisos da saúde e da educação, o troco para a volta do auxílio será a instituição de regras para o estado de calamidade pública. Deve funcionar assim: se quiser criar despesas com impacto fiscal, o governo encaminhará ao Congresso um pedido para a decretação de calamidade. A partir daí, por dois anos ficam congelados os salários de servidores públicos e proibidas promoções, contratações e concursos, dentre outros. É o que Paulo Guedes está chamando de “novo marco fiscal”. De acordo com a apuração de vários veículos, a equipe econômica não considera necessário recorrer ao pedido de calamidade em 2021, uma vez que o auxílio seja destravado pela PEC Emergencial. Mas a verdade é que  nada impede que isso aconteça ainda este ano, como lembra o Estadão.   

O outro tipo de cenário emergencial disciplinado por essa PEC é aquele em que as despesas correntes de União, estados e municípios superam 95% das suas receitas correntes. Aí surgem os tais “gatilhos” para gastos públicos, semelhantes ao estado de calamidade: congelamento de salários, proibição de concursos, etc. Mas entrar ou não nesse regime dependerá da situação de cada ente. No caso da decretação de calamidade pública de âmbito nacional, as regras precisarão ser seguidas por todos. 

VIA ALTERNATIVA

Já que o Executivo não consegue se entender com empresas como Pfizer e Janssen para a compra de suas vacinas contra a covid-19, deve caber aos parlamentares tentar destravar os contratos. Ontem, depois de se reunir com representantes dos dois laboratórios, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco encontrou o ministro Eduardo Pazuello para propor soluções.

Não está muito claro qual é o problema do governo com a Janssen. No início do ano, o general anunciou a compra dessa vacina, dizendo que se tratava da “melhor negociação”, mas que só haveria três milhões de doses disponíveis a partir de abril ou maio. Até agora, nada foi feito para garanti-las.

Já com a Pfizer, como se sabe, o governo considera “leoninas” as cláusulas que isentam a empresa de responsabilidade por quaisquer eventos  adversos do imunizante. Essa exigência não vai mudar. Então, uma proposta de Pacheco é aprovar uma emenda do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) à MP 1026 – aquela que pretende permitir a compra de produtos aprovados em vários países sem o aval da Anvisa – para incluir algum dispositivo que autorize a União a assumir os riscos inerentes à vacina.

Outra é permitir que os estados comprem diretamente dos laboratórios, aceitando as exigências por conta própria. O detalhe aqui é que a iniciativa privada também poderia participar das aquisições – mas precisamos lembrar que tanto a Pfizer quanto a Janssen já afirmaram que, ao menos por ora, descartam vender seus imunizantes a esse mercado.

Ou seja: no que depende de ajustes legais, o Congresso vai se mexer. Mas as decisões sobre firmar ou não os acordos ainda vão caber ao Ministério da Saúde – cada vez mais pressionado, claro.

POR QUE TANTO BARULHO?

A recusa do Ministério da Saúde em assinar o contrato com a Pfizer chama a atenção porque 69 países já fecharam negócio e está tudo correndo bem. Na reunião com Pacheco, a empresa afirmou que as cláusulas consideradas abusivas pelo governo brasileiro são “uniformes” e valem “para todos os clientes”. Disse ainda que elas são comuns a farmacêuticas: seguem um padrão internacional e estão em vigor em outros contratos ao redor do mundo. Na América Latina, só a Venezuela, a Argentina e o Brasil não aceitaram as regras.

Mas uma reportagem interessante do Bureau of Investigative Journalism,  do Reino Unido, afirma que a Pfizer trata diferente os governos latino-americanos nas negociações, atrasando ou inviabilizando a assinatura dos contratos. Segundo os jornalistas, é comum que os governos ofereçam isenção de responsabilidade às empresas, mas algumas exigências rechaçadas pelo governo brasileiro não estariam sendo feitas a todos os compradores.

É o caso da disponibilização dos ativos soberanos – o que pode incluir reservas de bancos federais, edifícios de embaixadas ou até bases militares – para cobrir cobrir possíveis ações no exterior. “Foi uma exigência extrema que eu só ouvi na hora de negociar a dívida externa, mas tanto naquele  caso quanto neste, rejeitamos imediatamente”, diz na matéria um funcionário do governo argentino.  

Segundo o professor Lawrence Gostin, diretor do Centro Colaborador da OMS para Legislação Sanitária Nacional e Global, a Pfizer pediu indenização adicional em casos cíveis na região; com isso, a empresa não se responsabiliza nem por seus próprios atos de negligência, fraude ou malícia. Por exemplo, se houver problemas na fabricação ou erro no envio das doses, ou ainda na manutenção da cadeia de frio. Gostin aponta que as empresas não têm o direito de pedir indenização por esse tipo de coisa.

A postura do governo Bolsonaro ao longo de toda a pandemia é indefensável, mas reportagens como essa evidenciam que a judiação pode vir em várias camadas. “As empresas farmacêuticas não deveriam usar seu poder para limitar as vacinas que salvam vidas em países de baixa e média renda. E isso parece ser exatamente o que estão fazendo”, alerta Gostin, apontando que a autoproteção das empresas não deveria ser usada como “a espada de Dâmocles pairando sobre as cabeças de países desesperados com uma população desesperada”. 

SAÍDA GRADUAL

Após 49 dias de um bloqueio nacional extremamente rígido e de ter aplicado alguma dose de vacina a mais de um quarto da população, o Reino Unido anunciou ontem seu plano para sair do lockdown. O número de novos casos caiu 81% do meio de janeiro até aqui; a média diária de mortes atingiu um pico na última semana daquele mês, com 1,2 mil óbitos, e agora está em cerca de 480, o que dá uma queda de 60%. A transmissão não está zerada, mas a cautela do novo plano ganhou elogios de especialistas.

Ao contrário do que foi a reabertura após a primeira onda, agora a ideia é que ela seja mais lenta, com cinco semanas separando cada uma das etapas. Na primeira, dia 8 de março, todas as escolas serão reabertas. Isso vai acontecer antes mesmo de o governo liberar reuniões sociais em locais  como parques e a prática de esportes ao ar livre. Vale notar que, mesmo em lockdown, as escolas não ficaram totalmente fechadas. Crianças em situação de vulnerabilidade e filhos de trabalhadores essenciais puderam continuar frequentando aulas presenciais. O mesmo tem acontecido em outros países europeus, como a Alemanha.

Só em abril é que devem reabrir o comércio não essencial, salões de beleza e lugares que servem refeições ao ar livre. Viagens internacionais continuam proibidas pelo menos até maio. A última coisa a reabrir serão as boates, o que está programado para acontecer em junho, se tudo der certo.

Reprodução/ Marcello Casal Jr. /Agência Brasil

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