A Big Pharma age para ganhar (muito!) com a pandemia

Crescem sinais de que farmacêuticas manipulam os preços e entregas de vacinas, em contratos secretos com governos. E mais: em meio às mortes, tudo segue incerto com a ĩmunização no Brasil; como a cloroquina engordou um bolsonarista

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

RELAÇÕES PERIGOSAS

Quem ganha com a propaganda do governo federal da hidroxicloroquina? Uma das principais perguntas dessa pandemia para os brasileiros já havia sido respondida pelo repórter Patrik Camporez que, em julho do ano passado, mostrou quem eram os donos das farmacêuticas nacionais que fabricam a droga e destacou que havia bolsonaristas entre eles. Agora, é a vez de o repórter Diego Junqueira puxar mais fios deste novelo, revelando que talvez a propaganda do medicamento não seja a única vantagem de quem mantém ótimas relações com o poder. 

Na Repórter Brasil, ele mostra essa baita “coincidência’”: em 2020, a Apsen, presidida pelo bolsonarista Renato Spallicci, assinou dois contratos com o BNDES. O banco se comprometeu a emprestar R$ 153 milhões para a farmacêutica, com a justificativa de investimento em atividades de pesquisa e ampliação da sua capacidade produtiva. “O valor é sete vezes maior do que o crédito liberado para a empresa nos 16 anos anteriores somados”, descobriu Junqueira (o grifo é nosso). Do total do empréstimo, R$ 20 milhões já foram transferidos pelo BNDES, em março passado.

São as caixas de hidroxicloroquina da Apsen que Jair Bolsonaro exibe nas suas transmissões ao vivo e corre atrás das emas do Palácio da Alvorada. O produto também foi exibido pelo presidente em um encontro virtual com líderes do G-20 e na posse do general Eduardo Pazuello como ministro da saúde.

Se Bolsonaro colhe frutos simbólicos por martelar uma falsa solução para a doença na cabeça dos brasileiros há meses, Renato Spallicci, dono da empresa, se beneficia de frutos concretos. Além de conseguir o empréstimo histórico, sua farmacêutica viu o faturamento aumentar 18% no ano passado, dos quais 2,7% se devem às vendas da hidroxicloroquina. No total, a empresa ganhou R$ 1 bilhão. 

O PODER DA PFIZER

A capa da Bloomberg Businessweek da próxima semana traz a imagem de um homem sério que olha diretamente para a câmera, preenche todo o quadro e vem ladeado por uma inscrição: “O rei da vacina”. Trata-se do CEO da Pfizer, Albert Bourla. Na ilustração que abre a longa reportagem, uma gigantesca mão segura um frasco de vacina enquanto bonecos pequenininhos se amontoam e se atiram para o alto, tentando alcançá-la. Toda essa representação gráfica e a linha editorial do veículo – uma revista sobre negócios e o mercado financeiro – podem dar à reportagem uma aura propagandística.

Mas ali há informações bem interessantes para entender o poder que grandes farmacêuticas têm em definir os rumos da pandemia. “A política governamental é importante, assim como o comportamento dos indivíduos, mas até certo ponto os fabricantes de vacinas determinam onde as infecções diminuirão e quais economias serão reabertas primeiro. Seus clientes são líderes nacionais eleitos que criaram programas intrincados de vacinação com funcionários de saúde pública, mas esses líderes estão aprendendo que estão à mercê do que fabricantes como a Pfizer oferecem”, diz o texto.

A matéria traz todo o histórico do desenvolvimento da vacina da Pfizer, desde sua recusa em receber recursos da Warp Speed Operation, pela qual o governo dos EUA injetou bilhões de dólares em laboratórios. A Pfizer negou porque tinha verba para começar a pesquisa imediatamente e queria ser a primeira a ter um imunizante. O fato de ser a primeira ofereceu a Bourla “uma oportunidade de vendas como nenhuma outra” – os acordos começaram a sair em maio, logo após o início dos testes de segurança. Agora há mais de 60 contratos mundo afora, sempre com termos comerciais sigilosos. 

Em Israel, o plano da Pfizer era ter um verdadeiro laboratório gigante para conseguir rapidamente resultados da vacina no mundo real – que já começaram a aparecer – e impulsionar ainda mais as vendas. O primeiro-ministro do país, Benjamin Netanyahu, ofereceu à farmacêutica um preço por dose 50% maior do que daquele pago pelos EUA, e ainda acesso a informações sigilosas de todos os vacinados. Para ele, o acordo foi uma tábua de salvação política, depois do fracasso anterior no controle do vírus e com eleições em março. Apesar da distribuição contínua a Israel, a Pfizer não conseguiu entregar vacinas prometidas a um monte de outros países, e literalmente teve o poder de decidir quais deles receberiam as doses, e quando. Entre os critérios de seleção está, obviamente, o lucro. 

A perspectiva é que a vacina renda à Pfizer pelo menos US$ 15 bilhões ainda este ano, tornando-se um dos produtos farmacêuticos de maior venda no mundo. Mas a empresa quer muito mais em um futuro pós-pandêmico. Hoje o preço da dose varia de um país para o outro, ficando em torno de US$ 20. Aos repórteres, o diretor financeiro Frank D’Amelio sugeriu que se pode chegar a algo entre US$ 150 e US$ 175. “Estamos em um ambiente de preços pandêmicos. Obviamente vamos conseguir mais”. 

UMA OFERTA MUITO MAIOR

A Pfizer pode ser incrivelmente poderosa, mas, assim como a Moderna e a Johnson & Johnson, está super focada em negócios com países de alta renda. Tem sido assim com empresas ocidentais em geral, sublinha a reportagem do Health Policy Watch. Mesmo a AstraZeneca, hoje a maior fornecedora da Covax Facility, fez essa oferta por meio de uma licença especial ao Instituto Serum da Índia, oferecendo apenas as doses produzidas lá. 

Quando se trata de doações e de acordos bilaterais com países de média e baixa renda, ninguém supera a China e a Rússia, que, por meio das vacinas, têm cimentado alianças com a África, a América Latina e o sul da Ásia. É um papel que, sem dúvida, o Brasil também poderia ter desempenhado, caso o governo federal tivesse se importado em investir no desenvolvimento nacional de vacinas.  

No continente africano, por exemplo, as negociações com a China começaram em outubro do ano passado. Agora, Pequim está atuando para fazer vacinas chegarem a 21 países e, no Egito,  há um acordo para produzir a CoronaVac e exportar a vizinhos.

CRONOGRAMA ATRASADO

Em meados de fevereiro, um acuado Eduardo Pazuello se reuniu com governadores para falar sobre números e datas da campanha de imunização, já que há tempos eles pressionavam por um cronograma. Contamos aqui como as promessas do ministro da Saúde eram difíceis de cumprir. E de fato não se cumprirão, como reconheceu ontem a própria pasta.

Para o mês de março, estava previsto o recebimento de 16,7 milhões de doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca (sendo quatro milhões importadas do Instituto Serum da Índia e 12,9 milhões produzidas na Fiocruz) e mais 18,1 milhões da CoronaVac, feitas no Butantan.

Pois bem. No caso da vacina de Oxford, a quantidade importada da Índia afinal vai ser diluída entre abril e junho, não havendo mais nenhuma previsão de chegada em março.

A Fiocruz, por sua vez, só vai conseguir contribuir com 3,8 milhões. A justificativa é que a entrega do produto “depende do cumprimento de todas as etapas iniciais de produção e requisitos de qualidade”, e que ainda estão sendo produzidos os lotes de validação. Somente depois disso é que  a produção de lotes comerciais pode começar. O pano de fundo é o atraso no recebimento da matéria-prima, que vem da China. Claro que o Ministério da Saúde poderia ter enfatizado o quanto esse tipo de atraso é previsível. A consequência prática é que, das quase 17 milhões de doses que Pazuello prometeu para acalmar os governadores, vão faltar 13,1 milhões. Ou seja: o país só vai ter um quinto do número esperado para este mês.

No cronograma inicial, o Ministério da Saúde contava ainda com 400 mil doses da Sputnik V, que, além de ainda não ter autorização da Avisa para o uso, agora só devem chegar em abril. 

A queda só não é maior porque, em relação ao Butantan, o Ministério disse esperar agora mais doses do que as originalmente previstas: seriam 23,3 milhões. Mas é um número meio nebuloso, também. Nesta semana, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que seriam 21 milhões, e o diretor do instituto, Dimas Covas, falou em 20 mi.

MAIS NEGOCIAÇÕES, POUCAS DOSES

O Ministério da Saúde continua tentando se acertar com outros fabricantes. Hoje vai haver uma reunião com representantes da Moderna para negociar a compra de 63 milhões de doses de sua vacina contra a covid-19 –  mas, segundo o Estadão, apenas 13 milhões seriam entregues ainda este ano. E, destas, só um milhão chegariam ao Brasil até julho. 

E a Anvisa está de reunião marcada com a Johnson & Johnson para discutir o uso emergencial da vacina da Janssen, de dose única. Vai ser no próximo dia 16. Pelo que o Ministério da Saúde tem divulgado, a empresa quer fornecer 38 milhões de doses ao Brasil, mas todas no segundo semestre.

Apesar de também estarem negociando diretamente com fabricantes, governadores de 14 estados mandaram uma carta ao presidente Bolsonaro pedindo “imediata adoção de providências” para a aquisição de imunizantes. Dizem ainda que deve ser requerido apoio e intermediação da OMS, em face da disseminação da variante P.1. 

PRESSÃO NO MINISTÉRIO

O Brasil continua se afundando e, pelo sexto dia consecutivo, a média móvel de mortes subiu, chegando ontem a 1.361 – número 30% maior  do que há duas semanas. Essa semana, o país também bateu seu próprio recorde de novas mortes diárias por milhão de habitantes. Na quarta-feira, chegamos a 6,3 mortes diárias por milhão, considerando a média dos sete dias anteriores. Com isso, ultrapassamos os EUA, que com campanha de vacina estão controlando as contaminações e registraram 5,5 mortes por milhão. 

É nesse contexto de números macabros e cenas dantescas que um grupo de procuradores de 24 estados e do Distrito Federal quer que Augusto Aras faça alguma coisa para enquadrar o general Pazuello & cia. Eles prepararam uma lista de ações a serem seguidas pelo Ministério da Saúde, como a formulação de um parâmetro de risco para a adoção do isolamento social, e querem que a pasta seja obrigada a adotá-la em cinco dias. No documento enviado ao procurador-geral da República ontem, constam coisas muito óbvias, como o monitoramento do estoque de insumos necessários ao tratamento da covid-19 no país e uma campanha para conscientizar a população sobre as medidas de prevenção. É esperar para ver se Aras vai encaminhar para o ministro.

Também ontem, o PGR deu um segundo passo – ainda bastante tímido – na direção da responsabilização do general da ativa na condução da crise sanitária. Aras abriu algo que se chama “apuração preliminar” para averiguar se há indícios de que o ministro tenha cometido os crimes de falsidade ideológica e fraude processual. Trata-se do caso do plano de vacinação encaminhado ao Supremo com os nomes de pesquisadores que chegaram a colaborar com a pasta, mas foram deixados de lado na redação final e deixaram claro que discordavam do documento quando ele veio a público. Além de tímido, o passo de Aras é lento porque tem a ver com um pedido de investigação feito em dezembro pela deputada federal Natália Bonavides (PT-RN).

Lembramos que Pazuello é alvo de outro inquérito, mais grave, aberto pelo STF a pedido da PGR que investiga sua responsabilidade na crise de falta de oxigênio no Amazonas.

E a ministra Rosa Weber não poupou críticas ao governo Bolsonaro em outra decisão contrária ao Ministério da Saúde, desta vez em uma ação movida pelo Piauí sobre o custeio federal de leitos de UTI para covid-19. A ministra do Supremo caracterizou a atuação do governo como “errática”, afirmou ser possível identificar “omissão” da União e classificou as medidas adotadas para conter a pandemia como “inócuas”, de “improviso” e “sem comprovação científica”

O acirramento da crise sanitária fez com que o presidente do Senado ensaiasse suas primeiras críticas ao governo ontem. Rodrigo Pacheco (DEM-MG) pediu que o Ministério da Saúde demonstre com ações e exemplos que não é negacionista. Estava ao lado do secretário-executivo da pasta, o militar Élcio Franco. Pacheco tem na gaveta o requerimento para a instauração da CPI da Covid-19… 

ESTRANHO CONSELHO

No pior momento da pandemia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) resolveu se pronunciar. Dando apoio incondicional à defesa da vida e medidas que possam frear a contaminação desenfreada do vírus? Não. A autarquia federal fala bastante de economia. Em nota publicada ontem, o CFM afirma que a adoção de medidas restritivas locais “pode reduzir momentaneamente a pressão sobre o sistema de saúde, como tentativa de evitar o colapso”, mas destaca que essas medidas “podem gerar consequências graves de efeito duradouro para a sociedade, como o fechamento de empresas, desemprego e surgimento de doenças mentais em adultos e crianças”. Tem mais: o conselho emenda dizendo que sua adoção deve levar em conta não só “análise criteriosa de indicadores epidemiológicos” e capacidade da rede de saúde, mas também “impactos econômicos”. Defende ainda que os governos adotem medidas “de curta duração” sem especificar o que isso quer dizer. Quarentenas de fim de semana? 

Um professor da Faculdade de Medicina da USP está pedindo ao Ministério Público Federal (MPF) a abertura de inquérito civil para apurar a atuação do CFM em relação ao “tratamento precoce” contra a covid-19 defendido pelo governo federal sem sustentação científica. Bruno Caramelli argumenta que a autarquia não cumpriu a missão de fiscalizar a atuação médica ao não se posicionar ou intervir na propaganda oficial, solicita que o MPF apure responsabilidades civil, administrativa e penal da diretoria do conselho no caso e também que os representantes da entidade sejam chamados a prestar esclarecimentos. Junto com o pedido, o médico encaminhou um abaixo-assinado com 4,6 mil assinaturas em apoio à investigação.

UM CARIMBO PRA CHAMAR DE SEU

Os senadores aprovaram ontem a PEC Emergencial por 62 votas a 14. O texto, que ficou com os gatilhos e com o limite de R$ 44 bilhões para o auxílio emergencial, segue para a Câmara onde terá que ser aprovado também em dois turnos por, no mínimo, 308 deputados. A proposta vai direto para o plenário da Casa depois de um acordo entre a maioria dos líderes partidários foi costurado por Arthur Lira (PP-AL). A votação deve acontecer na semana que vem

E seria cômico se o governo federal não fosse trágico: na última versão do relatório da PEC Emergencial, o senador Márcio Bittar (MDB-AC) incluiu uma regra que permite que os gastos militares sejam carimbados. É isso mesmo: enquanto a equipe econômica esticou a corda com a opinião pública para desvincular os recursos que financiam a educação e tornam o SUS possível, os militares consorciados com Bolsonaro queriam um carimbo para chamar de seu – e acabaram levando a melhor aos 45´ do segundo tempo. 

Na regra, incluída quarta-feira, receitas voltadas para ações de defesa nacional e das Forças Armadas ficaram vinculadas a essas despesas. Ouvido por O Globo, Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente – vinculada ao próprio Senado – afirma que “para ver melhor as consequências” será preciso aguardar a regulamentação do dispositivo. Isso se ele não cair durante a tramitação da PEC. 

Miriam Leitão, também no Globo, chama atenção para outro ponto da PEC: “Para cumprir a PEC emergencial o governo teria que zerar os subsídios à agricultura, acabar com as deduções do Imposto de Renda Pessoa Física, os incentivos à pesquisa científica e inovação tecnológica e além dos benefícios à cultura e ao audiovisual. Esses são algumas das renúncias fiscais que terão de ser levadas a zero em oito anos para cumprir a determinação da PEC.  A emenda, aprovada em segundo turno, manda reduzir a 2% do PIB os subsídios. Hoje são 4,3% do PIB. Mas a PEC excluiu renúncias fiscais que representam 2,3%. Estão fora desses cortes a Zona Franca de Manaus, o Simples, as entidades filantrópicas, desenvolvimento regional, a cesta básica e o ProUni. Como eles representam mais da metade, o resto teria que acabar completamente”.

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