Missões fundamentalistas: um dos pilares do etnocídio indígena no Brasil. Entrevista especial com Felipe Milanez

Trabalho missionário fundamentalista é disfarçado de atividade humanitária para converter indígenas, diz o pesquisador

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

As conversas informais do jornalista Felipe Milanez com sertanistas quando atuava como editor da revista Brasil Indígena, da Funai, em 2006, o levaram a investigar a atuação de missões religiosas em comunidades indígenas, em especial aquelas promovidas pelas agências missionárias evangélicas pentecostais. Segundo ele, essas instituições, financiadas por Igrejas de diferentes denominações, como batista, metodista e presbiteriana, são “um dos pilares do etnocídio dos povos indígenas no Brasil”.

Atualmente, existem 40 agências missionárias no país, organizadas na Associação de Missões Transculturais Brasileiras – AMTB, instituição responsável pela organização de congressos brasileiros de missões periodicamente. “Existem dezenas de missões atuando no Brasil e a maioria é de origem internacional e se nacionalizou, como a Missão Novas Tribos do Brasil ou a Jovens Com Uma Missão – Jocum. Além dessas, há outras que foram surgindo com a ideologia de ‘plantar igrejas’, ou seja, formar agentes missionários e agentes missionários indígenas para que eles próprios atuem como missionários. Elas têm uma visão bastante colonialista da Bíblia”, informa.

Na avaliação dele, essas agências compõem um mercado de almas que negocia as almas indígenas. “Há um espírito do capitalismo nessas missões, o qual está associado a interesses colonialistas e de submissão do outro a uma forma de ver o mundo. (…) Como o projeto missionário é um projeto colonialista, racista, que vê o outro como um bárbaro que precisa ser civilizado, ele se associa muito bem a outros projetos capitalistas que também veem o outro como um inferior a ser explorado. Há relatos e casos no Brasil de associações desses missionários com garimpeiros, como aconteceu no Amapá, contra os Oiampi, há casos de associações com madeireiros etc.”, menciona. E acrescenta: “Em todos os lugares, esses missionários fundamentalistas estão próximos daqueles que também querem explorar o território e os corpos dos indígenas. O que reaproxima essas visões, a meu ver, é o colonialismo”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Milanez também destaca a relação dessas agências com o governo Bolsonaro, através da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. “Essas agências fundamentalistas conseguiram, no governo Bolsonaro, um ministério e isso é inédito desde que elas vieram para o Brasil, em 1950”, afirma. A parceria entre as agências e o governo, menciona, “refletiu na nomeação do pastor Ricardo Lopes Dias, que foi da Novas Tribos, para a Funai. Não ficou explícito até hoje como aconteceu esse acordo e a negociação entre ruralistas e missionários fundamentalistas, que provocou um choque internacional diante do risco iminente, denunciado pelo movimento indígena, de genocídios e epistemicídios. Aparentemente, esse missionário não serviu de forma eficaz aos interesses econômicos que compõem esse quadro de alianças reacionárias do governo Bolsonaro, tanto que, nomeado em janeiro, em menos de um ano ele foi derrubado”. Milanez diz ainda que “junto à Damares e à Michelle Bolsonaro, existe um canal de financiamento dessas agências e, mais do que isso, um canal de fortalecimento político para conseguir força política e a autorização da entrada dessas missões nas aldeias”.

Felipe Milanez é doutor em Sociologia pelo Centro de Estudos Sociais – CES, da Universidade de Coimbra, e mestre em Ciência Política pela Universidade de Toulouse, na França. Atualmente, leciona no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia – UFBA e coordena o grupo de trabalho Ecologia(s) Política(s) Desde El Sur/Abya Yala no Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais – Clacso. Tem uma coluna na CartaCapital e neste mês publicará o livro Guerras da Conquista (São Paulo: Harper Collins, 2021) em coautoria com o historiador Fabrício Lyrio Santos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Há alguns anos você pesquisa o que denomina de “trabalho missionário fundamentalista”. Do que se trata propriamente?

Felipe Milanez – O trabalho missionário fundamentalista é uma classificação externa de quem pratica esse tipo de trabalho e que, obviamente, não se classifica como tal. Os missionários fundamentalistas definem sua atividade com outros termos, como salvacionista, trabalho para salvar as almas, trabalho de promoção da religiosidade integral etc. Esse trabalho é fundamentalista pelo fato de ser extremamente radical, obstinado e violento em seus propósitos. Não fui eu quem inventou esse termo. Essa conotação sempre existiu para diferenciar esse tipo de missão do trabalho religioso católico e cristão que é feito com os povos indígenas no Brasil. Alguns trabalhos “missionários” são extremamente fundamentalistas, e há um grupo pequeno que pratica esse proselitismo de uma forma violenta, contra a espiritualidade e as almas indígenas.

Esse é um problema que já ocorre há muitos anos. Trabalhei como jornalista na Fundação Nacional do Índio – Funai e nunca me esqueço das conversas informais com os sertanistas, nas quais eles comentavam que, para lutar pelos direitos dos povos indígenas, era preciso enfrentar dois problemas difíceis de resolver: madeireiros e missionários fundamentalistas. Ou seja, os sertanistas fazem uma diferenciação entre madeireiros e missionários fundamentalistas em relação a outros atores, como garimpeiros, ruralistas, mineradores, porque os dois primeiros grupos nunca desistem de explorar as vidas e os territórios indígenas. Então, a partir dessa experiência, há 15 anos comecei a acompanhar esse tema, que forma um dos pilares do etnocídio dos povos indígenas no Brasil hoje.

IHU On-Line – Como e desde quando esse tipo de trabalho missionário fundamentalista vem sendo realizado no Brasil, em que regiões ele é predominante e qual é o público-alvo? São os indígenas?

Felipe Milanez – Não são somente os indígenas. Isso acontece em relação aos povos quilombolas e todos aqueles “não alcançados”. No sertão do Nordeste há uma atuação muito forte de missões, como também nas periferias e em vários locais do país. Mas em relação aos indígenas a situação chama bastante atenção, porque a violência e as contradições ficam muito expostas.

A atuação de missão é muito antiga e também tem um sentido civilizacional, uma vez que a missão tem o objetivo de civilizar os bárbaros. O Evangelho de Marcos diz que se deve pregar o Evangelho a toda criatura, inclusive a não humana, ou seja, a todos os bárbaros. Essa relação entre civilização e barbárie é recorrente na formação do pensamento ocidental. Lévi-Strauss classificou de forma interessante e ácida a violência desse projeto civilizacional: o bárbaro é aquele que faz barbárie contra o outro, ou seja, quem é bárbaro é quem está atribuindo o projeto civilizacional a outro.

No início da colonização do Brasil, houve uma aliança com os jesuítas para a formação do projeto político-civilizacional dos povos indígenas. Ao longo da história, isso mudou e os franceses e protestantes, quando vieram para o país, também tiveram o mesmo propósito. Diferentes ordens católicas, em diferentes momentos da história do Brasil, também fizeram alianças com os indígenas, como os capuchinhos, depois que os jesuítas foram embora. Mais tarde, o próprio Estado brasileiro assumiu a prerrogativa civilizacional do outro, o que pode ser feito via educação, e aí há uma violência estrutural.

Agências missionárias

A maioria das ordens católicas e protestantes reviu seus processos ao longo da história, principalmente a Igreja Católica, com o Concílio Vaticano II, e com uma outra atuação que veio a formar, posteriormente, o Conselho Indigenista Missionário – Cimi e a Comissão Pastoral da Terra – CPT. Mas existe um processo histórico recente, surgido no pós-guerra, com igrejas fundamentalistas dos EUA – estamos vendo Trump e Bolsonaro recebendo o apoio dos fundamentalistas –, que é o surgimento de agências missionárias treinadas para explorar o mundo num projeto colonial e imperialista dos EUA. Algumas dessas agências foram financiadas pelo barão do petróleo, Nelson Rockefeller, cuja denúncia consta no livro Seja feita a vossa vontade: a conquista da Amazônia – Nelson Rockefeller e o evangelismo na idade do petróleo, de Gerard Colby e Charlotte Dennett. Esses grupos começaram a desembarcar no Brasil nos anos 1950 e se radicalizaram nos anos 1960 a partir de uma leitura fundamentalista da Bíblia, segundo a qual, sem a conversão, necessariamente, as almas estão condenadas. Portanto, é necessário converter todos os povos da terra. Nos anos 1980, houve uma tentativa de intimidade dessas agências com a ditadura.

Esses grupos se organizam através do lobby da Associação de Missões Transculturais Brasileiras – AMTB e hoje há uma série de agências radicais que atuam junto aos povos indígenas, aos quilombolas, às comunidades do sertão, nas periferias, mas também junto aos judeus e muçulmanos, como por exemplo a missão Judeus por Jesus, focada em converter judeus. O Brasil exporta missionários para o mundo inteiro; eles não estão só na Amazônia. Algumas pessoas que promoveram missões com os Uruará foram expulsas das comunidades e foram fazer missão na Turquia, na Arábia Saudita.

IHU On-Line – Quais são as instituições que realizam e financiam esse tipo de trabalho missionário fundamentalista? São principalmente instituições religiosas ou não? De quais denominações?

Felipe Milanez – Elas são evangélicas pentecostais e muitas se denominam históricas, mas seguem o pentecostalismo americano. São diferentes denominações e a questão central é que elas se organizam em agências missionárias e não em igrejas. Elas são financiadas por diferentes igrejas, como a batista, a metodista e a presbiteriana, numa leitura completamente radical da Bíblia.

Existem dezenas de missões atuando no Brasil e a maioria é de origem internacional e se nacionalizou, como a Missão Novas Tribos do Brasil ou a Jovens Com Uma Missão – Jocum. Além dessas, há outras que foram surgindo com a ideologia de “plantar igrejas”, ou seja, formar agentes missionários e agentes missionários indígenas para que eles próprios atuem como missionários. Elas têm uma visão bastante colonialista da Bíblia. Todas as instituições que vão surgindo no país se organizam dentro do guarda-chuva da AMTB, que organiza congressos brasileiros de missões periodicamente. Este ano, vai acontecer um congresso em Águas de Lindóia, SP, no segundo semestre. Eu acompanhei dois desses congressos e foi ali que conheci essas diversas agências.

Mercado de almas

A organização dessas agências compõe, a meu ver, um mercado de almas que negocia as almas indígenas. Ou seja, há um espírito do capitalismo nessas missões, o qual está associado a interesses colonialistas e de submissão do outro a uma forma de ver o mundo. Esse mercado de almas, que negocia e precifica as almas indígenas, é muito violento, atuante e vem se desenvolvendo nos últimos anos.

É importante dizer que essas missões são diferentes do neopentecostalismo brasileiro. Essa é uma questão que se confunde muito no Brasil porque qualquer religioso que está numa aldeia é chamado pela imprensa de missionário. A imprensa confunde os atores e chama todo mundo de missionário fundamentalista. Às vezes acontece de ter um agente do Cimi, que nem é religioso, ou um pastor da Igreja Universal numa aldeia e ambos são chamados de missionários, quando na verdade não são. Essa confusão é muito negativa para a compreensão do problema central da violência etnocida, que deve ser combatida. Os povos indígenas têm o direito fundamental de professarem livremente sua religiosidade e crenças.

IHU On-Line – Numa das suas matérias sobre o tema, você diz que os “índios pastores formam o que os missionários evangélicos consideram ser a terceira onda evangelizadora” no Brasil. Pode nos explicar como se dá a formação de índios pastores e como eles atuam posteriormente à formação?

Felipe Milanez – Em primeiro lugar existe uma estratégia de conquista do colonialismo, que consiste em promover divisões e, a partir delas, conquistar os povos. Isso é algo antigo e acontece através de inúmeras estratégias: seja dando dinheiro, benefícios e poder a determinados agentes, seja identificando brigas internas para formar alianças e, a partir delas, tentar conduzir as disputas para os interesses dos missionários. Isso é algo estrutural e não são somente os missionários que agem assim; o governo federal e o presidente Bolsonaro agem de forma extremamente violenta com a questão dos garimpos, por exemplo.

Proibição de missionários em aldeias

A partir de 1991, a Funai proibiu a entrada de missionários nas aldeias e cancelou todos os convênios que tinha com as missões. A aliança de missões com o Estado brasileiro é antiga, seja historicamente, antes da República, seja mais recentemente, durante a ditadura. Naquele período havia uma disputa muito grande entre o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, a Igreja Católica e todas as Igrejas protestantes. Em 1973, foi promulgado o Estatuto do Índio, garantindo terra e direito aos povos indígenas, o mesmo ano em que foi criado o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, da Igreja Católica, para defender os direitos dos povos indígenas. Nos anos 1970 muitas missões pentecostais norte-americanas também começaram a chegar na Amazônia, sem nenhum controle por parte do Estado, o que preocupou militares nacionalistas, que passaram a espionar tanto o Cimi quanto as agências norte-americanas.

Algumas agências tentaram se mostrar diferentes do Cimi em ideologia e buscaram aproximação com os militares. A New Tribes Mission, por exemplo, que trabalhava com 25 povos na Amazônia e no Nordeste, propôs um convênio com a Funai e se comprometeu a passar informações de seus trabalhos para a instituição. No convênio falavam em assistência à saúde, educação, e até incentivar “o desenvolvimento da agricultura e da pecuária”. Tudo para a conversão. A proposta de um convênio geral recebeu duras críticas de indigenistas da Funai, que acusaram o proselitismo e desrespeito ao Estatuto do Índio, mas mesmo assim tiveram algumas autorizações de trabalhos e convênios específicos com alguns povos.

Isso acabou em 1991, quando o então presidente da Funai, Sydney Possuelo, proibiu a entrada de missionários nas aldeias. Ele tomou essa decisão a partir da experiência que teve como sertanista, presenciando a tragédia sanitária dos contatos forçados para a conversão e outras formas de violência na atuação das missões com os índios. À frente da Coordenação Geral de Índios Isolados, da Funai, cuja criação foi liderada por Possuelo em 1987, ele vivenciou a catástrofe epidemiológica que aconteceu entre os Zo’é, no Pará, depois da entrada da Novas Tribos na comunidade, e ataques violentos contra a cultura do povo Zo’é.”

Já que os não indígenas estavam proibidos de entrar no território, passaram a adotar a estratégia de fortalecer os próprios indígenas para eles se tornarem missionários. Eles utilizaram essa retórica, inclusive, para financiar e mobilizar alguns povos a converterem outros povos onde a entrada de não indígenas era proibida. Isso se intensificou a partir dos anos 1990.

Índios pastores

Essas agências construíram uma linha-tempo segundo a qual a primeira conversão entre os indígenas aconteceu com os Terena, no início do século XX. Mas as três ondas de conversão seriam: primeiro, a chegada de americanos ao Brasil; depois, a formação de brasileiros e a criação de igrejas brasileiras nessa visão racista; e a terceira onda seria a formação de missionários indígenas e igrejas indígenas, que as agências chamam de “tsunami espiritual”. Essa linha-tempo estava presente em um congresso de missões do qual eu participei em 2011. Na ocasião, havia poucos indígenas participando do processo missionário.

Outra instituição é o Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas – Conplei, que reúne indígenas interessados. Muitos indígenas frequentam o Conplei com interesses difusos: alguns querem ver do que se trata, outros estão interessados não na Bíblia propriamente dita, mas em benefícios, como dinheiro, poder, conhecimento de outras questões que, inclusive, podem contribuir para o seu povo. O Conplei é uma mistura heterogênea de lideranças.

IHU On-Line – A partir do seu contato com comunidades indígenas, qual é sua percepção sobre a recepção deles aos missionários fundamentalistas e às crenças difundidas por eles?

Felipe Milanez – A leitura dos missionários acerca do que é cultura é fundamentalista: eles veem a cultura como uma caixa quadrada que precisa ser aberta, em que o papel da Bíblia é central para transformar o que, para eles, é bom e o que é ruim. Junto com a ideia de conversão vem a ideia de uma família monogâmica, um tipo de família, com pai, mãe e filhos.

Conversão x espiritualidade indígena

Trabalhos de antropólogas e antropólogos brasileiros mostram que esse processo de conversão nunca aconteceu da forma como os missionários esperavam, seja com os antigos jesuítas, seja com outros grupos. Eduardo Viveiros de Castro mostra isso em Inconstância da alma selvagem, ou seja, a alma indígena era tida como inconstante pelos missionários do Brasil quinhentista. Aparecida Vilaça também mostra isso, no sentido de que as leituras que os indígenas fazem são muito diversas e sofisticadas de como eles interpretam e incorporam essas mudanças. Esse processo nunca vai chegar a um fim linear como se espera.

Um fato recorrente entre os indígenas é que se alguma geração – por questão de necessidade, num momento muito fragilizado, sofrendo com epidemias, como é a situação atual – aceita o trabalho missionário, quando ela sai dessa situação e passa a ter novamente autonomia econômica, as gerações futuras se rebelam e passam a buscar a espiritualidade que foi saqueada.

Tem um caso emblemático no Brasil que é a resistência dos Yawanawá. Eles receberam missionários da Novas Tribos em 1970. Esses missionários estavam ali para tentar amansar os índios, com a intenção de que eles aceitassem ser escravizados. Os missionários chegaram em uma época em que os Yawanawá estavam sofrendo e morrendo em função de doenças e de violências praticadas pelos seringalistas e, portanto, naquele momento os indígenas aceitaram a ajuda que foi possível, porque a Funai nunca tinha tido contato com eles antes de 1980. Porém assim que os jovens Yawanawá tiveram consciência do processo de exploração, eles voltaram para a aldeia e expulsaram os missionários da Novas Tribos. Quem liderou esse processo foi o Bira Yawanawá, em 1980. Os Yawanawá expulsaram os seringalistas e, logo depois, os missionários. A dinâmica da resistência dos povos indígenas é muito ampla, tenaz e longa. Isso que o Brasil está sofrendo agora com o governo Bolsonaro, para eles, é mais um processo.

Se tem algo que nos inspira a acreditar que o mundo pode ser diferente, é a resistência indígena. A resistência indígena contra os missionários mostra a espiritualidade, a visão de mundo e a forma como eles se colocam no mundo. Compreender isso é fundamental para construirmos mundos diferentes, outra economia, outras formas de relacionamento. É por isso que os indígenas hoje são tão tenazes, principalmente as lideranças que estão mais preocupadas com o futuro do seu povo, contra a atuação missionária. A Articulação dos Povos Indígenas, com a Sônia Guajajara, tem uma fala muito dura contra os missionários porque sabe da violência que eles promovem contra seus povos. Alessandra Korap Munduruku denuncia a Damares desde o início deste governo, ou seja, mulheres e homens indígenas estão atuando como porta-vozes na sociedade nacional para denunciar a violência contra seus povos e articulam formas de resistência.

IHU On-Line – Você também afirma que existem interesses escusos por trás da evangelização dos indígenas, os quais estão associados a garimpeiros no Amapá, madeireiros e fazendeiros no Pará, seringueiros no Acre, o exército no Amazonas. Pode explicar melhor do que se trata e como isso está acontecendo hoje?

Felipe Milanez – O interesse dos missionários está na alma e a negociação das almas acontece dentro de um mercado de agências. Eles querem a conversão e a salvação da alma; não estão nem aí para o corpo nem para o território. Dentro dessa visão fundamentalista, para conquistar a alma eles se aliam com quem é possível. Nesse sentido, eles aceitaram financiamento do magnata do petróleo e, na chegada ao Brasil, a Novas Tribos teve apoio de Chateaubriand.

Além disso, as agências recolhem muito dinheiro, nos EUA, com origem não definida: só a Novas Tribos recebe mais de 60 milhões de dólares por ano em doações, que é um orçamento muito maior que o da Funai. Como o projeto missionário é um projeto colonialista, racista, que vê o outro como um bárbaro que precisa ser civilizado, ele se associa muito bem a outros projetos capitalistas que também veem o outro como um inferior a ser explorado. Há relatos e casos no Brasil de associações desses missionários com garimpeiros, como aconteceu no Amapá, contra os Oiampi, há casos de associações com madeireiros etc.

Missões durante a ditadura militar

Durante a ditadura militar, todas as missões foram investigadas, sobretudo porque os militares reproduziam uma confusão que ainda é muito comum no Brasil, a saber, a de identificar todos os grupos missionários como homogêneos. Os militares espionavam os missionários porque achavam que eles poderiam ter conteúdos subversivos, por causa da Teologia da Libertação. Mas eles perceberam que os grupos americanos queriam se mostrar diferentes do Cimi e de outras missões protestantes, que eram aliadas dos povos indígenas. Tal como na tentativa de acordo com a ditadura, em que a Novas Tribos se propunha a qualquer ação para a conversão, seja na saúde e na educação, ou mesmo incentivando a agricultura e a pecuária de mercado, há uma aproximação da visão de mundo dos missionários com ruralistas que pode estar relacionada com a nomeação, no ano passado, de um missionário da Missão Novas Tribos para a chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato – CGIIRC, num momento em que a Funai está dominada por ruralistas.

Eu desconfio que a Novas Tribos tenha proposto aos militares e aos ruralistas que faria contato com os índios isolados para facilitar o saque do território. Mas isso é uma desconfiança. A questão é que deu tudo errado e o missionário não durou nem um ano no poder. O que importa é que qualquer aliança para conquistar as almas tem sido feita por esses missionários fundamentalistas e isso é um crime contra a humanidade. Situações como essa acontecem na Amazônia, no Nordeste, no Sul do Brasil; todos os povos indígenas do país são objeto de saques de suas almas. Em todos os lugares, esses missionários fundamentalistas estão próximos daqueles que também querem explorar o território e os corpos dos indígenas. O que reaproxima essas visões, a meu ver, é o colonialismo.

IHU On-Line – Quantas missões desse tipo existem hoje no Brasil?

Felipe Milanez – Existem 40 agências missionárias organizadas na AMTB – não são missões, porque uma agência pode ter várias missões. A Funai nunca conseguiu concluir um levantamento sobre quantas missões estão dentro das terras indígenas. Já acompanhei diferentes levantamentos da Funai, mas pelo fato de esse trabalho missionário ser proibido pela Constituição, os missionários sempre se esconderam, se disfarçaram. Nem sempre as comunidades indígenas conseguem denunciá-los, porque muitas vezes eles orientam os indígenas a não comentarem sobre o trabalho que realizam nas comunidades. Hoje não existem dados concretos de quantos trabalhos missionários estão sendo feitos.

IHU On-Line – Esses grupos se relacionam de algum modo com o governo Bolsonaro? Que informações você tem?

Felipe Milanez – Existem diversas relações desses grupos com o governo Bolsonaro, principalmente pela entrada da pastora Damares no Ministério de Direitos Humanos. O que não está nítido é quais são as relações de interesse econômico por trás disso. De toda forma, eles cresceram muito no governo Bolsonaro, principalmente a Damares, que é ligada à Atini, uma agência fundada a partir da Jocum e focada no caso dos Arara no Amazonas. A ministra é uma das fundadoras da agência e inclusive adotou uma jovem indígena com a assistência das missões, o que é bastante controverso e foi objeto de investigação pelo Ministério Público.

As agências e o governo Bolsonaro

Essas agências fundamentalistas conseguiram, no governo Bolsonaro, um ministério e isso é inédito desde que elas vieram para o Brasil, em 1950. Durante a ditadura militar, elas mal tinham relações com o governo. Durante a redemocratização, nos governos Collor, FHC, Lula e Dilma e mesmo no governo Temer, elas nunca tiveram muito espaço; existiam apenas relações de pessoas ligadas aos missionários nos governos. Hoje, ao contrário, tem uma ministra que representa, dentro do quadro de alianças reacionárias do governo Bolsonaro, um espaço para essas agências.

A pastora Damares tem uma trajetória de proximidade com essas agências fundamentalistas e é uma das fundadoras da Atini, que tem histórico de atuação junto aos Suruwaha e tentativa de invadir o Xingu. As agências encontraram em Bolsonaro um parceiro que, por sua vez, encontra nessas agências fundamentalistas possivelmente uma parceira, em uma comunhão de interesses reacionários. Isso refletiu na nomeação do pastor Ricardo Lopes Dias, que foi da Novas Tribos, para a Funai. Não ficou explícito até hoje como aconteceu esse acordo e a negociação entre ruralistas e missionários fundamentalistas, que provocou um choque internacional diante do risco iminente, denunciado pelo movimento indígena, de genocídios e epistemicídios. Aparentemente, esse missionário não serviu de forma eficaz aos interesses econômicos que compõem esse quadro de alianças reacionárias do governo Bolsonaro, tanto que, nomeado em janeiro, em menos de um ano ele foi derrubado.

Junto à Damares e à Michelle Bolsonaro, existe um canal de financiamento dessas agências e, mais do que isso, um canal de fortalecimento político para conseguir força política e a autorização da entrada dessas missões nas aldeias. As agências conseguiram, através da atuação do governo no Congresso, deturpar um projeto de lei que foi feito para proteger os povos indígenas na pandemia e acrescentaram um artigo que autoriza o trabalho missionário junto aos povos isolados. Para essas agências missionárias, as almas dos povos isolados são as mais caras e mais valorizadas porque são as mais difíceis de ser conquistadas.

Missões x trabalho humanitário

As alianças que as agências missionárias fazem para conseguir chegar aos territórios indígenas, seja com seringalistas, ruralistas, grileiros, madeireiros, também se disfarçam de trabalho humanitário, quando é conveniente. Então, pode ser feito um trabalho odontológico, de assistência à saúde, cujo objetivo principal é a conversão. Ou seja, através da saúde, chegam à conversão. Esse disfarce tem sido praticado há muitos anos, desde os primeiros projetos de convênio que as missões fizeram com a Funai nos anos 1970 e 1980. Como as agências estavam proibidas de entrar nos territórios indígenas porque a atuação delas atacava o Estatuto do Índio, de 1973, elas passaram a justificar a sua presença nas aldeias como trabalho educativo: coordenavam escolas junto aos Yawanawá para convertê-los, prestavam assistência à saúde, davam treinamento econômico para ensinar os indígenas a praticarem uma agricultura ruralista. Essa é uma estratégia perene.

Também há tratativas e negociações com as universidades e isso ocorre há muito tempo, seja através da UniEvangélica, em Anápolis, Goiás, uma universidade que tem uma presença grande de missionários das agências Asas de Socorro e Novas Tribos, ou da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que sempre abriu as portas, seja através do disfarce em relação à pesquisa, como aconteceu no Museu Paraense Emílio Goeldi. Quando linguistas tentaram estudar na instituição para aprender as técnicas de pesquisa em linguística com o objetivo de converter os indígenas, eles foram expulsos do museu, uma das principais instituições de pesquisa da Amazônia.

IHU On-Line – Recentemente, The Intercept publicou uma matéria mencionando a abertura da primeira turma de alunos-evangelizadores na UniCesumar, em Maringá, no noroeste paranaense, que recebe investimento público. Que informações tem sobre o caso?

Felipe Milanez – Eu não gostaria de tratar desse caso específico relacionado à matéria do The Intercept, por questões éticas. Mas a UniCesumar, a UniEvangélica e a Universidade Presbiteriana Mackenzie indicam que há uma proximidade muito grande entre o meio acadêmico e esses grupos missionários, o que também não é algo novo ou que está sendo inventado por esses missionários. Isso acontece há muito tempo e faz parte da própria origem dessa ideologia nos EUA, onde diversas universidades evangélicas treinam missionários, e essa é uma experiência que está sendo importada para o Brasil. Tanto lá quanto aqui, há uma tentativa de se ter acesso a recursos públicos, mas não só – o próprio ProUni tem uma série de problemas que já foram levantados nesse sentido.

Essas agências também recebem financiamento de instituições privadas, como da Fundação Bradesco, da Mormaii, sem que muitas vezes essas fundações saibam o que estão apoiando, porque as agências tentam disfarçar o objetivo fundamentalista da conversão. Para as agências, o que importa é a conversão e para isso elas realizam trabalhos em diferentes áreas: na educação, na saúde ou em qualquer outra atividade humanitária. É importante destacar, como eu disse na resposta anterior, a postura assumida pelo Museu Goeldi: uma vez que descobriram a existência de missionários tentando fazer pesquisas de linguística, usando o Goeldi para alcançar objetivos escusos, foram expulsos da própria pós-graduação do museu.

IHU On-Line – Você distingue esse tipo de trabalho missionário de outros trabalhos missionários? Se sim, de que forma?

Felipe Milanez – Em primeiro lugar, missão não é só religiosa. Missão é salvacionista, para salvar o outro, é civilizacional, é se autoatribuir a civilização e atribuir a barbárie ao outro. A missão pode ser militar, econômica – o Fundo Monetário Internacional – FMI vem numa missão ao Brasil, assim como uma organização norueguesa propõe salvar a África sem fechar um posto de petróleo na região ou sem ver as suas contradições dentro do sistema-mundo.

Esse é um problema amplo do qual as missões religiosas são um dos aspectos, aquele relacionado à espiritualidade, à subjetividade e à construção de mundos diferentes. Dentro desse quadro das missões religiosas, a Igreja Católica e muitas Igrejas protestantes se reviram ao longo do tempo, assim como as pessoas podem se repensar e se rever. A Igreja Católica, que por séculos promoveu o etnocídio, legitimou genocídios e fez o que fez no mundo para colaborar com a expansão europeia e a eliminação de outros povos, se refez, fez diversas revisões cíclicas, teológicas e de atuação de seus posicionamentos. Estamos observando o papa Francisco revendo uma série de questões da Igreja e o mesmo aconteceu com as Igrejas protestantes. Mas algumas agências ainda não se reviram: as que estão atuando no Brasil não tiveram renovações de quadro nos últimos anos e mantêm o mesmo pensamento fundamentalista. Essa ideologia precisa ser combatida para que se promova o respeito à diferença e à diversidade.

Agências missionárias x Igrejas neopentecostais

As agências que atuam no Brasil têm uma trajetória diferente das Igrejas neopentecostais que surgiram no país: elas não se compõem e pensam diferente. Em muitos momentos, já presenciei rivalidades entre elas, sobretudo dos pentecostais americanos que se autodenominam históricos, como os missionários da Novas Tribos e de outras agências, que veem com muito desprezo a atuação dos neopentecostais brasileiros. Essa é uma questão complexa porque existem muitas igrejas em atuação no Brasil: existem protestantes como o pastor Henrique Vieira, que tem uma visão completamente diferente, humanisticamente falando, da do pastor da Novas Tribos. Então, tem que diferenciar muito as visões de mundo entre cada uma das igrejas. Mas as pentecostais brasileiras não têm o aparato de missão transcultural nem de agência. Isso não significa que elas não façam missão; fazem, sim, e hoje a maior parte das conversões indígenas é feita pelas Igrejas pentecostais brasileiras e não pelas agências fundamentalistas de origem norte-americana.

Em todo caso, é possível rever os processos e essas agências devem ser proibidas em sua atuação proselitista, assim como as igrejas que as financiam precisam rever seus processos, principalmente os batistas, que também é um universo muito amplo, e os presbiterianos. As pessoas podem ter as suas crenças e respeitar que o outro pense diferente. Mas quem financia, vai à igreja e dá dinheiro para os missionários converterem os índios, está ajudando a prática de um crime e contribuindo para a destruição de outras culturas.

IHU On-Line – O Sínodo Pan-Amazônico convocado pelo papa Francisco teve como objetivo principal “encontrar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, especialmente dos indígenas”. Ao longo do Sínodo, discutiu-se também a exploração e a violência que as comunidades sofrem em seus territórios. Como você avalia a proposta do Papa?

Felipe Milanez – O papa Francisco mostra para todo mundo que é possível se rever e se repensar. Essa é uma das mensagens mais bonitas que o Papa tem promovido hoje, junto com a mensagem de um outro planeta, do decrescimento, da ecologia. É a mensagem de que mesmo uma igreja manchada de sangue, como a católica, deve se repensar, se rever no mundo, se reimaginar e mudar ideologias que estão erradas e agridem o outro e a diferença.

Com todos os limites da Igreja Católica, de dentro da instituição tem saído uma proposta diferente, mesmo que haja uma contradição de, por um lado, rever a atuação na Amazônia e, por outro, promover a presença da Igreja na região. De um lado, há uma disputa geopolítica frente à expansão protestante na Amazônia, mas de outro, há um discurso aberto de defesa da Amazônia e um discurso aberto de tolerância.

A mensagem do papa Francisco dialoga com católicos, budistas, protestantes: é preciso superar a violência da contrarreforma e imaginar um mundo em que seja possível compartilhar as diferenças, um mundo antifundamentalista. É por isso que ao longo da entrevista venho acentuando a existência de missões que são fundamentalistas, que não aceitam a diferença, que não aceitam a existência sem a conversão. Se entre os povos indígenas não existe a ideia de inferno, por que alguns querem inventar um inferno e colocar os outros nesse inferno? Deixem os outros viverem com autonomia e serem felizes. “Deixa o índio”, como cantou o maestro Antônio Carlos Jobim. É preciso respeitar a autonomia, respeitar a soberania espiritual e as visões de mundo de diferentes pessoas.

Dentro de um quadro amplo que compõe o novo tipo de fascismo no Brasil, um deles está em promover a atuação dessas missões fundamentalistas, junto com o fundamentalismo neoliberal do mercado, das milícias e do porte de armas. No governo existe o fundamentalismo que a pastora Damares tem tentado apoiar e financiar.

A sociedade inteira precisa se unir em defesa das almas indígenas, porque não são somente as almas indígenas que estão em risco. Todas as almas estão em risco de serem comercializadas num mercado restrito, que é o mercado de almas das agências fundamentalistas. Quando esses grupos acreditam que o mundo está dividido entre quem é e quem não é cristão, essa divisão estabelece um recorte etnocida extremamente violento, materialmente e espiritualmente. Os indígenas compõem um grupo que está sendo atacado por missionários fundamentalistas e essa situação deveria alertar todos os não indígenas, porque se algum grupo está sendo atacado na sua existência, esse ataque atinge toda a humanidade. É por isso que os direitos humanos são fundamentais e, nesse sentido, os indígenas têm o direito de defender e viver em seus territórios da forma que quiserem. Esse é um direito constitucional que deve ser respeitado. As missões fundamentalistas não podem receber financiamento público, mas mais do que isso, elas devem ser combatidas em sua ideologia. O problema é a ideologia que agride a existência do outro. Isso é um crime que não pode ser tolerado.

Felipe Milanez (Foto: Arquivo pessoal)

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