Com uma morte por mês em 2020, mineração capixaba mantém lucros bilionários

Foram 12 trabalhadores mortos na extração de rochas ornamentais. Em 2021, indústria prevê faturar mais

Por Fernanda Couzemenco, Século Diário

Foi em 1957 que a primeira pedra de mármore foi cortada em solo capixaba, em Vargem Alta, na época distrito de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado. O feito aconteceu 22 anos depois da atividade de beneficiamento ter iniciado, também na cidade. Os sindicatos só foram criados décadas depois: o patronal em 1973 e o de trabalhadores em 1990, na mesma época em que teve início o licenciamento ambiental da atividade. Afora a história humana, contada em menos de um século, as dimensões geológica e econômica do setor são contadas aos bilhões. Bilhões de anos, bilhões de dólares, bilhões de quilogramas de pedras retiradas dos patacões e maciços de granito e mármore do sul ao norte do Estado.

Parte dos granitos extraídos das pedreiras capixabas formou-se entre 3,6 e 3,2 bilhões de anos, quando os primeiros continentes surgiam no planeta Terra. Mármores são um pouco mais recentes, tendo surgido há cerca de um bilhão de anos, junto com os fungos mais conhecidos da ciência. Há ainda outra série de granitos ainda mais jovens, com cerca de 477 milhões de anos.

Em bilhões também é medido o faturamento do setor. Em 2019, segundo o Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (Sindirochas), as exportações brasileiras bateram novamente a casa de um bilhão de dólares, 82% delas saídas das pedreiras e portos capixabas. No mercado interno, estima-se que circule o dobro de dividendos, totalizando um faturamento na ordem de três bilhões de dólares, um terço disso gerado no Espírito Santo.

Em peso, a estimativa é de uma produção estadual de três milhões de toneladas, um terço do volume nacional, de 9,2 milhões.

Faturamento em alta

Em 2020, apesar do freio imposto pela pandemia de Covid-19 na economia mundial, a percepção das indústrias foi de que o ano fechou com alta em relação ao anterior. Em levantamento feito em meio eletrônico pelo Sindirochas com empresas do Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais e Ceará no final de janeiro, 80% delas disseram ter havido crescimento no mercado interno, 11% informaram estabilidade e apenas 9%, queda. Já o volume total de negócios registrados em 2020 foi maior que em 2019 para 56% das empresas, estável para 29% e menor para 15%.

Para 2021, a expectativa é de crescimento, a partir de uma divulgação mais assertiva do produto brasileiro e capixaba junto aos mercados externo e interno. A consulta do Sindirochas apontou que 75% das empresas têm expectativa de crescimento em relação a 2020, e o expressivo percentual de empresas que indicaram a realização de investimentos em 2021 (69%) reforça a percepção de otimismo do setor.

Segundo as participantes da consulta, os investimentos previstos serão aplicados em equipamentos para beneficiamento (42%), qualificação de mão de obra (25%), instalações físicas (25%), software de gestão (14%) e em equipamentos para pedreiras (11%).

A maioria das empresas (48%) apontou ainda que espera alta nas vendas entre 11% e 25%. Outros 25% acreditam que será um ano de estabilidade, 13% projetam crescimento de 10% nos negócios e 2% dos participantes possuem expectativas de altas superiores a 50% no volume de vendas em relação a 2020.

No Brasil, esse crescimento promete extrapolar os R$ 5 bilhões de faturamento estimado para toda a cadeia produtiva do setor, que envolve, além da venda das rochas, o comércio de máquinas, insumos e equipamentos, bem como os serviços especializados de consultoria, advocacia e transportes.

Mortes, doença, medo e pobreza

Na base da geração de tanta riqueza, no entanto, estão os trabalhadores, algo em torno de 25 mil empregos diretos e 100 mil indiretos nas 1,6 mil empresas existentes no Estado, segundo o Sindicato das Indústrias de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (Sindirochas).
Para os operários do setor, o dia a dia é feito de perigo (foram 12 mortes de janeiro a novembro de 2020), insalubridade (a silicose, doença do “pulmão de pedra”, ainda é uma triste realidade), baixos salários e medo de demissão.

“O trabalhador do mármore e granito gera riqueza e vive na pobreza, não consegue comprar o que ele próprio produz”, resume o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Mármore e Granito do Espírito Santo (Sindimármore), Messias Morais Pizetta.

O piso salarial, pago por 90% das empresas, informa, é de R$ 1,55 mil reais, sendo acrescido por 20% de insalubridade, o que chega a menos de R$ 2 mil por mês para uma carga horária de 40 horas semanais.

A silicose ou “pulmão de pedra”, doença gerada pela inalação do pó de sílica, gerado no corte do granito, ainda está presente entre os trabalhadores capixabas, apesar de conquistas importantes para a categoria, como a perfuração úmida e o acabamento a úmido. Havendo ainda muitos produtos químicos, como resinas e ácidos, excesso de ruídos … vários agentes agressivos contra a saúde. E claro, as quedas de pessoas e de lâminas de pedras, responsáveis pelas mortes em campo, apesar das cercas instaladas próximo aos paredões, e de uma infinidade de técnicas ensinadas nos cursos de capacitação.

Messias conta que as empresas enviam os trabalhadores para os cursos, mas muitas novas técnicas e protocolos de segurança não conseguem ser implementadas por falta de aprovação dos patrões. E, com medo de perderem o emprego, acabam se sujeitando a condições perigosas de trabalho.

“Teria que começar de cima pra baixo. Os empregadores deveriam fazer os cursos. São os gerentes e encarregados que precisam, primeiro, ter a visão de segurança”, argumenta. “Precisa mudar o ambiente de trabalho e para isso tem que investir”, afirma.

Outra necessidade que salta aos olhos é a de fiscalização, por parte da Delegacia Regional do Trabalho (DRT). “A deficiência de fiscais é muito grande, está sem concurso há dez anos e muitos auditores se aposentaram recentemente”, contextualiza.

‘Polido com sangue’

A tragédia da mineração de rochas ornamentais do Espírito Santo foi registrada em reportagem especial da Pública Agência de Jornalismo Investigativo, publicada nessa quarta-feira (17) com o título Polido com sangue: mármore e granito produzidos no Espírito Santo vão para o exterior à custa de vidas de trabalhadores.

A reportagem apurou 220 mortes de trabalhadores de pedreiras entre 2005 a 2020, o que representa o setor econômico mais letal do Espírito Santo. Relatou também o drama de várias viúvas e mães que perderam seus filhos e maridos em trabalho, além da luta dos trabalhadores contra a silicose. E evidencia o mecanismo de migração de trabalhadores da agricultura para a mineração, em função da falta de investimento na agricultura familiar, que empobrece o campo, deixando poucas alternativas de subsistência para muitas famílias.

Recurso não-renovável

A agressividade característica do setor, que marca o corpo dos trabalhadores, também provoca profundas cicatrizes no corpo planetário. Para que imóveis nos quatro cantos do mundo sejam ornamentados com luxuosos granitos e mármores, gerando lucros meteóricos aos empresários, imensas chagas são abertas na natureza, destruindo fauna, flora, corpos d’água e paisagens.

A utilização de equipamentos mais modernos, como os teares de fios diamantados, que produzem menos Lama de Beneficiamento de Rochas (LBRO), e a destinação adequada dos rejeitos, em aterros previamente licenciados, têm reduzido sobremaneira os impactos sobre os recursos hídricos. O jovem licenciamento ambiental e a fiscalização garantem o reflorestamento em dobro dos hectares desmatado para a instalação das pedreiras. Mas a destruição da paisagem é irrecuperável.

A retirada de um maciço é irreversível, pois os recursos minerais não são renováveis, ou seja, depois de retirados das entranhas da Terra, não podem mais ser repostos. Bilhões de anos de lento trabalho geológico já se esvaíram do território capixaba em pouco mais de meio século.

Recentemente, descobrimos que o valor financeiro das florestas em pé é muito maior que qualquer utilização econômica das mesmas, considerando a produção de água e solo fértil, a captura de carbono e outros serviços ecossistêmicos. Descobrimos que as tartarugas marinhas e as baleias valem mais vivas do que mortas e que a extração de petróleo será economicamente inviável em algumas décadas. E quanto às pedreiras?

Qual o valor econômico intrínseco de uma maciço, um monte, uma pequena montanha? Que serviços ambientais eles nos prestam, apenas por existirem? Até quando será economicamente viável destruí-los em nome do lucro e luxo de alguns?

Foto: Weverson Rocio/Setur

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